Capítulo 2

POV de Ada Magalhães:

O frio do ar da noite penetrou em meus ossos enquanto eu estava na opulenta varanda de mármore, as luzes da cidade um caleidoscópio borrado abaixo. Envolvi meus braços ao redor de mim mesma, tentando parar os tremores que não tinham nada a ver com a temperatura. Lá dentro, eu podia ouvir suas risadas abafadas, a voz estridente de Gisela pontuada pelo ronco mais profundo de Caio. O som era um tormento familiar, uma trilha sonora para minha gaiola dourada.

Minha cabeça latejava, uma dor surda atrás dos meus olhos. A exaustão era profunda, uma companheira constante por cinco anos. Mas esta noite, parecia mais pesada, quase física.

"Ada?", uma voz me assustou.

Virei-me para ver Jovani Cruz, o melhor amigo e sócio de Caio, entrando na varanda. Ele parecia surpreendentemente deslocado em seu terno perfeitamente cortado, um copo meio vazio de líquido âmbar na mão. Jovani era sempre cínico, sempre observador, raramente interferindo.

"Você está bem?", ele perguntou, um lampejo de algo indecifrável em seus olhos. Preocupação? Ou apenas curiosidade?

Eu assenti, forçando um pequeno sorriso. "Só tomando um ar."

Ele se apoiou no parapeito, olhando para a cidade. "O ar está mais limpo lá dentro, e provavelmente mais quente. Você parece que vai desmaiar."

Ele me conhecia. Ou, pelo menos, achava que conhecia. Ele tinha sido uma testemunha silenciosa do meu sofrimento quieto, das campanhas públicas de humilhação de Gisela, do desrespeito flagrante de Caio.

"Estou bem", insisti, embora meus dentes tivessem começado a bater.

Ele suspirou, tomando um gole de seu copo. "Sabe, Ada, eu nunca entendi por que você aguentou isso. O espetáculo público, as palhaçadas da Gisela, o... bem, o Caio."

Ele se virou para mim, a testa franzida. "Você é uma mulher notável, Ada. Talentosa, inteligente. Você poderia ter tido qualquer um. Por que ele? Por que isso?"

Suas perguntas não eram acusatórias, apenas perplexas. Ele, como todo mundo, acreditava que eu estava perdidamente apaixonada por Caio, uma tola apaixonada agarrada a um bilionário que mal reconhecia minha existência. Ele se lembrava do frenesi da mídia quando anunciamos nosso casamento - a imprensa me chamando de interesseira, os sussurros de uma noiva de rebote após a morte de Juliano.

"Era... complicado", eu disse, uma resposta familiar que não satisfazia ninguém, muito menos a mim mesma.

"Complicado?", ele zombou gentilmente. "Ada, você tolerou mais do que qualquer pessoa que eu conheço. Você até foi buscar pílulas do dia seguinte para eles uma vez. Eu vi você. Na farmácia, parecendo um fantasma."

Um rubor subiu pelo meu pescoço. Aquela memória era uma pontada aguda e fria. Eu tinha andado pelos corredores estéreis, meu coração um tambor oco, minhas mãos tremendo enquanto entregava a receita ao farmacêutico. Foi um dos muitos atos performáticos da minha penitência de cinco anos.

"Você deveria tê-lo deixado anos atrás", Jovani continuou, sua voz mais suave agora. "Você merece coisa melhor. Sempre mereceu. Juliano teria querido que você fosse feliz."

Juliano. O nome era um membro fantasma, uma dor que nunca desaparecia de verdade. Ele era a razão. Sempre a razão.

"Estou deixando ele agora", disse a Jovani, as palavras parecendo pesadas, sólidas.

Ele riu, um som seco e incrédulo. "Não me diga que você finalmente vai dar um chilique. Depois de cinco anos de paciência santa? Ada, sério. Não faça uma cena. Não vale a pena."

Ele balançou a cabeça, um toque de pena em seus olhos. "Você tentou, Ada. Você realmente tentou. Todo mundo viu o quanto você o amava. Como você aguentou tudo. Mas alguns homens simplesmente não valem a pena. Caio nunca valeu."

"Você ainda acha que eu o amava", eu disse, uma estranha leveza em minha voz. O mal-entendido era tão profundo, tão absoluto.

Jovani olhou para mim, perplexo. "Claro que sim. Você se casou com ele, não foi? Depois... depois de Juliano. Todo mundo achou que você estava um pouco louca de dor, talvez tentando se agarrar a uma parte de Juliano através de seu gêmeo. Mas você ficou. Você estava sempre lá, sempre esperando por ele."

Ele fez uma pausa, depois acrescentou: "Lembra dos boatos? Quando você praticamente se atirou nele depois da morte de Juliano? As pessoas diziam que você estava desesperada, que amava Juliano e depois se voltou imediatamente para Caio."

Eu me lembrava. Cada manchete mordaz, cada julgamento sussurrado. Eles me chamaram de desequilibrada, oportunista.

"Eu aceitei tudo", confessei, meu olhar fixo nas luzes distantes da cidade. "Cada insulto, cada humilhação. Deixei que acreditassem que eu era uma tola patética e apaixonada."

Jovani franziu a testa. "Por que, Ada? Qual era o objetivo?"

Respirei fundo, o ar frio enchendo meus pulmões, agudo e limpo. "O objetivo era Juliano." Enfiei a mão no bolso do meu vestido, meus dedos se fechando em torno do pequeno e frio relicário. "O último desejo de Juliano era ter suas cinzas espalhadas em Marte."

Jovani me encarou, seus olhos arregalados de incredulidade. "Marte? Isso é... ambicioso."

"O programa de voo espacial memorial da Agência Espacial Brasileira", expliquei, as palavras fluindo, me aliviando. "É altamente confidencial. Apenas familiares diretos de astronautas podem acessá-lo. Cônjuges têm um período de espera de cinco anos para obter a autorização completa."

"Juliano ainda não era um astronauta", continuei, traçando os contornos do relicário. "Ele era um candidato. E eu não era sua esposa. Tínhamos planejado nos casar, mas o acidente dele aconteceu antes que pudéssemos."

A memória era uma ferida aberta, ainda fresca depois de cinco anos. Juliano, brilhante, gentil, cheio de sonhos, se foi em um piscar de olhos, um acidente de treinamento que o arrancou de mim, do mundo.

"Eu não tinha base legal para reivindicar seus restos mortais para o voo memorial", eu disse, minha voz embargada pela emoção. "Nenhuma maneira de realizar seu desejo."

Jovani estava em silêncio, ouvindo atentamente. Seu cinismo habitual havia desaparecido, substituído por um choque genuíno.

"Então eu descobri sobre Caio", sussurrei. "Seu irmão gêmeo distante. Um familiar direto. Se eu me casasse com ele, me tornaria sua esposa. Iniciaria o período de espera de cinco anos. Conseguiria a autorização."

"Você se casou com Caio... por Juliano?" Sua voz era quase inaudível.

Eu assenti, a verdade uma libertação pesada e agridoce. "Ele concordou. Ele viu isso como uma forma de irritar sua família, eu acho. Para mostrar a eles que ele podia fazer o que quisesse. Ele não se importava comigo. Ele não se importava com o sonho de Juliano. Ele apenas viu uma transação."

"E você o fez acreditar que o amava?", Jovani perguntou, uma estranha mistura de horror e admiração em seu tom.

"Eu fiz todo mundo acreditar", corrigi, um leve sorriso tocando meus lábios. "Eu interpretei o papel. A mulher devota e de coração partido que se agarrou à memória de seu amor perdido casando-se com seu gêmeo idêntico. A tola que aguentou seus casos, sua indiferença, suas humilhações públicas."

"Por cinco anos", Jovani suspirou, balançando a cabeça. "Você suportou tudo isso... por um desejo."

"Por Juliano", corrigi suavemente. "Era o sonho dele. Nosso sonho. Ele merecia ir para Marte."

Eu levantei o relicário, a pequena e pesada prata brilhando na luz fraca. "Hoje, Jovani", eu disse, minha voz tremendo com um triunfo que era puramente meu. "Hoje, cinco anos se passaram. Hoje, eu peguei as cinzas de Juliano do cofre da AEB. Hoje, a missão está completa."

Virei-me para ele, meus olhos brilhando com lágrimas não derramadas, mas também com uma determinação inabalável. "E hoje, eu estou finalmente livre."

Jovani me encarou, estupefato, o copo esquecido em sua mão. A verdade, despida de toda pretensão, pairava pesada entre nós. O homem que ele pensava conhecer, a esposa quieta e dócil, era um fantasma, uma performance elaborada. E agora, a cortina estava caindo.

            
            

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