Ela riu junto, e eu senti uma pontinha de alegria por finalmente ter alguém que dividisse as pequenas vitórias do meu dia.
- O que você vai fazer hoje, Zara?
- Curtir um pouco minha casa nova - respondi, abrindo um sorriso meio tímido.
- Casa nova? - Liz arqueou as sobrancelhas. - Ah, é mesmo! Às vezes esqueço que você acabou de chegar do internato.
- Pois é. E agora é a minha vez de escolher os móveis, o perfume do ambiente, a playlist... tudo. - Suspirei, sentindo aquele misto de liberdade e medo. - Sabe o que é viver 18 anos num lugar que não era seu?
Ela assentiu devagar.
- Quer ir pra lá comigo? Fazemos uma noite das meninas. Você é a primeira amiga que tenho em 18 anos.
Liz me olhou com um sorriso sincero, depois me puxou para um abraço.
- Então é oficial. Hoje é o início da nossa tradição.
- Noite das meninas? - brinquei.
- Com direito a fofoca, vinho e filme ruim.
Rimos juntas, e por um segundo esqueci que tinha passado o dia inteiro tentando entender o humor imprevisível do meu chefe.
- Adoraria, mas preciso passar em casa pra pegar umas roupas.
- Relaxa, vamos direto. Roupa é o que não falta - falei, sem pensar.
- Jura? Tá tentando me seduzir com guarda-roupa emprestado? - ela provocou.
- Só quero companhia, garota. - Ri, empurrando-a de leve. - Vamos antes que eu mude de ideia.
Descemos os degraus da entrada principal e, por impulso, olhei para trás.
Lorenzo saía do elevador, terno impecável, passos firmes, olhar fixo em algum ponto distante. Aquilo me deu um frio no estômago.
Ele exalava uma presença... difícil de ignorar. Não era apenas beleza - era controle. E eu, que nunca tivera nada, me sentia minúscula diante de alguém como ele.
Apertei o passo.
Liz percebeu.
- Fugindo de quem?
- De mim mesma. - Foi tudo o que consegui dizer.
Entramos no táxi e seguimos até meu novo prédio.
- Boa noite, seu Juca - cumprimentei o porteiro, que já me conhecia desde o dia da mudança.
- Boa noite, meninas. Cuidado com o frio, hein? - ele avisou, sorrindo.
No elevador, Liz falava sobre um cara que conheceu na academia - alto, moreno, e que provavelmente mentiu a idade. Eu fingia interesse, mas minha cabeça ainda estava na figura do Lorenzo, no modo como ele havia me olhado quando entrei na sala dele pela primeira vez: curioso, intenso, como se me conhecesse há anos.
A porta do elevador se abriu, e a brisa gelada do último andar me fez arrepiar. Abri a porta do apartamento e deixei Liz entrar primeiro.
- Meu Deus do céu, Zara! - ela exclamou, girando sobre os próprios pés. - Que apê é esse?
Sorri, meio sem graça.
- Eu ganhei quando saí do internato. Não sei de quem. Só recebi as chaves e os documentos.
Liz parou no meio da sala, completamente boquiaberta.
O apartamento realmente era um sonho: piso de mármore branco, janelas enormes com cortinas translúcidas e uma vista que parecia abraçar a cidade inteira. Um piano de cauda ocupava o canto da sala - algo que eu nunca tinha tocado, mas que me dava a sensação de pertencer àquele lugar.
- Sortuda você - ela disse, rindo e girando pelo espaço. - Meus pais são ricos, mas nem eles têm uma vista dessa. Isso aqui é o estilo Castellani de ser.
- Como assim? - perguntei, me servindo de vinho.
- Ui, que delícia - ela murmurou, pegando uma taça. - O Lorenzo Castellani é o maior proprietário de arranha-céus da cidade. E o seu apartamento é no último andar, com uma vista panorâmica. Coincidência?
Eu parei de respirar por um segundo.
- Tá dizendo que ele... - deixei a frase morrer.
- Que ele pode ter te dado esse apê? - Liz completou, rindo. - Vai saber. O homem é cheio de segredos.
Me sentei no sofá, tentando ignorar o aperto no peito.
- Ele é estranho - confessei. - Um dia parece distante, no outro... parece que quer saber tudo sobre mim.
- Zara Nox, não vai me dizer que tá afim dele!
- Claro que não, Liz! - respondi rápido demais. - Ele é meu chefe. E eu mal comecei lá.
Ela riu.
- Ok, mas não precisa mentir pra mim. Ele é bonito demais pra ser só "meu chefe".
- Ele é um homem complicado - murmurei, girando o vinho na taça. - E eu já tive complicações demais na vida.
Liz se jogou no sofá ao meu lado.
- Então vamos falar de coisa boa. - Ela pegou o controle da TV e colocou um filme qualquer de comédia romântica. - Regrinha da noite das meninas número um: nada de assuntos sérios.
- E número dois?
- Beber até esquecer o nome do ex inexistente.
Caímos na risada.
As horas passaram leves - rimos, comemos pizza fria e reclamamos da vida. Em algum momento, Liz adormeceu no sofá, o cabelo caindo sobre o braço da poltrona.
Fiquei observando a cidade pela janela. As luzes piscavam como constelações artificiais.
E, por algum motivo, pensei em Lorenzo.
Lembrei do modo como ele me olhou mais cedo, como seu olhar parecia atravessar a fachada profissional e tocar algo que nem eu sabia explicar.
Era desconcertante.
Perigoso.
"Não, Zara", murmurei pra mim mesma. "Ele é seu chefe. Foco."
Mas uma parte de mim - aquela que nunca teve ninguém olhando por ela - se perguntava por que ele parecia tão... protetor.
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Na manhã seguinte, acordei com o sol atravessando as cortinas. Liz ainda dormia, e eu aproveitei para preparar café.
Enquanto esperava o pão torrar, o celular vibrou com uma mensagem de número desconhecido.
> Lorenzo Castellani: Bom dia, Zara.
Esqueceu sua pasta de relatórios na minha sala ontem.
Pode passar aqui às 10h para buscá-la.
Meu coração acelerou.
Respirei fundo e respondi:
> Bom dia, senhor Castellani. Passo sim.
Liz abriu um olho, sonolenta.
- Quem tá te deixando nervosa logo cedo?
- Ninguém. - Sorri sem graça. - Meu chefe.
- Hm... o chefe gostoso?
- Liz! - protestei, mas acabei rindo.
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Quando cheguei à empresa, Lorenzo estava na sala de reuniões, sozinho, mexendo no notebook.
Bati de leve na porta.
- Com licença, senhor Castellani.
Ele ergueu o olhar - e por um instante o mundo pareceu parar.
Aquele olhar intenso, profundo, como se ele me estudasse em silêncio.
- Pode entrar, Zara. - Sua voz era baixa, firme. - Sua pasta está aqui.
Entrei, tentando parecer profissional, mas minhas mãos tremiam.
- Obrigada - murmurei, estendendo a mão.
Ele segurou a pasta, mas não soltou de imediato.
Nossos dedos se tocaram, e eu senti um arrepio percorrer o corpo inteiro.
- Está se adaptando bem? - perguntou, ainda me observando.
- Sim, senhor. - Respondi, desviando o olhar. - Só... cansada.
- Cansada do trabalho ou de fugir de mim? - Ele arqueou uma sobrancelha, com um meio sorriso.
Fiquei sem ar por um segundo.
- Não fujo do senhor - menti.
- Claro que não - ele respondeu, quase divertido. - Então, até segunda-feira, Zara.
Saí da sala com o coração disparado, tentando entender por que aquele homem mexia tanto comigo.
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À noite, Liz e eu fomos até um café novo perto da empresa. Ela falava sem parar, mas minha cabeça estava em outro lugar.
- Terra chamando Zara! - ela estalou os dedos. - Você tá a milhas daqui.
- Desculpa - ri. - Só tô cansada.
- Cansada nada. Isso é cara de mulher com crush.
Antes que eu pudesse responder, o som de passos apressados chamou nossa atenção. Um grupo de rapazes entrou, um deles - de terno amarrotado e hálito forte de álcool - veio direto na nossa direção.
- Olha só quem tá aqui... - ele disse, rindo torto. - As estagiárias da Castellani.
Liz se enrijeceu ao meu lado.
- Com licença, estamos ocupadas - ela respondeu seca.
- Ah, vem, só um drink...
- Ela disse que não - retruquei, tentando manter a calma.
Ele riu, aproximando-se demais.
O cheiro de álcool me fez engasgar.
- O que foi, boneca? Seu chefe não te deixa se divertir?
- Sai daqui - Liz disse, empurrando-o.
Mas ele agarrou meu braço.
Antes que eu pudesse reagir, uma sombra surgiu atrás dele.
- Solta ela. - A voz era fria, firme, impossível de não reconhecer.
Lorenzo.
Ele estava de paletó, olhar sombrio, e a presença dele fez o bar inteiro silenciar.
O cara soltou meu braço imediatamente.
- Eu só tava brincando, senhor Castellani.
- Brincadeira é coisa que você faz entre amigos - Lorenzo respondeu, se aproximando. - E elas não são suas amigas.
- Claro... claro, senhor. - O homem recuou, visivelmente pálido.
Lorenzo olhou para mim.
- Você está bem?
Assenti, mesmo com o coração disparado.
- Sim, senhor.
Ele olhou para Liz.
- Levem o vinho para viagem. E, da próxima vez, Zara... - Ele parou um segundo, os olhos fixos nos meus. - ...me avise se alguém cruzar o limite.
Saímos dali em silêncio.
Quando o carro parou em frente ao meu prédio, ele segurou o volante por um momento, como se quisesse dizer algo.
- Você não devia andar por aí sozinha à noite - disse por fim.
- Eu não estava sozinha.
- Ainda assim. - Ele virou o rosto, respirou fundo. - Boa noite, Zara.
- Boa noite, senhor Castellani.
Entrei no prédio com o coração batendo no ritmo errado, e uma certeza perigosa me atravessou:
quanto mais eu tentava fugir de Lorenzo Castellani, mais o destino me empurrava para os braços dele.
{...}