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Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

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Ponto de Vista de Helena Cardoso:
O sono não veio. Seus rostos, suas vozes, o sorriso presunçoso de Selene, a culpa patética de Eduardo, o rosto manchado de lágrimas de Caio - eram todos invasores vívidos e indesejados em minha mente. Cada memória era uma faísca, acendendo o inferno de ódio que ainda ardia dentro de mim. Era uma dor surda na maioria dos dias, mas esta noite, era um incêndio violento.
Eu precisava me mover, fazer algo, qualquer coisa, para acalmar a tempestade interior. Meu pequeno quarto oferecia pouco para organizar, mas comecei mesmo assim, arrumando os poucos livros, dobrando minhas roupas limitadas. Afastei uma pilha de revistas velhas e minha mão roçou em algo duro, escondido no fundo do pequeno e empoeirado armário.
Uma caixa esquecida. Pesada, gasta, fechada com fita adesiva. Eu a puxei para fora, gemendo com o esforço. Quando a levantei para a cama, o fundo cedeu. O conteúdo se espalhou sobre o cobertor puído, espalhando-se pelo colchão. Entre eles, um porta-retrato, velho e de madeira, caiu no chão. O vidro se estilhaçou com um estalo agudo e doentio.
Minha respiração falhou. Meus olhos caíram sobre a imagem dentro da moldura quebrada. Uma foto de família. Eduardo, Caio e eu. Estávamos sorrindo, em frente a uma árvore de Natal, guirlandas de luzes piscando ao nosso redor. Uma memória perfeita e fabricada.
Caio. Meu Caio. Meu filho adotivo. Aquele que eu amei com uma ferocidade que beirava a loucura. Ele não era meu por sangue, mas era meu por todas as outras medidas que importavam.
Eduardo, em seus primeiros dias, ficou marcado pela primeira traição de Selene. Ele jurou não ter filhos, alegando que não suportaria a ideia de mais dor. Mas eu tinha visto outra coisa nele, um anseio que ele não conseguia admitir. Eu queria um filho, desesperadamente, mas a vida me deu cartas diferentes.
Numa tarde chuvosa, eu o encontrei. Um bebê minúsculo, abandonado, deixado nos degraus da igreja local. Ele era frágil, desnutrido, com uma doença cardíaca congênita que exigiria inúmeras cirurgias, uma vida inteira de cuidados. Eduardo hesitou, preocupado com o custo, os sussurros, o fardo.
Mas eu não. Nem por um segundo. Peguei o pequeno embrulho, meu coração transbordando de um amor feroz e protetor. Eu o chamei de Caio, um nome que significava 'prestativo' e 'gentil' em um dialeto antigo que eu havia estudado. Ele era meu propósito, minha razão de ser.
Lutei por ele, paguei por seus tratamentos, segurei sua mãozinha em cada procedimento doloroso. Aprendi tudo o que pude sobre sua condição, tornei-me uma especialista em cardiologia pediátrica por necessidade. Eduardo, eventualmente, se acostumou, mas sempre foi a minha batalha. Meu sacrifício. E Caio, por sua vez, se agarrou a mim, seus bracinhos envolvendo meu pescoço com força, me chamando de "mamãe" com uma reverência que derretia meu coração. Essa era a minha maior alegria.
Então Selene voltou. Um fantasma do passado de Eduardo, uma sereia que o puxou de volta para sua órbita com facilidade praticada. Ela era tudo o que eu não era - chamativa, ambiciosa e totalmente implacável. Ela me via como um obstáculo, Caio como um incômodo.
Eduardo começou a trabalhar até tarde, suas desculpas ficando mais esfarrapadas, seus olhos mais frios. Caio também mudou. Selene, com seus presentes caros e promessas sussurradas, lentamente envenenou sua mente. Ele começou a me chamar de "controladora", "superprotetora". Ele se ressentia das intermináveis consultas médicas, do olhar vigilante que eu mantinha sobre sua saúde frágil. Ele queria liberdade, o tipo de liberdade que Selene balançava como um brinquedo novo e brilhante.
Lembro-me de uma briga, eu gritando: "Eduardo, o que está acontecendo conosco?!". Ele, se virando, os ombros curvados: "Nada, Helena. Você está imaginando coisas." A porta de seu escritório estava sempre trancada agora, seu telefone colado na mão. Caio parou de me contar sobre seu dia, passando horas com Selene, que o cobria de atenção e gadgets caros. Ele até começou a chamá-la de "tia Selene", uma palavra que parecia uma faca se torcendo em minhas entranhas.
Meus olhos arderam, uma nova onda de lágrimas ameaçando transbordar. A borda irregular do vidro quebrado cravou-se no meu dedo, uma fina linha vermelha florescendo contra minha pele, manchando os rostos sorridentes na foto. Era um eco físico da dor no meu peito. O vidro quebrado, a família estilhaçada, o sangue se infiltrando na memória.
Lembrei-me do décimo aniversário de Caio. Ele havia soprado as velas do bolo, seus olhos brilhando de esperança. "Eu desejo", ele disse, "que possamos ser uma família para sempre, mamãe. Só nós."
Eu ri agora, um som amargo e quebrado que ficou preso na minha garganta. Para sempre. Que desejo ingênuo.
Com um soluço engasgado, peguei a foto, o sangue do meu dedo manchando a imagem. Amassei-a na mão e joguei-a na pequena lixeira no canto. Os rostos amassados me encaravam, acusadores e zombeteiros.
Naquele exato momento, meu celular vibrou. Uma mensagem de texto. Um número desconhecido.
Você está convidada para a Festa de 18 Anos do Caio. Neste sábado. Salão Imperial do Hotel Unique.
Meu sangue gelou. Caio. O aniversário dele. Depois de todos esses anos. E depois da visita de Eduardo e Selene. Parecia uma armadilha, mais uma torção cruel da faca. Mas uma parte de mim, uma parte pequena e tola, se perguntou se esta era uma chance. Uma chance de vê-lo novamente, de entender. Ou talvez, uma chance de finalmente, verdadeiramente, dizer adeus.