Olhei para o dossiê sobre a bancada de mármore. Os registros médicos eram detalhados. Isabel estava doente, sim. Mas não estava acamada. Estava bem o suficiente para viajar. Bem o suficiente para postar fotos de sua arte em latte no Instagram. E certamente bem o suficiente para roubar a minha vida.
Meu celular vibrou contra a bancada, me assustando.
Era Júlia Campos.
Júlia era a única pessoa na minha vida que não sabia o que era um "homem de honra". Ela era uma médica que conheci durante um seminário que eu não deveria ter frequentado. Ela representava o mundo da luz – um mundo onde os médicos salvavam vidas em vez de remendar vítimas de tortura em porões úmidos.
"Oi, Nina", ela disse. Sua voz era brilhante, animada. Parecia o som do sol.
"Oi, Júlia."
"Olha, eu sei que você recusou a bolsa de pesquisa em Lalan há seis meses por causa das... obrigações familiares", ela começou, pisando em ovos. "Mas o Professor Moore perguntou por você. A vaga ainda está aberta. É um contrato de três anos. Alta segurança. Campus fechado."
Ela hesitou, esperando que eu a interrompesse.
"Eu sei que você vai se casar em um mês", ela acrescentou rapidamente. "Sei que o momento é péssimo. Mas este é um trabalho revolucionário, Nina."
Olhei para o calendário pendurado na geladeira. A data do casamento estava circulada em tinta vermelha. Deveria ser o dia em que eu me tornaria a Rainha de São Paulo.
Agora, parecia apenas um alvo.
"Não preciso de tempo para o casamento", eu disse, minha voz firme.
Júlia fez uma pausa. "Ah? Está tudo bem?"
Apertei o telefone com mais força, meus nós dos dedos ficando brancos. "O casamento não vai acontecer."
"Meu Deus, Nina. Eu sinto muito."
"Não sinta", eu disse. "Quando começa a orientação?"
"Dois dias depois do seu... bem, dois dias depois daquela data."
"Eu consigo chegar a tempo", eu disse.
"Você tem certeza?" Júlia perguntou, sua preocupação profissional transparecendo. "É um voo longo. Você ficará completamente isolada. Os acordos de confidencialidade são rigorosos. Nenhum contato com o mundo exterior nos primeiros seis meses."
"Isso soa perfeito", sussurrei.
"Eu quero a agenda completa, Júlia. Noites, fins de semana, feriados. Me enterre em trabalho."
"Considere feito", ela disse.
Desliguei assim que a porta da varanda se abriu.
Dante entrou novamente. Ele parecia irritado por ter que voltar para mim, como se voltar para casa para sua noiva fosse uma tarefa árdua.
"Ela é dramática", ele disse, acenando com a mão como se estivesse dispensando uma mosca. "Ela quer que eu vá ao ultrassom na próxima semana."
"Você deveria ir", eu disse.
Ele parou no meio do caminho. Olhou para mim, procurando por sarcasmo, esperando pelo ciúme. Ele não encontrou nada. Eu estava cansada demais para sarcasmo.
"Você está sendo razoável", ele disse, a desconfiança nublando seus olhos por um segundo fugaz antes que a arrogância tomasse conta. "Isso é bom. Eu esperava uma briga."
"Eu não vou brigar, Dante."
Ele assentiu, satisfeito. Ele tinha a expressão de um homem que acreditava ter vencido. Ele achava que tinha me quebrado até a submissão.
Ele passou por mim em direção ao chuveiro. Não beijou minha bochecha. Não perguntou como foi meu dia.
Assim que a água começou a correr, caminhei até o calendário.
Peguei a caneta vermelha.
Não risquei a data. Apenas a encarei.
Não era mais uma data de casamento.
Era uma data de extração.