Todos sabiam que Heitor e eu éramos próximos na faculdade, mas era só isso. Uma conexão silenciosa e não dita. A narrativa da "boa amiga" era o que todos haviam construído, uma caixa conveniente para me colocar. A ideia de casamento estava tão fora de sua percepção que beirava a blasfêmia. Seus rostos se transformaram de curiosidade em choque total, e depois em uma percepção crescente e horrorizada.
Jéssica, sempre a atriz, foi a primeira a se recuperar. Ela forçou uma risada brilhante e frágil. "Casados? Ah, Alice, você sempre teve uma imaginação tão vívida!" Ela se afastou de Heitor, caminhando em minha direção com uma pena paternalista nos olhos. "Não vamos deixar as coisas estranhas, querida. É a noite do Heitor, a nossa noite. Aqui, vamos brindar... ao seu bem-estar." Ela enfiou uma taça de champanhe na minha mão, seu sorriso fixo, mas seus olhos frios.
Olhei para a taça, depois para ela. O líquido cintilava, refletindo as luzes fortes do teto. Parecia pesado, envenenado. Afastei gentilmente sua mão, balançando a cabeça. "Não, obrigada. Eu não bebo com mentirosos."
Sua fachada rachou. Um lampejo de raiva genuína cruzou seu rosto, rapidamente mascarado por uma indignação ensaiada. "Alice, sério! Você está fazendo uma cena. O que é isso, ciúmes? Só porque o Heitor se tornou um sucesso e superou suas... origens humildes?" Ela colocou a mão na cintura, adotando uma postura de inocência ferida. "Eu sei que você era a assistente executiva dele naquela época, Alice. Lembro-me de como você trabalhava duro. Leal, sempre. Mas você também sabe o quanto ele precisava de você, o quanto você dependia dele."
Suas palavras, destinadas a me envergonhar, em vez disso me puxaram de volta para um passado que eu pensei ter enterrado meticulosamente.
Flashback
Era um contraste gritante com este salão opulento. Um apartamento empoeirado e apertado na garagem, o ar denso com o cheiro de café velho e ambição. Heitor, então um visionário de olhos arregalados e implacável, rabiscando algoritmos em um quadro branco, seus olhos ardendo de excitação febril.
"Alice", ele dizia, passando a mão pelo cabelo já bagunçado, "é isso. Esta é a ideia que muda tudo. Mas eu preciso de você. Preciso da sua mente, da sua garra. Vamos construir isso juntos."
E eu acreditei nele. Recém-saída da faculdade, armada com um diploma de marketing e um coração idealista, mergulhei de cabeça em seu mundo. Eu gerenciava sua agenda, escrevia suas propostas, ligava incansavelmente para investidores. Trabalhava dezoito horas por dia, movida a miojo barato e à crença inebriante em nós. Ele era o rosto, eu era o motor. Quando os primeiros investidores finalmente apareceram, foi o meu plano de negócios meticulosamente elaborado que selou o acordo, embora seu carisma tenha levado todo o crédito.
Às vezes ele olhava para mim, tarde da noite, quando o código finalmente estava compilando, e dizia: "Eu não conseguiria fazer nada disso sem você, meu amor. Você é minha âncora. Meu tudo."
Essas palavras eram meu oxigênio. Elas me sustentaram por meses de quase pobreza, pelo peso esmagador de tarefas intermináveis. Ele ocasionalmente me comprava um colar barato, um vestido simples, dizendo: "Em breve, Alice. Em breve teremos tudo." E eu acreditava no seu "em breve".
Então veio o dia em que ele se ajoelhou, não com um diamante, mas com uma simples aliança de prata. "Case-se comigo, Alice. Seja minha esposa. Minha arma secreta. Minha parceira para a vida." Ele jurou que o segredo era para nossa proteção, para evitar espionagem corporativa, para manter nossa vantagem competitiva. "Quando formos grandes o suficiente, quando formos intocáveis, então contaremos ao mundo. Será o nosso triunfo."
Nós nos casamos em um cartório silencioso, apenas nós e dois funcionários perplexos. Parecia um pacto sagrado. Por um tempo, ele foi terno, atencioso, mesmo quando estava ocupado. Ele me trazia café pela manhã, lembrava das minhas bandas indie obscuras favoritas, me dizia que eu era a mulher mais bonita que ele já tinha visto. Ele estava presente naqueles pequenos momentos privados. Isso era o suficiente para mim. Eu acreditava que ele me amava, de verdade. Eu sempre acreditei.
A InovaTech explodiu. De uma garagem apertada para um campus sprawling, Heitor foi aclamado como um gênio. A empresa cresceu, e com ela, suas exigências. Ele queria que eu desse um passo para trás, que gerenciasse as operações das sombras. "Seu talento é valioso demais para ser desperdiçado em relações públicas, Alice. Vamos contratar alguém novo, alguém jovem, para ser o rosto."
Essa "alguém jovem" era Jéssica Ferraz. Eu a encontrei, a mentorei, ensinei a ela tudo o que eu sabia. Ela era brilhante, ambiciosa, ansiosa para agradar. Eu vi uma centelha nela, uma fome que eu reconhecia. Ajudei a poli-la, a refinar sua oratória, mostrei a ela os meandros do mundo da tecnologia. Ela era boa. Boa demais.
Heitor começou a elogiá-la abertamente, cobrindo-a de bônus, levando-a a eventos da indústria, me deixando para trás. Eu vi o jeito que ele olhava para ela, o jeito que ele ria de suas piadas, o jeito que sua mão demorava em seu braço. Eu vi os sussurros, os olhares de cumplicidade de outros funcionários. Tentei falar com ele, lembrá-lo do nosso segredo, dos nossos votos.
"Alice, não seja ridícula", ele retrucava, seus olhos frios. "É negócio. Ela é boa para a imagem da empresa. Você está sendo paranoica. Está com ciúmes? Não se esqueça do que eu posso fazer se você me pressionar." A ameaça velada estava sempre lá, um tom arrepiante sob seu verniz polido.
O caso se tornou um segredo aberto. Fotos deles em galas, em tabloides, rumores de seu status de "casal poderoso". Eu ainda era sua esposa, trancada em nossa mansão opulenta, assistindo minha vida se desfazer em páginas brilhantes. Eu ainda era Alice, o fantasma.
Fim do Flashback
A voz de Jéssica me arrastou de volta ao presente, seu tom sacarino irritante. "Sabe, o Heitor conquistou tanto desde então. Ele é um homem completamente diferente." Ela sorriu para ele, depois voltou seu olhar para mim, seus olhos se estreitando em um desafio silencioso. "Ele até aprendeu a ser pai."
Uma laje fria e dura de gelo caiu no meu estômago. Um pai. Essa era a verdade final e devastadora. Ele nunca quis filhos comigo. Nenhuma vez.
Minha mão ainda segurava a taça de champanhe intocada. Sem uma palavra, eu a levantei, não para meus lábios, mas em direção a Heitor. Seus olhos se arregalaram, um brilho de apreensão. Despejei todo o conteúdo, lenta e deliberadamente, em seu próprio copo meio cheio. O champanhe espumou, misturando-se com o líquido âmbar escuro que já estava lá. Transbordou, derramando em sua camisa branca imaculada, deixando uma mancha escura e crescente.
"Você fala de pais, Jéssica?" perguntei, minha voz perigosamente suave, meus olhos ainda fixos nos de Heitor. "Talvez você devesse ensinar ao seu noivo como ser um homem primeiro. Ou pelo menos, como controlar suas... funcionárias."
O rosto de Heitor passou de pálido a carmesim em um instante. Sua mandíbula se cerrou, seus olhos ardendo de fúria. Ele agarrou o braço de Jéssica, puxando-a para trás. "Alice, já chega! Você está sendo irracional!"
Jéssica olhou para ele, seus olhos arregalados e inocentes, como se fosse um cordeiro indefeso pego no fogo cruzado. "Heitor, querido, o que há de errado? Ela só está sendo difícil."
"Difícil?" ecoei, minha voz se elevando, os anos de raiva reprimida finalmente fervendo à superfície. "Difícil foi suportar suas mentiras por sete anos. Difícil foi enterrar minha carreira, meus sonhos, minha própria identidade por você. Difícil foi ser sua esposa secreta enquanto você exibia este... troféu por aí." Meu olhar varreu Jéssica, que visivelmente recuou. "E difícil", sibilei, inclinando-me para mais perto de Heitor, "foi ser forçada a abortar seus filhos, de novo e de novo, porque você 'não estava pronto para uma família'! E ainda assim, aqui está você, exibindo ela e a barriga dela como se fosse um milagre!"
As últimas palavras pairaram no ar, cruas e expostas. Os olhos de Heitor, fixos em mim, estavam agora cheios de uma mistura aterrorizante de choque e pânico puro e absoluto. A mão de Jéssica voou para sua barriga, seu sorriso falso completamente desaparecido, substituído por um olhar de confusão, depois de horror. A sala inteira parecia prender a respiração.
Heitor gaguejou, tentando negar, mas nenhuma palavra saiu. Ele olhou entre o rosto agora pálido de Jéssica e meus olhos em chamas.
"Alice, do que você está falando?" Jéssica sussurrou, sua voz trêmula.
"Ela não está falando de nada!" Heitor interveio, sua voz muito alta, muito desesperada. Ele puxou Jéssica protetoramente para mais perto. "Ela só está tentando causar problemas, Jéssica. Não dê ouvidos a ela. Nós temos nosso bebê. Nosso lindo bebê." Ele enfatizou "nosso" com um brilho possessivo no olhar.
A palavra "bebê" quebrou algo dentro de mim. Todos os anos de dor, os procedimentos invasivos, a dor oca no meu útero. Tudo desabou.
Uma onda de náusea me atingiu, mais forte do que qualquer coisa que eu senti a noite toda. A sala começou a girar, os rostos se transformando em uma massa indistinta de julgamento e pena. Minhas pernas pareciam gelatina. Eu precisava de ar. Eu precisava escapar. Agora.
"Eu... eu preciso usar o banheiro", murmurei, passando por Heitor e Jéssica, sem me importar com os olhares, os sussurros, a destruição absoluta que eu estava deixando para trás. Eu só precisava sair. Meu estômago se revirou violentamente, ameaçando me trair na frente de todos.