Coloquei uma roupa simples, mas confortável: uma camiseta branca de mangas curtas, shorts jeans e tênis. Não precisava chamar atenção - não ainda.
Desci as escadas e encontrei apenas Ivone, a governanta, preparando o café, e Ezdra, encostado no balcão, ainda com o cabelo bagunçado e aquele ar de arrogância natural que parecia seguir ele onde quer que fosse.
- Bom dia! - cumprimentei, tentando soar animada.
- O que tem de bom? - Ezdra respondeu, cruzando os braços e me olhando com aquele sorriso torto que eu já começava a odiar e... gostar ao mesmo tempo.
- Grosso! - retruquei, cruzando os braços também.
- Não briguem, crianças - Ivone disse, suspirando e abanando a mão.
- Desculpe, Ivone - murmurei, e Ezdra apenas se calou, ainda me observando.
- Vamos! - ele disse de repente, saindo da cozinha.
- Para onde? - perguntei, seguindo atrás dele.
- Escola, né? Vitorio pediu pra te levar. - Ezdra deu de ombros, pegando as chaves do carro.
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O caminho até a escola foi silencioso, pelo menos inicialmente. Eu ficava pensando em como minha vida tinha mudado tanto em poucos dias: a morte da minha mãe, a mudança pra uma casa enorme e fria, e agora... Ezdra, sempre me provocando, sempre presente, mesmo quando eu queria distância.
Chegamos ao portão da escola, e a primeira coisa que notei foi o olhar de Atos, que já nos observava com um sorriso provocador. Atrás dele, Felícia sussurrava para algumas amigas, o sorriso debochado no rosto.
- Olha só quem chegou... - Atos chamou, fazendo questão de ser ouvido. - A nova pirralha da família Navarro.
- E olha só quem tá com ela - Felícia completou, com um ar de superioridade. - Será que ele vai mesmo proteger você, Ezdra?
Olhei para Ezdra, esperando que ele fizesse alguma coisa. E ele não decepcionou.
- Se você abrir a boca de novo, Felícia, vai se arrepender. - Ele disse de forma calma, mas carregada de ameaça.
Ela revirou os olhos, claramente não acostumada a ser desafiada. Atos deu um passo à frente, pronto para provocar.
- Sério? Você vai mesmo se meter na minha vida?
Ezdra se aproximou, e apenas colocou o braço na frente de Felícia.
- Sim. Ela não tá sozinha. E se você continuar com esse comportamento... vai se arrepender. - Ele olhou para mim, e piscou. - Agora vai, pirralha.
Sorri discretamente, sentindo um calor estranho no peito. Tinha algo reconfortante naquele jeito dele me defender, mesmo que fosse irritante.
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A aula de Artes Cênicas começou logo depois. O professor, Sr. Lourenço, era aquele tipo de figura carismática, que fazia todos se sentirem especiais só por estarem na sala.
- Bom dia, turma! - ele começou, a voz ecoando pela sala. - Hoje teremos um desafio diferente. Vocês vão trabalhar em grupos e produzir uma releitura de "Romeu e Julieta". Quero originalidade, emoção e interação entre os personagens.
Olhei em volta, e meus olhos se cruzaram com os de Ezdra. Ele levantou uma sobrancelha, e eu percebi o mesmo sorriso torto de antes: "Isso vai ser interessante", parecia dizer.
- Ivy, você vai comigo. - Ezdra disse, puxando-me para o mesmo grupo que ele já havia formado com Becca e Blake.
- Como assim? Eu não... - tentei protestar, mas ele simplesmente sorriu.
- Sem protestos. Você é minha Julieta. Aceita ou não? - Ele disse, meio brincando, meio sério.
Olhei para Becca e Blake, e todos riram. Becca me lançou um olhar de "boa sorte", enquanto Blake deu de ombros, parecendo achar tudo divertido.
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Começamos a planejar o trabalho. A princípio, houve tensão - Ezdra insistia em improvisar, enquanto eu queria seguir uma linha mais clássica.
- Escuta, Ezdra, se a gente quer impressionar o professor, não dá pra sair inventando cenas malucas do nada! - reclamei.
- É, claro... porque seguir o mesmo roteiro antigo sempre dá certo, né Julieta? - ele respondeu, me provocando e fazendo todos rirem.
Apesar da irritação, eu senti algo novo: trabalhar com ele me tirava do eixo, mas também me fazia rir de forma genuína.
- Tá, tá - murmurei, rindo também. - Mas pelo menos, vamos tentar manter um pouco da história original.
- Originalidade é importante, pirralha. Mas eu prometo... vamos fazer algo memorável.
Blake e Becca entraram na conversa, sugerindo ideias para cenários, falas e figurinos improvisados. Aos poucos, a tensão inicial foi se desfazendo, e sentimos a química entre o grupo se fortalecer.
- Ivy, acho que você e Ezdra deveriam ensaiar as cenas principais. - Becca disse, com entusiasmo. - Vocês dois vão dar conta de toda a emoção da história.
- Não sei se quero toda essa responsabilidade - murmurei, olhando para ele.
- Vai dar - disse ele, sorrindo. - Confia em mim.
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O ensaio começou e, conforme a encenação avançava, percebi algo interessante: Ezdra mudava completamente quando atuava. Ele se tornava intenso, expressivo, emocional - diferente do garoto arrogante do jardim de casa. E, de algum modo, isso mexia comigo.
Quando chegou a cena do balcão, eu não esperava que ele se aproximasse tão de perto. O coração acelerou, e por um instante, a realidade e a ficção se misturaram.
- Julieta... - disse ele, com a voz baixa, quase sussurrada. - Por que você foge de mim?
- Romeu... - murmurei, mantendo o personagem - Eu não posso... - Mas o "não posso" parecia verdadeiro também fora do palco.
Ele segurou minha mão, de leve, e eu senti um arrepio subir pela espinha. Todos os outros no grupo desviaram o olhar, percebendo que algo estava acontecendo entre nós.
- Isso tá ótimo! - Becca exclamou, tentando disfarçar o rubor no rosto. - O professor vai amar.
Sr. Lourenço entrou na sala naquele momento, e ao ver a cena, ergueu uma sobrancelha e sorriu:
- Excelente! Vejo que temos química aqui! Continuem, quero ver mais emoção.
O ensaio continuou e, aos poucos, Ezdra e eu fomos nos aproximando mais, a tensão diminuindo, a confiança crescendo. Até que a última cena chegou: o "quase beijo" no palco.
- Ivy... - ele murmurou, novamente na pele de Romeu, mas o olhar dele denunciava algo mais.
- Romeo... - tentei manter a postura de Julieta, mas o coração batia rápido demais.
O toque da mão dele parecia eletricidade. E por um instante, achei que ele fosse realmente me beijar. Mas então, o som da campainha cortou tudo.
- Próxima aula, turma! - o Sr. Lourenço anunciou.
Nos afastamos rapidamente, corando, mas com um sorriso cúmplice.
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No intervalo, Atos e Felícia não haviam desistido. Tentaram nos provocar de novo.
- Então, ainda tá gostando do seu Romeo particular, Ivy? - Felícia perguntou, rindo.
- Sai da frente. - Ezdra respondeu, cruzando os braços e lançando aquele olhar intimidante.
- Ué, você tá sempre por perto... - Atos murmurou, desconfiado.
- Eu tô sim. E vou continuar. - Ezdra respondeu, firme. - Agora se manda, antes que eu me irrite.
Eles desistiram. Pela primeira vez, Felícia parecia genuinamente irritada, e Atos sem graça. Sorri discretamente, percebendo que Ezdra realmente cuidava de mim - de uma forma irritante, protetora e... estranhamente reconfortante.
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