Na delegacia, depois de ele ter se metido em outra briga por ela, Kênia apontou para mim e gritou: "Faça ela se ajoelhar! Faça ela pedir desculpas por respirar o mesmo ar que a gente!"
Os olhos frios de Heitor encontraram os meus.
"Cristina", ele ordenou, sua voz mortalmente baixa. "Ajoelhe-se."
Capítulo 1
Na primeira vez que Heitor preferiu um negócio de um bilhão de reais ao funeral do meu pai, eu soube que nosso casamento era uma transação. Cinco anos depois, eu ainda não tinha aprendido a lição.
Naquele dia, o ar frio do outono de São Paulo ardeu em meus pulmões, mas não tanto quanto o silêncio de Heitor. Ele estava fora, em uma viagem de negócios. Um negócio, ele chamou. Um negócio de um bilhão de reais. Enquanto meu mundo desmoronava, o dele se expandia. Ele nem sequer mandou flores.
"Ele é um tubarão da Faria Lima, Cristina", minha mãe disse, com a voz tensa. "Eles vivem por um código diferente."
Eu assenti, aceitando. Nosso casamento era uma aliança estratégica, uma fusão de duas famílias poderosas. O amor não fazia parte do contrato.
Meus aniversários eram sempre eventos silenciosos. Eu cozinhava uma refeição simples, talvez abrisse uma garrafa de vinho. Heitor mandava uma mensagem genérica, sempre assinada por seu assessor. Um ano, ele enviou um colar de diamantes. Chegou com um bilhete: "Para a Sra. Mendonça. De Heitor." Parecia um recibo, não um presente.
O acidente de carro foi diferente. Não uma humilhação grande e pública, mas um terror silencioso. Meu carro rodou em uma mancha de óleo na Marginal Pinheiros, batendo na mureta de proteção. O impacto sacudiu cada osso do meu corpo.
Eu estava sangrando, desorientada. Meu primeiro pensamento, meu tolo e desesperado primeiro pensamento, foi Heitor.
Eu liguei para ele. Minha voz estava trêmula, mal passava de um sussurro. "Heitor, eu... eu sofri um acidente."
Houve uma pausa. Um silêncio longo e estéril. Então, a voz dele, seca e sem emoção. "É grave, Cristina? Estou em uma reunião crucial."
"Eu... eu não sei", gaguejei, a dor perfurando minhas costelas. "Acho que estou machucada."
"Mande os detalhes para o meu assessor", ele disse, já soando impaciente. "Ele vai organizar tudo."
Então, a linha ficou muda. Nenhum "Você está bem?". Nenhum "Estou indo aí". Apenas uma dispensa fria e eficiente.
Quando minha avó adoeceu, seus últimos dias foram passados em um quarto de hospital estéril. Sentei-me ao seu lado, segurando sua mão frágil. Heitor estava em outro continente, negociando outro acordo. Ele nem sequer ligou. Quando ela se foi, uma parte de mim foi com ela. Não era apenas o luto por ela, mas pela esperança que eu um dia nutri.
Foi então que eu realmente entendi. Heitor não priorizava seu império financeiro sobre mim. Ele o priorizava sobre tudo. Sobre a vida, sobre a morte, sobre a conexão humana. Ele era verdadeiramente incapaz de amar. Eu me convenci de que esse era simplesmente o preço do nosso acordo. Ele não amava ninguém, então não era pessoal. Era apenas o jeito dele.
Encontrei um estranho conforto nesse pensamento. Ele não estava me machucando especificamente. Estava apenas sendo Heitor. Ele era uma força da natureza, um tubarão em um terno Armani. E eu era apenas mais uma parte de seu mundo meticulosamente ordenado, um ativo decorativo, mas, no fim das contas, dispensável.
Então, os sussurros começaram. Primeiro, um boato abafado em um baile de caridade. Depois, uma manchete ousada em uma coluna de fofoca. "O Rei de Gelo da Faria Lima se Derrete por Jovem Estrela."
Kênia Hewitt. Uma aspirante a atriz. Jovem. Ambiciosa.
Meu coração afundou. Não era apenas a notícia. Eram os detalhes.
Heitor, o homem que perdeu o funeral do meu pai por um negócio, cancelou reuniões cruciais para consolar Kênia por uma audição perdida? O homem que me deixou sangrando em uma rodovia por uma ligação, comprou para ela um teatro inteiro na Augusta para sua estreia? O tubarão racional e insensível da Faria Lima se meteu em uma briga pública com um diretor que a criticou?
Aquele não podia ser Heitor. Não o meu Heitor. O homem que eu conhecia não demonstrava afeto. Ele não fazia grandes gestos. Não por ninguém.
Recusei-me a acreditar. Tinha que ser um golpe de publicidade. Heitor era astuto demais para tais demonstrações abertas de... emoção. "Ele não faria isso", sussurrei para mim mesma. "Ele simplesmente não faria."
Mas uma dúvida corrosiva começou a crescer em minha mente. Eu não podia ignorá-la. Eu tinha meus próprios recursos, minhas próprias conexões. Iniciei uma investigação discreta. Pedi aos meus contatos mais confiáveis que investigassem Kênia Hewitt.
O processo foi lento, deliberadamente obstruído, percebi mais tarde. Tudo o que consegui foram fotos borradas e granuladas. Instantâneos à distância. Mas foram o suficiente.
Uma foto. Mostrava Heitor, com a mão firmemente nas costas de Kênia, guiando-a através de uma multidão. Seu rosto estava inclinado para baixo, uma expressão suave em suas feições geralmente impassíveis. Ele a estava protegendo. Foi um gesto simples, mas que rasgou minha fachada cuidadosamente construída.
Ele era capaz de afeto. Só não por mim.
A percepção me atingiu como um golpe físico. Eu estava dirigindo, perdida em pensamentos, a imagem de sua mão protetora gravada em minha mente. Não vi o caminhão até ser tarde demais. Houve um cantar de pneus, um baque doentio de metal e, então, a escuridão.
Acordei em um quarto de hospital branco e imaculado. Minha cabeça latejava. Meu corpo doía. Uma enfermeira ajustava meu soro.
Então, o assessor de Heitor, o Sr. Dantas, entrou. Seu rosto estava sombrio, seus olhos frios. Ele não perguntou sobre meus ferimentos. Apenas me encarou, seu olhar gelado.
"Sra. Mendonça", ele disse, sua voz baixa e uniforme. "O Sr. Heitor me instruiu a entregar uma mensagem."
Eu me preparei.
"Ele a aconselha a cessar suas investigações sobre a Srta. Hewitt", Dantas continuou, seus olhos inabaláveis. "E a manter um perfil discreto. Certos... incidentes... podem ser percebidos como avisos. Acidentes acontecem."
Meu sangue gelou. Acidentes acontecem. As palavras ecoaram em minha cabeça. Olhei para meu braço enfaixado, para o soro. Isso não foi um acidente. Foi um atropelamento. Orquestrado. Por Heitor.
Meu estômago se revirou. O homem que eu havia racionalizado como meramente frio era um monstro. Ele tentou me machucar. Para me silenciar. Para protegê-la. A dor em meu corpo não era nada comparada ao choque em meu coração. Como ele pôde? Como o homem com quem me casei, o homem a quem dei cinco anos da minha vida, pôde fazer algo tão cruel?
No dia seguinte, uma ligação chegou ao meu quarto de hospital. Era da polícia. Houve um distúrbio público. Heitor Mendonça estava envolvido. Eles precisavam que eu fosse até lá para prestar depoimento.
Cheguei à delegacia, meu corpo ainda protestando a cada movimento. A área de espera era uma bagunça caótica de policiais e repórteres. No centro, em uma pequena seção isolada, estava Kênia Hewitt. Ela estava esparramada em um banco, um par de óculos de sol ridiculamente grandes empoleirados em seu nariz, um beicinho nos lábios. Parecia irritada, não angustiada.
Ela me viu. Seus olhos se estreitaram por trás das lentes escuras. Ela sorriu de lado, depois se recostou, cruzando as pernas deliberadamente. Um gesto de desrespeito flagrante.
Nesse momento, a porta de uma sala de interrogatório se abriu com um estrondo. Heitor saiu, o maxilar tenso, seu terno caro amassado. Seu olho esquerdo estava roxo, um corte acima da sobrancelha. Parecia que ele tinha estado em uma briga.
Ele examinou a sala. Seus olhos pousaram em mim por uma fração de segundo. Não havia preocupação, nenhum reconhecimento. Apenas um lampejo de irritação.
"O que você está fazendo aqui, Cristina?" Sua voz era baixa, carregada de irritação. Era uma ordem, não uma pergunta.
"Fui chamada", eu disse, minha voz quase inaudível.
"Bem, você pode ir embora", ele retrucou, dispensando-me com um aceno de mão. "Você não é necessária."
Ele então se virou para Kênia. Toda a sua postura mudou. A máscara fria e implacável derreteu. Seus olhos se suavizaram, seus ombros relaxaram. Ele se ajoelhou ao lado dela, sua grande estrutura curvada.
"Kênia, meu amor", ele murmurou, sua voz terna, um tom que eu nunca tinha ouvido dirigido a mim. "Você está bem?"
Kênia fungou, tirando os óculos de sol para revelar olhos que estavam suspeitosamente secos. "Ele disse... ele disse que você estava solicitando uma prostituta!", ela gritou, apontando um dedo teatral para Heitor. "Eles acham que você estava com alguma vagabunda barata!"
Heitor se encolheu. A acusação era absurda. Ele era Heitor Mendonça. Mas ele não negou. Nem sequer pareceu envergonhado. Apenas olhou para Kênia, seu olhar cheio de adoração desesperada.
"Não importa o que eles pensem", ele prometeu, sua voz grossa de devoção. "Deixe que digam o que quiserem. Eu vou para a cadeia se for preciso para fazer você se sentir segura."
Meu sangue gelou. Ir para a cadeia? Pelo chilique infantil dela? O homem que não chamaria uma ambulância para mim.
Dantas, o assessor de Heitor, deu um passo à frente, limpando a garganta. "Sr. Heitor, o senhor sofreu uma concussão e três costelas fraturadas protegendo a Srta. Hewitt daquele diretor agressivo ontem à noite. A força do impacto..."
Kênia, com o rosto ainda manchado de lágrimas, o interrompeu. "Você se machucou?" Sua voz estava carregada de uma estranha mistura de preocupação e possessividade.
"Não é nada, meu amor", disse Heitor, ignorando o assessor. Ele estendeu a mão, segurando gentilmente o rosto dela. "Desde que você esteja segura, nada mais importa. Eu te amo, Kênia. Vou passar o resto da minha vida provando isso para você."
Os olhos de Kênia, ainda úmidos, se voltaram para mim. Um lampejo de triunfo cruzou seu rosto. "Você ouviu isso, Sra. Mendonça?", ela ronronou, sua voz doce e maliciosa. "Ele me ama. Ele fará qualquer coisa por mim."
Então, ela se virou de volta para Heitor, sua voz subindo em um lamento petulante. "Eu não quero só que ele vá para a cadeia, Heitor! Eu quero que ela sofra! Eu quero que ela saiba o seu lugar!" Ela apontou para mim novamente. "Faça ela se ajoelhar! Faça ela pedir desculpas por sequer ousar respirar o mesmo ar que a gente!"
O olhar de Heitor, desprovido de calor, fixou-se em mim. Seus olhos eram como lascas de gelo. "Cristina", ele ordenou, sua voz mortalmente baixa. "Ajoelhe-se."
O mundo pareceu inclinar. Os repórteres, os policiais, as luzes fluorescentes zumbindo. Tudo desapareceu. Meus ouvidos zumbiam com o eco de sua voz. Ajoelhe-se.
Ajoelhar-me para a mulher que acabou de acusá-lo falsamente. Ajoelhar-me para o homem que tentou me matar. Ajoelhar-me em público, para a exibição distorcida de afeto deles.
Uma onda de náusea me invadiu. Minhas pernas pareciam gelatina. Eu balancei, um soluço engasgado preso na garganta. Eu não conseguia. Eu simplesmente não conseguia. Este era o fim. Era aqui que eu quebrava. Minha visão embaçou, e o mundo se dissolveu em uma cacofonia de vozes distantes e no peso esmagador do desespero absoluto. Senti-me caindo. Tudo ficou preto.