O enjoo veio discreto, como quem pede licença. Vesti um casaco de lã, prendi o cabelo de qualquer jeito e abri a porta. Sergey já estava no corredor, do lado da janela, olhando a geada no jardim como se ela pudesse morder alguém.
Sergey: Carro pronto. Rota dois. Sem paradas.
Luísa: Você sonha com rotas?
Sergey: Quando não sonho com problemas.
Descemos. O ar frio cortou as bochechas. O comboio aguardava com motores baixos, três carros, cores que não chamam atenção, placas que mudam de humor. Galina apareceu com uma garrafa térmica pequena.
Galina: Chá de gengibre. Senta melhor no estômago.
Luísa: Obrigada.
Mikhail não estava. Senti o corpo afrouxar um milímetro. Era a primeira ultrassonografia e, por um instante, quis acreditar que seria minha. Só minha.
A clínica ficava num prédio antigo reformado, fachada de pedra clara, recepção silenciosa com cheiro de álcool e flor. A atendente sorriu com a máscara pendendo no queixo.
Recepção: Bom dia, senhora...?
Luísa: Andrade. Luísa Andrade.
Ela confirmou dados, pediu assinatura. Sergey ficou dois passos atrás, parede viva. Eu sentei e tentei ignorar as revistas. As mãos suavam, a garrafa de chá esquentava os dedos.
Quando ouviram meu nome, levantei como quem pisa fora de um sonho.
Dra. Tatiana: Luísa! - O sorriso dela era um cobertor. - Hoje a gente olha esse pequeno viajante.
Luísa: Viajante?
Dra. Tatiana: Sempre digo que eles viajam primeiro no corpo da mãe, depois no mundo.
Entrei no consultório. Tudo branco, limpo, o monitor apagado me encarando como um olho fechado. Tirei o casaco, subi na maca, ajeitei o vestido. A luz tinha um calor que acalmava.
Dra. Tatiana: Antes de começarmos... você quer alguém com você na sala? Acompanhante?
Olhei para a porta. Pensei em Sergey. Pensei na solidão. Pensei no nome dele o nome que muda a pressão do ar.
Luísa: Não. Eu fico bem.
Ela assentiu, preparou o aparelho, passou o gel frio. O metal encostando na pele me fez puxar ar.
A maçaneta girou.
Reconheci a presença antes do som.
Mikhail entrou como se a sala fosse feita para isso: terno escuro, postura de comando, perfume discreto que ficou no ar como uma linha.
Luísa: Você não foi convidado.
Mikhail: Eu não espero convites para ver o que é meu.
A frase me cortou e eu quis jogar de volta uma lâmina. A Dra. Tatiana interveio com delicadeza de quem atravessa duas placas de gelo.
Dra. Tatiana: Só um instante. - Olhou para mim. - Luísa, a decisão é sua. Quer que ele fique?
Fiquei entre cuspir um não e engolir um talvez. Eu queria que aquilo fosse meu, mas também queria que ele ouvisse. Que entendesse o que significa coração quando não se trata de poder.
Luísa: Fica. Mas encosta na parede.
Ele não discutiu. Deu dois passos para trás, braços soltos, olhos fixos na tela ainda vazia.
O gel voltou a esfriar minha pele. O transdutor deslizou. A tela acendeu com um universo de cinzas em movimento. Procurei algo que fizesse sentido e, por um segundo, achei que não veria nada, que estava tudo na minha cabeça.
Então a imagem apareceu: um ponto, uma sombra arredondada, um casulo de luz.
E o som veio logo depois, preenchendo a sala com golpes pequenos e firmes, como dedos batendo numa mesa.
dum, dum, dum.
Eu não sabia que um som podia reorganizar uma pessoa por dentro. O consultório se dissolveu. O mundo se contraiu ao tamanho daquela batida.
Os olhos me arderam. Respirei pela boca para não chorar alto.
Dra. Tatiana: Aí está. - A voz dela ficou macia. - Oito semanas e alguns dias. Frequência linda. Medidas certinhas.
Mikhail não disse nada. Mas o corpo dele mudou. Não sei explicar: a postura, talvez; as mãos, antes soltas, agora ancoradas nos bolsos; o rosto uma pedra com um brilho sob a pedra.
Dra. Tatiana: Quer ouvir mais um pouco?
Luísa: Quero.
Não porque eu precisasse; porque eu não queria que acabasse.
A médica ajustou o volume. Os golpes ficaram um pouco mais claros, como se o pequeno lá dentro estivesse batendo para ser ouvido. Puxei ar, soltei devagar, levei a mão livre ao rosto e enxuguei o que não segurei.
Mikhail deu um passo, parou a meio caminho.
Mikhail: Posso...?
Ele não terminou a pergunta. Eu ergui um dedo, parei no ar.
Luísa: Daí está bom.
Ele assentiu. E ficou.
Dra. Tatiana mediu coisas que não entendi, marcou números, disse palavras como saco gestacional e coro-cabeça. Explicou vitaminas, horários, sinais de alerta. Eu quis anotar tudo e não anotar nada. Guardei o som no osso.
Quando ela desligou o aparelho, o silêncio pós-batimento pareceu uma queda. A médica me ofereceu papel para limpar o gel. Mikhail virou o rosto para a janela, um gesto rápido e inútil, como se o vidro pudesse dar respostas.
Dra. Tatiana: Vou imprimir as imagens e trazer o relatório. Já volto.
Ela saiu. Ficamos só nós dois e o eco do que tínhamos escutado.
Luísa: Você não pode continuar invadindo lugares que são meus.
Mikhail: Eu avisei a clínica ontem. Seu nome está protegido. O meu consta como responsável de suporte. Eu pago para que nada falte.
Luísa: Pagar não te dá direito.
Mikhail: Não comprei direito. Assumi dever.
Luísa: Bonito. Em papel, tudo fica bonito.
Ele tirou um envelope fino do paletó e o colocou na mesa, ao alcance da minha mão.
Mikhail: Pré-nupcial revisado com as suas condições. A psicóloga já está confirmada. E a visita de amanhã à sua mãe - com perímetro discreto.
Olhei o envelope. Olhei para ele.
Luísa: Você está jogando xadrez com coisas que eu amo.
Mikhail: Estou protegendo o tabuleiro onde elas existem.
Não respondi. A porta abriu. Dra. Tatiana voltou com duas imagens impressas e um sorriso que não precisava saber de guerras.
Dra. Tatiana: Aqui estão. - Entregou-me as fotos. - E aqui uma para... - olhou de relance para Mikhail, depois para mim, pedindo com o olhar a minha decisão.
Luísa: Eu fico com as duas.
Dra. Tatiana: Perfeito. - Fez anotações rápidas. - Luísa, qualquer sangramento, dor intensa, febre, você me liga. Dúvidas também. E... parabéns.
Peguei a bolsa, guardei as imagens dentro da capa do caderno. Levantei da maca ainda sentindo a pele fria no abdômen.
No corredor, Sergey estava encostado na parede com cara de quem contaria o tempo pelos passos. Endireitou-se.
Sergey: Tudo certo?
Luísa: Tudo... batendo.
Mikhail: Vamos.
Eu ia dizer eu decido para onde vou, mas a verdade é que o mundo lá fora não era um lugar neutro. A saída da clínica tinha três pessoas demais olhando telhados, um carro parado demais na esquina. Sergey notou, tocou o ponto na orelha.
Sergey: Rota um abortada. Rota três. Dois à frente.
Descemos pelas escadas em vez de usar o elevador. O ar tinha cheiro de borracha e limpeza. O piso frio segurou o salto do meu sapato.
No carro, ninguém falou até a segunda ponte. Eu fiquei com as fotos apertadas no colo. Quando Mikhail falou, não foi uma ordem. Foi um convite mascarado de rotina.
Mikhail: Chá no jardim de inverno. Dez minutos. Depois você descansa.
Luísa: Chá não me obriga a concordar com você.
Mikhail: Nem é para isso.
O jardim de inverno da mansão era um aquário de luz morna no meio do gelo. Plantas que sobreviviam ao frio atrás do vidro grosso, cadeiras com mantas, uma mesa baixa. Galina deixou a bandeja e sumiu com o mesmo silêncio com que aparece.
Mikhail serviu o chá. Eu tomei o meu devagar, segurando a xícara com as duas mãos. As imagens do ultrassom estavam ao lado, viradas para baixo, como cartas que eu ainda não sabia jogar.
Mikhail: Quando ouvi... - ele buscou a palavra e isso me surpreendeu - parecia barulho de fábrica, no começo. Máquina pequena. Aí virou música.
Luísa: Para mim foi tambor.
Mikhail: De guerra?
Luísa: De tribo.
Ele assentiu. Ficamos alguns segundos nessa trégua estranha.
Mikhail: Nome.
Luísa: O primeiro é meu. Já conversamos.
Mikhail: Sim. - Um segundo. - Eu pensei em um segundo nome russo. Para que ele - ou ela - atravesse as nossas duas línguas sem pedir permissão a ninguém.
Luísa: Talvez. - Apoiei os cotovelos no braço da poltrona. - Eu escolho o primeiro. Você sugere o segundo. E ninguém decide hoje.
Mikhail: Fechado.
Sergey apareceu na porta de vidro, bateu de leve.
Sergey: Precisamos realocar as torres do muro leste. Tentaram interceptar o sinal de uma câmera. Falhou, mas... não foi acidente.
Mikhail: Zaitseva.
Sergey: Ou alguém querendo parecer Zaitseva.
Mikhail: Dobre o perímetro. Rotas alternadas. - Voltou-se para mim. - Você não sairá sozinha até eu saber de onde veio o cheiro.
Levantei o queixo.
Luísa: Eu não saio sozinha de qualquer forma. - Toquei, sem pensar, a imagem no envelope. - Não por causa de você. Por causa dele.
Ele entendeu qual ele. O pequeno. O de dentro.
Mikhail: Então concordamos.
Luísa: Concordamos em sobreviver.
Mikhail: E em mais uma coisa.
Luísa: Qual?
Mikhail: Eu não toco em você sem permissão.
Fiquei quieta. O coração fez um movimento estranho, como se tropeçasse e voltasse a andar.
Luísa: Veremos se cumpre.
Mikhail: Cumpro o que prometo.
Sergey se retirou. O jardim ficou só nosso de novo. O chá esfriava. Minha cabeça, não. O som do equipamento na clínica voltava em ondas, como mar batendo em cais. Eu puxei uma das imagens para mim. Era só um borrão para olhos comuns, mas ali eu via casa. Via começo.
Mikhail: Você mudou o meu mapa hoje.
Luísa: O seu mapa tem linhas demais. Tente não me desenhar sem me perguntar.
Mikhail: Eu te pergunto agora: como você quer ser desenhada aqui?
Olhei para o vidro, para o jardim branco do lado de fora.
Luísa: Quarto trancado por dentro. Biblioteca livre. Visitas à minha mãe às quintas, sem arma visível. Psicóloga duas vezes por semana. Sem mão nas minhas costas em público. E eu sento do lado que quiser à mesa.
Mikhail: Biblioteca livre, visitas às quintas, psicóloga duas vezes, sem mão, lado esquerdo da mesa hoje. - Deu um meio sorriso. - O direito é meu.
Luísa: Não tinha dúvida.
Galina voltou, recolheu as xícaras sem interromper. Quando foi, deixei a última condição.
Luísa: E eu quero ficar com as fotos do ultrassom no meu quarto. Não no cofre. Não no seu escritório. No meu quarto.
Mikhail: No seu quarto.
Ele se levantou primeiro, mas esperou que eu me levantasse. Não ofereceu o braço. Não estendeu a mão. Cumpriu a própria regra. Saímos do jardim. No corredor, a mansão respirava mais fundo, como se o dia tivesse alongado músculos.
Na porta do meu quarto, parei.
Luísa: Hoje eu ouvi. - Levantei as imagens. - Amanhã, eu luto de novo.
Mikhail: Eu luto sempre. - Ele inclinou a cabeça. - Boa noite, Luísa.
Luísa: Boa noite, Mikhail.
Entrei. Tranquei. Encostei as costas na porta e deslizei até a poltrona. Coloquei as fotos na moldura que Galina tinha deixado vazia. Ficou torta; ajeitei. Fiquei olhando a sombra arredondada, o casulo na tela.
Luísa: Oi, viajante.
Do corredor, um passo. A voz baixa de Sergey.
Sergey: Qualquer coisa, aperta o botão cinza.
Luísa: Eu sei.
Sergey: Dorme, Luísa.
Luísa: Se der.
Apaguei as luzes. O quarto ficou novamente metade sombra, metade silêncio. Passei a mão no ventre. E prometi, bem baixinho, para que só quem mora aqui dentro ouvisse:
Luísa: Eu te carrego por inteiro. E não deixo ninguém te desenhar sem o meu nome.