Virei o rosto e lá estava ele.
Caio dormia tranquilamente, de costas pra mim, respirando fundo, como se o mundo estivesse em paz. Por um breve segundo, imaginei que o pesadelo da noite anterior não passava de mais uma daquelas discussões que acabam em lágrimas e promessas vazias. Mas não era. Era real. Tudo nele ainda doía - o jeito que me olhava desconfiado, o modo como transformava qualquer gesto em uma ameaça à masculinidade frágil que eu já não reconhecia.
Quando ele se levantou, ajeitou o cabelo, me deu um beijo rápido na testa e disse:
- Bom dia, meu amor. - Como se nada tivesse acontecido.
A naturalidade dele me cortou por dentro. Eu apenas assenti, calada, fingindo que ainda havia "nós". Mas a verdade é que já fazia tempo que só existia ele - e eu, perdida dentro de uma versão de mim mesma que não sabia mais quem era.
Enquanto ele tomava banho, fiquei sentada na cama, observando o reflexo do sol batendo no espelho do guarda-roupa. Aquele quarto era o mesmo desde que eu tinha quinze anos. Eu tinha crescido ali, acreditando que amor era sinônimo de entrega total. Que era normal abrir mão de si por alguém.
Mas amor não era isso. Amor não era viver pisando em cacos de vidro, tentando não sangrar mais do que o necessário.
Peguei o celular.
Meus dedos tremiam. O coração parecia gritar dentro do peito. Eu já tinha ensaiado aquela mensagem dezenas de vezes, mas nunca tive coragem. Até agora.
> "Eu preciso de um tempo pra mim, Caio."
Enviei antes que o medo me fizesse desistir.
A resposta veio em segundos.
> "Tempo? Quanto?"
Suspirei fundo, fechei os olhos.
> "Não sei... Eu preciso me encontrar. Eu não sei mais quem sou."
A bolinha de digitação surgiu quase imediatamente.
> "Tem algo errado aí. Você diz que precisa de um tempo depois que brigamos porque tinha caras olhando pra você naquela festa?"
Senti um nó subir pela garganta. Era sempre assim. Ele distorcia tudo. Eu só queria paz, e ele queria controle.
> "Caio, eu estava com você. Do seu lado. Se eu sou sua mulher, você tem que confiar em mim. Agora está insinuando que eu te traí? Isso é o cúmulo do absurdo! Há um ano estamos brigando sem parar. Estamos nos afastando e só eu estou tentando. Você mudou. Se tornou manipulador, possessivo e... doente de ciúmes. Isso é loucura."
> "Loucura é você querer acabar com um relacionamento de 5 anos por uma discussão besta. Certeza que você tem outro."
As palavras me atravessaram como uma lâmina fria.
Li uma, duas, três, quatro vezes.
Meu corpo tremia. Meus olhos queimavam. Eu só conseguia pensar: como ele pôde?
Eu tinha apenas quinze anos quando entreguei tudo a ele - tempo, inocência, confiança, corpo e alma. Ele foi meu primeiro homem, meu primeiro amor... e agora me acusava de algo que eu jamais fiz.
> "Eu preciso de um tempo."
> "Quem dá tempo é relógio. Se quer um tempo, é melhor terminar."
Meu coração parou por um instante.
Eu podia simplesmente implorar pra ele mudar. Fazer o que sempre fiz: pedir desculpas, chorar, prometer tentar mais. Mas algo dentro de mim - algo que eu achava morto - se levantou.
Era o meu limite.
> "Okay. Acabou."
Demorei um segundo pra entender o que tinha acabado de escrever. Minhas mãos suavam, o peito doía, mas... havia um alívio estranho ali.
Um silêncio.
Uma liberdade tímida, nascida da dor.
> "Amélia, você não tá falando sério."
> "Você quis assim. Adeus."
Desliguei o celular.
As lágrimas vieram de uma vez, sem piedade. Apoiei as mãos na pia do banheiro e encarei meu reflexo. Os olhos inchados, o rosto pálido, os lábios tremendo.
- Você vai ficar bem - murmurei pra mim mesma, tentando acreditar. - Você precisa ficar bem.
Tomei um banho rápido, vesti o uniforme da loja e saí. O ar da rua era leve demais comparado ao peso que eu carregava por dentro. Montei na moto e deixei o vento secar o resto das lágrimas.
Hoje eu tinha que ser forte.
Hoje eu tinha que começar do zero.
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As horas no trabalho passaram arrastadas. Eu sorria para os clientes, atendia com educação, mas por dentro estava em frangalhos. Cada toque no celular me fazia pular de susto. Cada notificação, um medo: será ele?
Mas Caio não mandou mais nada. Nem um áudio, nem uma ligação.
O silêncio dele foi a confirmação que eu precisava - e a dor que eu não queria sentir.
Quando o relógio marcou meio-dia, pedi pra sair pro almoço. Peguei a moto e fui direto à casa dos pais dele. A mesma casa onde eu morei nos últimos anos, a mesma que guardava todas as lembranças que agora eu precisava deixar pra trás.
A sogra me recebeu com um sorriso hesitante.
- Oi, minha filha... Caio me contou que vocês brigaram.
Eu apenas balancei a cabeça, tentando disfarçar o choro.
- Eu só vim pegar umas roupas. - respondi, firme. - O resto eu pego outro dia.
Ela me olhou com pena. E eu odiei isso. Odiei ser olhada como quem perde.
- Vocês se amam tanto, Amélia... pensa com calma, viu?
- Eu pensei por cinco anos. - cortei, sem conseguir disfarçar a voz embargada. - Agora eu preciso pensar em mim.
Subi as escadas com o coração na garganta. Cada passo ecoava como um adeus.
Abri o guarda-roupa e comecei a jogar roupas dentro de uma mochila. Cada peça que eu dobrava parecia arrancar um pedaço de mim.
A camiseta que ele usava pra dormir.
O casaco que comprei pra ele no nosso primeiro inverno juntos.
A foto colada no espelho, sorrindo, sem saber o que o tempo faria com a gente.
Quando desci, a sogra me abraçou.
- Cuida de você, tá?
Assenti, com lágrimas nos olhos.
- Sempre cuidei dele... acho que agora é minha vez.
Saí sem olhar pra trás.
O vento da tarde bateu no meu rosto e levou consigo um pouco da dor.
Enquanto pilotava, percebi que não fazia ideia de quem eu era fora dele. Não sabia o que gostava, o que queria, o que me fazia sorrir. Eu tinha me tornado a sombra de uma relação doente - e agora precisava aprender a ser luz de novo.
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Quando cheguei à casa da minha prima Clara, ela abriu a porta antes mesmo de eu descer da moto.
- Meu Deus, Amé! O que aconteceu? - perguntou, assustada, ao ver meu rosto.
- Acabou, Clara. Eu terminei com o Caio. - A voz saiu trêmula, mas verdadeira.
Ela me puxou pra dentro e me abraçou com força.
- Finalmente, prima... finalmente você fez o que devia ter feito há muito tempo.
Desabei nos braços dela. Chorei tudo que não chorei nos últimos meses. O alívio e a dor se misturaram, como chuva caindo em terra seca.
- Eu tenho medo, Clara. Eu não sei viver sem ele.
- Você tem medo porque ele te fez acreditar que não podia. Mas pode, Amé. Você é forte. Sempre foi.
- Forte? - soltei uma risada amarga. - Eu me anulei por ele. Esqueci quem sou.
- Então agora é hora de se lembrar.
Ela me guiou até o quarto de hóspedes e deixou que eu ficasse sozinha por um momento. Sentei na cama e olhei pra mala aberta, as roupas amontoadas, o caos que refletia exatamente o que eu sentia por dentro.
Peguei o celular.
Nenhuma mensagem. Nenhuma ligação.
Pela primeira vez, Caio estava realmente em silêncio.
E foi nesse silêncio que eu percebi: o amor não deveria doer tanto.
Não deveria me fazer ter medo de ser eu mesma.
Deitei na cama, respirei fundo e fechei os olhos.
O vazio doeu, mas junto dele havia uma semente de esperança.
Amanhã seria outro dia - e talvez, só talvez, o começo da mulher que eu sempre quis ser.
{...}