Uma enfermeira de rosto gentil entrou apressada, seu sorriso tenso. "Ah, você está acordada, querida. Bom. Um senhor muito gentil a encontrou do lado de fora do seu prédio e a trouxe. Gastrite aguda, como suspeitávamos. Colocamos você no soro."
Um senhor gentil. Não Heitor. Não minha mãe. Alguém que eu nem conhecia.
A dor no meu estômago havia diminuído, substituída por um vazio profundo. Mas a falta de sensação nas minhas pernas... Era uma dor fantasma, um vazio aterrorizante.
"Minhas pernas", sussurrei, minha voz rouca. "Não consigo senti-las."
O sorriso da enfermeira vacilou. Seu olhar caiu para minhas pernas, que estavam envoltas em bandagens. "Houve um trauma grave durante o acidente, querida", disse ela gentilmente, sua voz abafada. "É muito cedo para dizer com certeza, mas os médicos estão preocupados com danos nos nervos. Existe a possibilidade... de paraplegia."
Paraplegia. A palavra pairou no ar, uma sentença de morte para meus sonhos. Ecoou na sala estéril, ricocheteando nas paredes brancas, colidindo com minha alma. Minha mente ficou em branco, um vazio aterrorizante onde meu futuro costumava estar. Minhas pernas, meus instrumentos, minha vida. Foram-se?
A enfermeira continuou, sua voz um zumbido distante. "Precisaremos de mais observação, uma série de terapias de reabilitação. É um longo caminho, mas faremos tudo o que pudermos."
Mas eu não ouvi nada além de "paraplegia". Minha carreira de dança. Minha vida, meticulosamente elaborada e nutrida desde a infância, havia sido irrevogavelmente estilhaçada. A primeira bailarina. Os palcos europeus. Tudo se foi. Meu corpo, antes um vaso de graça e poder, agora era uma jaula quebrada.
Meus olhos encaravam o teto, sem ver. Meu mundo parou bruscamente. A ironia era um gosto amargo e metálico na minha boca. Eu tinha acabado de receber a oferta do meu sonho, uma fuga. E agora, isso.
A enfermeira, sentindo meu desespero, tocou meu braço gentilmente. "Devo contatar sua família, querida? Sua mãe? Seu meio-irmão, Heitor, ele tem estado bastante preocupado."
Heitor. O nome foi uma nova facada de dor. Preocupado? Ele me jogou fora como lixo, me deixou desabar no mármore frio. E minha mãe. Ela escolheu seu marido rico em vez de sua própria filha, me deixando sofrer sozinha.
"Heitor e Aline receberam alta esta manhã", continuou a enfermeira, alheia à minha turbulência interna. "Ferimentos leves, felizmente. Eles tiveram muita sorte."
Sorte. A palavra irritou. Eles saem ilesos, enquanto meu mundo implode.
"Sobre as contas médicas, querida", acrescentou a enfermeira, sua voz prática. "Os custos iniciais são bem altos. Precisaremos discutir suas opções de pagamento."
Opções de pagamento. Minha "família" me deixou para lidar com as consequências sozinha. Eles estavam preocupados, disse a enfermeira. Mas não o suficiente para me visitar, para ficar. Não o suficiente para pagar pelo meu corpo quebrado.
Uma risada amarga escapou dos meus lábios. Família. Que piada cruel.
Eu precisava fazer uma ligação. Não para minha mãe, não para Heitor. Para as únicas pessoas que realmente me apoiaram. Meus colegas. Minha família da dança.
"Posso usar seu telefone?", perguntei, minha voz quase um sussurro.
Meu colega, André, correu para o hospital, seu rosto marcado pela preocupação. Ele pagou minhas contas, providenciou minha alta e sentou-se ao meu lado, uma presença calmante na tempestade do meu desespero.
"Bianca, não desista", disse ele, seus olhos gentis. "Este não é o fim. Existem outros caminhos. Nossa companhia, queremos que você considere uma posição como diretora artística, uma coreógrafa. Apoiaremos sua recuperação. Conseguiremos os melhores especialistas para você."
Um pequeno lampejo de esperança, frágil mas real, acendeu-se em meu peito. Uma coreógrafa. Uma diretora. Não era dançar, não da maneira que eu sempre sonhei, mas ainda era arte. Ainda era meu mundo.
Agarrei a mão dele. "André, obrigada. Obrigada."
Naquela noite, fiz a ligação para uma prestigiosa companhia de dança europeia, aquela que me ofereceu uma bolsa de estudos anos atrás. Expliquei minha situação, minha voz tremendo com uma mistura de medo e recém-descoberta determinação. Para minha surpresa, eles ouviram. Eles me ofereceram uma posição como coreógrafa estagiária, uma chance de reconstruir, de me redefinir. Eles me ofereceram uma tábua de salvação.
O mundo não me abandonou completamente.
Com a ajuda de André, fiz os arranjos. Ele garantiu meu voo, cuidou da montanha de papelada e embalou meus poucos pertences do apartamento alugado.
Alguns dias depois, eu estava sentada em uma cadeira de rodas, minhas pernas enfaixadas apoiadas, enquanto André me empurrava pelo aeroporto movimentado. Agarrei meu passaporte, meu bilhete para uma nova vida. Quando o avião decolou, deixando a cidade vasta e indiferente para trás, fechei os olhos. A dor, a traição, a perda esmagadora – eu enterrei tudo fundo, bem fundo. Este era um novo começo. Uma chance de me reinventar. Uma chance de curar. Uma chance de provar a mim mesma, e a eles, que eu era mais do que apenas uma dançarina quebrada.