"Por que você está tão má agora, Carla?" Clara chorou, sua voz trêmula. "O papai nunca foi mau! Por que todo mundo está mudando?"
Caio, ainda se recuperando do ataque anterior de Clara, ajeitou a gravata. Ele olhou para Carla, um reconhecimento silencioso passando entre eles.
"Seu papai está salvando a Francesca, Clara", disse Carla, sua voz pingando uma falsa doçura, uma imitação de sua irmã mais velha. "Sua mamãe não quer que ela melhore. Ela é uma curandeira ruim, uma farsa."
O rosto de Clara se contraiu. Ela olhou para Caio, lágrimas brotando em seus olhos. "Papai, a mamãe é má? Ela é uma farsa?"
O olhar de Caio endureceu. Ele não respondeu a Clara diretamente, mas seu silêncio foi uma afirmação ensurdecedora. Ele acreditava nelas. Ele acreditava nas mentiras de Francesca, e agora, até as crianças eram usadas como armas contra mim.
Carla, encorajada pelo silêncio de Caio, deu um passo em direção a Clara. "Sua mamãe é uma pessoa ruim. Ela merece o que está recebendo." Com um movimento súbito e rápido, Carla empurrou Clara com força.
Clara perdeu o equilíbrio, sua cabeça batendo na quina afiada da mesa de centro antiga com um baque surdo e horrível. Um suspiro escapou dos meus lábios. Uma mancha carmesim floresceu em sua testa, e ela desabou no chão, seu pequeno corpo imóvel.
"Clara!" Eu gritei, um som cru e primitivo rasgando minha garganta. Tentei correr para ela, mas minhas pernas, enfraquecidas por meses de rituais de drenagem e pela recente extração de medula óssea, cederam. Eu desabei, meu corpo gritando em protesto. Minha visão se afunilou, as bordas do meu mundo escurecendo. A dor no meu peito explodiu, uma agonia lancinante.
Uma onda de náusea me invadiu. A última coisa que vi antes que a escuridão me consumisse foi Caio parado sobre Clara, seu rosto uma máscara de choque, e Carla, parecendo momentaneamente assustada. Então, o esquecimento.
Acordei em um quarto pequeno e mal iluminado. O ar estava fresco, com um leve cheiro de lavanda. Minha cabeça latejava e cada centímetro do meu corpo doía. O quarto era desconhecido, esparsamente mobiliado, como um quarto de hóspedes que ninguém nunca usava. Parecia uma cela de prisão.
"Mamãe?" Uma voz suave sussurrou ao lado da cama.
Virei a cabeça com esforço. Clara. Seu rostinho estava pálido, mas seus olhos estavam claros. Havia um curativo em sua testa, um branco gritante contra sua pele.
"Clara, meu amor", murmurei, minha voz rouca. "Você está bem? Sua cabeça..."
Ela sorriu fracamente, uma pequena soldada corajosa. "Estou bem, mamãe. Só doeu um pouco. A Carla me fez tropeçar." Ela fez uma pausa e acrescentou: "Não se preocupe, mamãe. Não vou contar ao papai. Ele vai ficar bravo com a Carla."
Meu coração se apertou com um amor feroz e protetor. Minha filha de quatro anos estava protegendo sua algoz, tentando me proteger, mesmo em sua própria dor. Minha culpa era um peso esmagador. Eu falhei com ela, falhei em protegê-la deste monstro, desta família.
Naquele momento, uma determinação desesperada se apoderou de mim. Eu tinha que tentar uma última vez. Pela Clara. Eu tinha que apelar para o homem que Caio já foi, o homem que eu amei. Talvez, se eu lhe mostrasse algo concreto, algo do nosso passado, ele se lembraria.
Com um esforço meticuloso, me levantei. Meu corpo gritou em protesto, mas eu o ignorei. Eu tinha que encontrá-lo. O pequeno pássaro de madeira esculpido que ele me deu em nosso primeiro aniversário. Estava escondido em um compartimento secreto em nosso antigo quarto, um lugar que só ele e eu conhecíamos. Simbolizava nosso amor, nossos sonhos de um ninho, uma família.
Lembrei-me do dia em que ele me deu. Estávamos em uma trilha perto do Pico da Serenidade, o ar fresco e limpo. Ele encontrou um galho caído, perfeitamente moldado, e passou horas esculpindo-o em um pássaro delicado, com as asas abertas como se estivesse em voo. "Somos nós, Helena", ele disse, seus olhos cheios de amor. "Sempre juntos, sempre voando alto."
Aquele pássaro, aquele símbolo do nosso amor mais puro, tinha que significar algo. Se ele ainda o guardava, se não tivesse sido descartado como tantas outras coisas, então ainda havia um pingo de esperança. Uma esperança à qual eu me agarraria, pelo bem da Clara. Eu estava disposta a engolir cada insulto, cada humilhação, se isso significasse salvar minha filha deste ambiente tóxico. Eu sacrificaria meu orgulho, minha dignidade, tudo, se ele apenas caísse em si, se lembrasse de nós.
O pensamento me impulsionou para a frente, minhas pernas fracas me levando em direção à ala proibida da mansão. Eu me arrastei pelos corredores silenciosos, o único som era a batida do meu próprio coração. Cheguei ao nosso antigo quarto, a porta ligeiramente entreaberta. Empurrando-a, entrei.
O quarto estava diferente. Impecável demais, frio demais. Um leve cheiro do perfume forte e enjoativo da Francesca pairava no ar. Meus olhos percorreram os móveis familiares, procurando o compartimento secreto. Eu o encontrei, atrás de um painel solto na mesa de cabeceira. Meus dedos tremeram quando alcancei o interior. Estava lá. O pequeno pássaro de madeira. Intocado.
Um frágil broto de esperança surgiu no solo árido do meu desespero. Talvez... talvez ele ainda se lembrasse. Talvez ele ainda se importasse.
Enquanto eu segurava o pássaro, sua madeira lisa e quente contra minha palma, um murmúrio suave de vozes chegou até mim da varanda adjacente. A curiosidade, ou talvez um fascínio mórbido, me atraiu para mais perto. Espiei pelas portas francesas entreabertas.
Caio estava lá. E Francesca.
Eles estavam próximos, próximos demais. Francesca estava encostada nele, a cabeça aninhada em seu peito. Ele a segurava com força, a mão acariciando seus cabelos. A intimidade do gesto foi um soco no meu estômago.
"Oh, Caio", Francesca ronronou, sua voz um sussurro baixo e sedutor. "Você é tão bom para mim. Não sei o que faria sem você."
Ele beijou sua testa, um gesto gentil e terno que ele não me concedia há uma eternidade.
"Você nunca terá que descobrir, meu amor", respondeu Caio, sua voz grossa de devoção, um tom que eu um dia acreditei ser reservado para mim. "Eu sempre vou te proteger. Sempre."
Minha respiração falhou. O pássaro de madeira, um símbolo de um amor que agora eu percebia ser uma mentira monstruosa, tremeu em minha mão. Ele não apenas me esqueceu; ele me substituiu. Com a mesma mulher que estava orquestrando minha morte.
Então, Francesca olhou para ele, seus olhos brilhando, um brilho cruel e triunfante neles. "E pensar", ela sussurrou, alto o suficiente para perfurar minha frágil esperança, "que ela realmente acreditou que você voltaria para ela depois que ela me 'curasse'. A idiota."
Uma risada zombeteira escapou de seus lábios, um som que retalhou o pouco que restava do meu coração. A lembrança dos avisos de meus amigos, seus sussurros sobre a natureza manipuladora de Francesca, voltou com força. Eles tinham visto, a verdade que eu me recusei a reconhecer. Eles tinham visto a obsessão cega de Caio, a ambição calculista de Francesca. Eu os descartei, os chamei de invejosos. Agora, suas palavras eram uma profecia arrepiante.
O pássaro de madeira escorregou da minha mão, caindo no chão de mármore polido. Ele bateu com um estalo agudo e ressonante, ecoando pela sala silenciosa, um som como vidro se quebrando, como uma vida se partindo.
Caio e Francesca viraram a cabeça em direção ao som, seu momento íntimo brutalmente interrompido. Seus olhos se fixaram em mim, parada, congelada na porta, os pedaços estilhaçados do meu casamento, do meu próprio ser, espalhados aos meus pés.
O rosto de Caio se contorceu, a surpresa rapidamente se transformando em raiva. "Helena! O que você está fazendo aqui?!" Sua voz foi um estalo de chicote, cortando o silêncio, me deixando exposta, humilhada.