Peguei a escova, arrumei o cabelo num coque simples e respirei fundo. Hoje seria um novo começo.
A entrevista na Mancini era às oito, e eu havia acordado às cinco e meia. Nervosismo, claro. Dormir tranquila parecia algo que não sabia mais fazer.
Clara já estava acordada também. O cheiro de café recém-passado tomava conta da cozinha.
- Bom dia, dorminhoca - ela disse com aquele sorriso sereno que sempre conseguia me acalmar. - Nervosa?
- Um pouco... - confessei, sentando à mesa. - Faz tanto tempo que não faço uma entrevista.
- Você vai arrasar, Amelinha. - Ela colocou uma xícara à minha frente. - E, se não for essa, virá outra. Mas, no fundo, eu sinto que essa vaga já é sua.
Sorri fraco. Eu queria acreditar naquelas palavras. Queria mesmo. Tomei o café devagar, sentindo o líquido quente descer rasgando a garganta, como se me lembrasse de que eu ainda estava viva, de que ainda dava tempo de recomeçar.
O celular vibrou em cima da mesa. Era uma mensagem de Rebeca.
> Rebeca: "Vai dar certo, amiga. Deus tá te levantando. E quando Ele faz isso, ninguém derruba." ❤️
Respirei fundo e respondi apenas:
> Eu: "Amém. Tô indo."
Peguei minha bolsa, agradeci Clara mais uma vez e saí. O vento frio da manhã bateu no meu rosto e me fez lembrar da vida lá fora. As ruas ainda estavam meio vazias, e o sol começava a nascer tímido entre os prédios.
O prédio da Mancini era enorme. Moderno. Tinha aquele cheiro de coisa nova e limpa, como se cada canto dissesse "aqui começa algo grande". Sentei na sala de espera, e o silêncio era tão absoluto que até o som do meu coração parecia alto demais.
Minhas mãos tremiam. Eu as escondi no colo, tentando disfarçar o nervosismo. Foi quando a porta se abriu.
Um homem alto, de terno cinza escuro e gravata azul marinho, entrou com passos firmes. Ele era a própria definição de imponência. O olhar concentrado, a expressão séria.
Me levantei instintivamente.
- Amélia Duarte? - perguntou, a voz grave ecoando no ambiente.
- Sim, senhor. - estendi a mão, tentando parecer confiante.
Ele apertou minha mão com firmeza.
- Lucas Ferraz. Diretor da Mancini. - Um leve sorriso surgiu. - É um prazer conhecê-la, senhorita Duarte.
- O prazer é meu, senhor Ferraz.
- Vamos até a minha sala? Assim conversamos melhor.
Assenti, acompanhando-o por um corredor amplo e envidraçado. As paredes refletiam a luz natural e o som dos saltos do meu sapato ecoava alto.
Quando entramos na sala dele, senti um arrepio percorrer meu corpo. Era um espaço elegante, minimalista. Uma grande janela dava vista para toda a cidade. Lucas sentou-se atrás da mesa, e eu fiquei ali, do outro lado, tentando parecer calma.
- Então, Amélia - ele começou, entrelaçando os dedos sobre a mesa -, quantos anos você tem?
- Vinte. - respondi de imediato.
- Trabalhou quatro anos na loja, certo?
- Sim, senhor. Entrei com dezesseis. - Dei um sorriso tímido. - Comecei dobrando roupas, depois fui para o caixa, e, no fim, fazia um pouco de tudo.
Ele levantou uma sobrancelha, curioso. - Uma verdadeira Severina, então?
Ri, um pouco sem graça.
- Pois é. Eu fazia o que precisava.
Lucas soltou uma risadinha baixa. - Gosto disso. Gente que não mede esforços. E os estudos?
Minha garganta apertou.
- Senhor, não vou mentir pra você. Parei no segundo ano do ensino médio. Muita coisa aconteceu... - respirei fundo - mas estou decidida a voltar. Pretendo terminar pelo EJA e já começar o técnico em administração.
Ele me observou em silêncio por alguns segundos que pareceram minutos.
- E o que te motivou a se candidatar pra Mancine?
- A vontade de recomeçar - respondi, com sinceridade. - Preciso de um novo começo, de um novo ar. E... - dei um sorriso pequeno - essa oportunidade pareceu um presente. Uma resposta de oração, sabe?
Lucas se recostou na cadeira, cruzando os braços. - O cargo é de auxiliar de RH. Você vai aprender muito. E, com o tempo, se mostrar o que eu estou vendo aqui, pode subir rápido.
Fiquei sem palavras.
Ele se inclinou para a frente, apoiando os cotovelos na mesa. - Mas quer saber de uma coisa, Amélia? Independente da entrevista... esse cargo já é seu.
Meu coração quase parou.
- Sério? - perguntei, incrédula.
- Sim. - Ele sorriu de leve. - Qualquer indicação de funcionário, principalmente vinda do meu grande amigo Vinícius, é mais que ouvida.
Meus olhos se encheram d'água.
- Ai, meu Jesus... muito obrigada, de verdade! Prometo fazer o meu melhor, aprender tudo o que for possível e nunca decepcionar.
- É exatamente esse tipo de gente que eu quero aqui. - Ele estendeu a mão. - Bem-vinda à Mancini Corp, senhorita Duarte.
Apertei a mão dele, sentindo o peso da emoção me atravessar. Era como se o universo finalmente estivesse abrindo uma fresta de luz.
Saí da sala com as pernas bambas. Quando entrei no elevador, chorei baixinho. Não de tristeza - mas de alívio. Era como se Deus tivesse me abraçado e dito: "Tá vendo? Eu ainda estou aqui."
Passei o resto do dia leve. Despedi-me da loja antiga com o coração apertado, mas em paz. Foram quatro anos bons, de aprendizado, de gente que me acolheu, mas agora eu precisava ir.
No fim da tarde, voltei pra casa com o rosto cansado e o coração acelerado. Clara me esperava com uma taça de suco na mão e um sorriso orgulhoso.
- E então? - perguntou, antes mesmo que eu tirasse os sapatos.
- Consegui. - Respondi, a voz embargada.
Ela soltou um grito e me abraçou.
- Eu sabia! Eu sabia, Amelinha!
- Deus foi bom comigo. - Sorri, com os olhos marejados. - Agora eu só quero honrar essa oportunidade.
Nos sentamos no sofá e conversamos por horas. Falamos sobre planos, sobre o curso técnico que eu queria fazer, sobre o quanto eu precisava focar em mim. Pela primeira vez em muito tempo, eu me senti esperançosa.
Quando a noite caiu, tomei um banho demorado. A água quente escorrendo pelo meu corpo parecia lavar um pouco da dor. Coloquei meu pijama velho, me deitei no sofá com uma manta e liguei a TV. A novela estava começando.
O celular começou a vibrar na mesa. Peguei sem olhar e o coração parou por um segundo.
Caio.
O nome piscava na tela como uma ferida aberta.
Respirei fundo, mas, antes que pudesse decidir se atendia ou não, uma mensagem chegou:
> Caio: "Amélia... onde você está? Não consegui dormir essa noite."
Caio: "Pelo amor de Deus, não faz isso comigo, não faz isso com a gente."
Caio: "São cinco anos, Amélia."
Caio: "Eu te amo."
As palavras me atingiram como uma lâmina. Os olhos se encheram de lágrimas. Eu queria responder. Queria gritar que também o amava. Que ainda sentia falta dele, do cheiro, da voz, do toque.
Mas amar não era o suficiente.
Fechei os olhos e bloqueei o número. O som do clique soou como um ponto final - doloroso, mas necessário.
Encostei a cabeça na almofada, deixando as lágrimas caírem livres.
- Um dia vai doer menos - sussurrei pra mim mesma.
Na tela, a protagonista da novela dizia algo sobre recomeços. Sorri fraco. Talvez, de alguma forma, fosse Deus me lembrando que o meu também estava só começando.
E, pela primeira vez em muito tempo, adormeci sem medo.
{...}