Saiu pelas ruas de Roma para relembrar o quão boa era a vida noturna da cidade com os generosos milhões cedidos por Morrison. Mais do que se distrair do que tinha lido, precisava se misturar, gastar... Parecer alguém digno da compra dos tesouros vaticanos. Seu chefe não pensava assim. Tinham tido trabalho construindo um histórico de filantropo para Gideon sob o pseudônimo de Albert Scott Fleming, deixando uma trilha que a verificação de identidade da segurança altíssima pudesse seguir e se convencer.
- Você já se divertiu o suficiente, chamou a atenção. Agora trabalhe ou...
- "Diga adeus ao caso", eu já entendi na vigésima vez que repetiu isso.
Agradecia internamente pelo homem estar a um oceano de distância para não vê-lo revirar os olhos. O bigodudo Lance Morrison passara tanto tempo sendo um burocrata que pareceu haver se esquecido como as coisas funcionavam em campo e frequentemente dizia aquele tipo de asneira para um agente de carreira do"calibre"de Gideon.
- O dia mais infeliz da minha vida foi quando o diretor jogou você no meu colo, seu arrogantezinho de m...
- O "arrogantezinho de merda" conseguiu chegar mais perto do que qualquer um que enviou. Enquanto vocês estavam ocupados brincando de gato e rato, eu estava naquele inferno cazaque fazendo graça para os americanos. - Ousou dizer em voz alta, e não esperou que o chefe o repreendesse. Tinha o direito, quase não saíra de lá com vida. - Mande os cachorros de Langley para vigiar se quiser, mas se atrapalhar minha operação... Você sabe como eu gosto de tomar um chá de sumiço.
Eram oito horas da manhã, num incomum dia nublado em Roma. Ao entrar em seu carro brilhante e azul marinho mais cedo, o homem de terno já presenciava as nuvens cobrindo o sol, dando um adeus para o céu límpido. Ao desligar o celular, encostou sua cabeça ao banco, pensando no compromisso seguinte, mas sem tirar a voz irritante e autoritária de Lance da cabeça.
- Babaca - murmurou sozinho. Com um prazer estranho desejou que houvesse uma escuta no carro para que o homem o tivesse ouvido xingá-lo.
Oito anos... Uma operação de escala global, um agente altamente qualificado e nada confiável, e a maldita burocracia internacional envolvida. Todos queriam uma fatia do sucesso que Gideon estava prestes a atingir naquela noite sem saber do quanto ele tivera que sacrificar para chegar àquele momento. Àquela grande noite que, se tudo funcionasse direito, poderia finalmente pagar sua dívida e colocar fogo no distintivo da INTERPOL no quintal de casa enquanto começava a aproveitar a aposentadoria em algum lugar paradisíaco.
Pegou a direção da Piazza Navona, para um restaurante privado que certamente o ofereceria um café da manhã decente. Assim que a loucura começasse, precisaria estar completamente acordado.
Ao mesmo tempo, atrás do volante, Alexandra Hester completava diversas ligações importantes que simplesmente não podia adiar, mas adiava por estar ávida demais por uma boa fatia do bolo de limão. O trânsito caótico de Roma não era mais estranho a ela, visto que passara os quinze dias anteriores dirigindo para os diversos compromissos e reuniões maçantes com homens de fala macia e batina se quisesse que corresse tudo como esperado. Felizmente não aquele dia.
Belmont sofria com diversos automóveis inundando sua vista. Detestava o trânsito de Roma tanto quanto detestava o da Índia e do Oriente Médio onde parecia obrigatório estar atrás do volante com pelo menos meio litro de álcool no sangue. O clima fresco e gelado no interior de seu carro, enquanto ouvia Lighthouse Family, trouxe um pouco de paz de espírito. No banco do passageiro, em cima de seu computador, pastas e um sobretudo, estava uma garrafa de uísque John Walker comemorativa rara - gastar alguns milhares de dólares num líquido extremamente exótico nunca foi tão confortante. Lance não se importaria com mais um item no inventário da operação sendo o responsável por Gideon querer, de fato, estar meio bêbado toda vez que recebia uma ligação dele cobrando o fim daquela caçada. Albert Scott Fleming, sua identidade fictícia, era um homem extravagante, tinha de agir como tal.
Pouco depois, as nuvens vinham a cobrir o sol novamente, escurecendo a cidade e presenteando-a com gotas de chuva, que estavam gradativamente se multiplicando. Estava a apenas cinco minutos do restaurante agora e seu estômago roncava mais alto a cada milha percorrida. Se abrisse aquela "sagrada" garrafa, o uísque desceria tão fácil quanto um saco de areia numa gangorra.
"Tentador..."
Para a mulher no Bentley, os quinze minutos restantes de trajeto passaram quase despercebidos com a nada agradável trilha sonora das ligações sobre o maldito quadro secreto de Rafael. A fachada bonita e quase escondida do restaurante lhe dava alívio, e já pensava no delicioso bolo de limão com creme que comeria quando se preparava para entrar na única vaga ao lado do prédio clássico, vista por sorte. Não fosse a interrupção de um BMW azul vindo do nada, que no intuito de tomar o espaço quase a acertara em cheio na lateral.
- Filho da puta! - A boca bem desenhada de um batom vermelho fechado proferiu o xingamento com propriedade.
O homem abaixou seu vidro, perguntando:
- Tudo bem contigo, moça? - Não conseguia vê-lo direito com a confusão de reflexos e a falta de sol.
- Você quase bateu na minha porta, imbecil! - Ela respondeu após abaixar também seu vidro.
A raiva era totalmente explícita em seu semblante. Sem mais, arrancou com o carro à procura de outro espaço. O dia prometia continuar um desafio à paciência dela e só conseguiria relaxar quando o bolo de limão estivesse à sua frente. Até lá, as chances de cometer algum crime com muitas testemunhas eram elevadas.
Gideon ficou rindo dentro do carro ao presenciar tal mulher com um tremendo pavio curto. Não conseguiu ver nada além da sombra de seu batom.
- A cidade do amor, não? - disse para si mesmo.
Ele estacionou o carro na porta do sobrado, enquanto a mulher do Bentley estacionou cinco vagas à frente dele. Os céus estavam confusos, com chuvas curtas e momentos ensolarados breves, portanto, ele resolveu levar o sobretudo nos ombros ignorando a pasta e as informações. Perdeu bons minutos no interior do carro apenas respirando fundo, repassando toda a bomba de informações que recebera pensando no momento em que teria de finalmente encarar o passado em nome do presente e do futuro.
De todas as missões que havia completado, aquela seria a mais difícil...
Vinte minutos depois, Gideon entrou no restaurante, subindo pela escadinha íngreme e discreta para os andares superiores. Ao chegar no terraço do secreto "Canta Paradiso", apreciou uma vista espetacular do mar de telhados da cidade. O exterior simples do sobrado escondia o piso de madeira polida, uma arquitetura ultra moderna misturada ao aconchego em tons quentes da Itália, belos artefatos de incrível detalhe e ternura, e diversos quadros espetaculares desenhados pelo dono do estabelecimento e outros artistas independentes. Antônio Bassanelli era um amante das artes, embora seu coração estivesse na cozinha.
Uma suave bossa nova ressoava pelo ambiente ainda tranquilo.
Esquadrinhou o lugar para escolher onde tomaria seu café tendo sua atenção chamada imediatamente pela mulher de vestido ameixa justo que abraçava firme seus quadris largos.
Com os olhos grudados no celular, a mulher do Bentley caminhou a passos largos e objetivos por entre as mesas quase vazias dirigindo-se a qual havia sido reservada. Depositando a bolsa carteira ao lado, ela soltou um suspiro longo de alívio ao sentar-se finalmente. E com absoluta calma, examinou o cardápio sobre o prato, aproveitando-se da atmosfera acolhedora do lugar e torcendo para que nada mais tirasse sua paz.
Gideon resolveu ir mais a fundo no restaurante, em direção às cadeiras, e ao invés de procurar uma mesa, ele seguiu aquela silhueta vagamente familiar que acabara de se sentar.
Um estranho arrepio o acometeu, como se tivesse sido pego com a mão nas calças. Aproximou-se por trás, com as mãos no bolso e olhar fixo no que a mulher fazia de costas para ele. Cabelos longos e castanhos desciam em ondulações macias e brilhantes por suas costas, chegando à finura de sua cintura acentuada pelo cinto estreito e o modelo do vestido justo.
Sem se conter, acabou deixando seu corpo reagir livremente com um arrepio a escalar sua coluna à medida que se aproximava.
Impossível... Mas não improvável, pensou consigo mesmo, mas quando o dono do lugar colocou um belo prato de bolo de limão diante dela recebendo um suave e disposto "grazie, Antônio" pelo agrado, e a mesma girou o garfo nos dedos antes de começar a comer, a ficha caiu.
Como uma bigorna num telhado de vidro.