Então, uma memória surgiu. O cheiro enjoativo dos lírios que Camila me trouxera. Não era apenas doce; tinha um tom estranho e almiscarado. Um cheiro que agora eu reconhecia vindo do feno no fundo da jaula da onça. Era uma isca. Um perfume projetado para agitar, para provocar. Isso não era uma apresentação surpresa; era um ataque premeditado.
"Heitor, eu quero entrar", eu disse, minha voz tensa.
Ele acenou com a mão, desdenhoso, os olhos fixos na magnífica fera. "Não seja difícil, Lara. Camila se deu a muito trabalho por isso. Apenas sente-se e aproveite o show."
Aproveite o show. Minha própria execução pública. A ironia amarga era um gosto de bile na minha boca. Eu estava tão cansada. Cansada das mentiras, cansada da dor, cansada de lutar uma batalha que eu já havia perdido.
Camila, enquanto isso, estava em seu elemento. Ela se movia com o talento dramático de uma atriz no palco, arrulhando para a onça, sua voz pingando falsa afeição. Heitor estava cativado, seu rosto iluminado com uma excitação quase infantil. "Olha isso, Lara! Ela o tem comendo na palma da mão dela."
Mas a onça não estava olhando para a mão de Camila. Seus olhos amarelos e ardentes nunca me deixaram. Cada músculo em seu corpo poderoso estava enrolado, uma mola de intenção letal. Tentei arrastar minha cadeira para trás, para colocar mais distância entre nós, mas o terraço de pedra estava escorregadio com o orvalho da noite.
De repente, Camila soltou um suspiro teatral, tropeçando para trás com um grito de "Oh!". Sua mão, que estava apoiada no trinco da jaula, "escorregou". O pesado ferrolho de ferro se abriu com um clique doentio.
A porta da jaula se abriu.
A onça não hesitou. Com um rugido ensurdecedor que rasgou a noite tranquila, ela se lançou para frente.
A cabeça de Heitor se virou bruscamente. "Camila!", ele gritou, a voz rouca de terror. Em um único movimento fluido, ele se lançou, não em minha direção, mas em direção a ela, derrubando-a no chão e protegendo seu corpo com o seu.
Ele me deixou completamente exposta.
O mundo desacelerou. Eu vi a onça no ar, um borrão de fúria laranja e preta. Eu vi suas garras, estendidas como adagas curvas. Eu vi suas mandíbulas, largas e cavernosas, saliva pingando de suas presas.
E na fração de segundo antes do impacto, meus olhos encontraram os de Heitor. Eu o vi olhar para mim, seu rosto uma máscara de horror. Ele estava me vendo morrer. Ele a havia escolhido.
Um grito, fino e fraco, rasgou minha garganta quando a fera se chocou contra mim. A força foi como ser atingida por um caminhão. Uma dor branca e quente explodiu em meu ombro quando suas garras cravaram em minha carne. O mundo se dissolveu em um turbilhão de agonia, o fedor do hálito do animal e o som do meu próprio grito de morte.
A última coisa que vi antes que a escuridão me levasse foi Heitor, segurando Camila em um abraço protetor, seu corpo uma fortaleza construída para salvá-la, enquanto eu era deixada para os lobos. Ou, neste caso, para a onça.
Acordei com o cheiro estéril de antisséptico e o bipe rítmico de um monitor cardíaco. A dor era uma entidade viva, um fogo que consumia todo o meu corpo. Tentei mover meu braço e uma nova onda de agonia me fez gritar.
Uma enfermeira entrou apressada, o rosto gravado com preocupação profissional. "Calma, Srta. Aguiar. Você tem muita sorte. As garras da onça erraram sua artéria principal por menos de um centímetro. Mas o dano muscular e tecidual é extenso."
"Sorte", eu murmurei, a palavra uma piada amarga.
"A outra paciente teve mais sorte", continuou a enfermeira, afofando meu travesseiro. "Apenas alguns arranhões e um tornozelo torcido. O noivo dela não saiu do lado dela."
O noivo dela. Heitor. Ele estava com Camila. Enquanto eu estava aqui, dilacerada por uma fera que ela havia soltado, ele estava cuidando do tornozelo torcido dela.
A porta do meu quarto estava entreaberta. Eu podia ouvir suas vozes, abafadas e íntimas.
"A culpa é toda minha", Camila chorava, um som delicado e soluçante. "Sinto muito, muito mesmo, Heitor. O trinco... estava escorregadio."
"Shh, meu amor, não é sua culpa", a voz de Heitor era um murmúrio baixo e calmante. "Foi um acidente. Essas coisas acontecem."
Um acidente.
A palavra ecoou no espaço oco onde meu coração costumava estar.
"Eu só queria fazer algo legal para o aniversário dela", soluçou Camila. "E agora... sinto que deveria fazer algo para compensá-la. Eu deveria pedir desculpas."
"Você vai", prometeu Heitor. "Mas depois. Agora, você precisa descansar. Pelo bem do bebê."
Essa foi a terceira vez que ela mencionou "me compensar". Não era um pedido de desculpas; era uma performance. Uma maneira de cimentar seu papel como a vítima inocente e atenciosa aos olhos de Heitor.
Uma onda de raiva pura e negra me impulsionou para cima. Peguei o copo de água da minha mesa de cabeceira e o atirei contra a porta. Ele se estilhaçou com um estrondo satisfatoriamente violento.
As vozes do lado de fora pararam. Um segundo depois, Heitor invadiu o quarto, o rosto uma máscara de preocupação. "Lara! O que há de errado? Você está com dor?"
Ele correu para o meu lado, tentando pegar minha mão. Eu a puxei de volta.
"Por que a onça enlouqueceu?", perguntei, minha voz perigosamente quieta.
Ele recuou. "Lara, não se aborreça. Foi um acidente. O treinador disse que deve ter se assustado com alguma coisa."
Ele estava mentindo. Ele estava acobertando-a. Ele nem se deu ao trabalho de investigar. O homem que uma vez espancou um marginal na rua por me assediar não conseguia nem se dar ao trabalho de fazer algumas perguntas quando eu quase fui morta por uma fera.
Qualquer última brasa de esperança que eu pudesse ter abrigado por ele, por nós, foi extinta. Não havia mais nenhum lampejo do antigo Heitor. Ele se foi. O homem que me amava estava morto. Esta casca oca de homem diante de mim era um estranho.
Três anos atrás, em uma viagem a Nova York, um grupo de caras bêbados me encurralou do lado de fora do nosso hotel. Heitor apareceu do nada. Eu nunca tinha visto tanta fúria fria em seus olhos. Ele não apenas lutou com eles; ele os desmontou. Ele quebrou o nariz de um, deslocou o ombro de outro e os deixou todos uma bagunça sangrenta e choramingando na calçada. Ele me abraçou depois, seu corpo tremendo com a raiva residual, e sussurrou: "Ninguém toca no que é meu. Ninguém."
Agora, eu havia sido tocada. Eu havia sido rasgada e quebrada. E ele chamou isso de 'acidente'. Ele nem sequer levantou a voz.
Porque eu não era mais dele.
"Preciso ver como a Camila está", ele disse, já recuando para fora do quarto, seu dever para comigo cumprido com algumas mentiras apaziguadoras. "Ela ficou muito abalada."
Eu o observei ir, minha expressão em branco. Eu não gritei, não chorei, não me enfureci. Apenas fiquei ali, uma estátua esculpida em gelo, e deixei o silêncio do quarto de hospital me engolir por inteiro. Ele havia feito sua escolha.
E agora, eu faria a minha.
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