Uma Noite, Seu Legado Oculto
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Capítulo 2

Clara POV:

O táxi acelerava pelas ruas familiares de São Paulo, cada prédio uma dolorosa lembrança de uma vida que eu tentei superar. Meu coração martelava contra minhas costelas, um solo de bateria caótico de raiva e antecipação. Eu estava indo para o escritório dele na USP, o lugar onde ele passava mais tempo do que em qualquer outro, o coração de seu universo.

Enquanto nos aproximávamos da universidade, um súbito som de sirenes cortou o zumbido da cidade. Meus olhos se voltaram para a comoção. Uma ambulância, luzes piscando, estava parando em frente ao prédio de ciências. Um nó se apertou em meu estômago. O prédio de Júlio.

Antes que eu pudesse processar a onda de pavor, uma figura emergiu da entrada, seu rosto gravado com um medo que eu nunca tinha visto dirigido a mim. Júlio.

Ele não estava olhando para o prédio, ou para a ambulância. Seu olhar estava fixo em uma maca sendo levada para fora, uma figura pequena e frágil deitada nela. Helena.

Minha respiração prendeu. As mãos de Júlio tremiam enquanto ele agarrava a lateral da maca, sua voz um murmúrio desesperado que eu não conseguia distinguir. Seus ombros estavam curvados, sua mandíbula cerrada, cada músculo gritando puro, absoluto terror. Ele parecia completamente desfeito. Era um pânico cru e visceral, um contraste gritante com a compostura indiferente que ele sempre mantinha ao meu redor.

Isso não era uma preocupação silenciosa. Isso era terror por alguém que ele amava, alguém que ele não suportaria perder. Uma onda de água gelada me encharcou, mais fria que o vento do Rio. Este era o Júlio que eu ansiava, aquele capaz de uma emoção tão profunda. E não era por mim.

As portas da ambulância se fecharam com um baque. Júlio, sem pensar duas vezes, pulou para dentro, desaparecendo de vista. As sirenes soaram novamente, desaparecendo à distância enquanto a ambulância acelerava. O motorista do táxi, alheio à minha catástrofe interna, continuou em direção ao meio-fio.

"Espere!", eu disse de supetão, minha voz falhando. "Siga aquela ambulância!"

Ele me olhou no espelho retrovisor, surpreso. "Moça, eu não posso-"

"Eu pago o dobro", eu disse, tirando um maço de dinheiro. "O triplo. Apenas siga."

Ele deu de ombros, vendo claramente o desespero em meus olhos, e pisou no acelerador. A perseguição foi frenética, um borrão de quarteirões e luzes piscando. Cada curva me aproximava de uma verdade que eu desesperadamente não queria enfrentar.

Chegamos ao Hospital Sírio-Libanês. Júlio já estava lá dentro, andando de um lado para o outro na sala de espera da emergência como um tigre enjaulado. Seu rosto estava pálido, seu cabelo geralmente impecável estava bagunçado, sua gravata torta. Ele parecia menos o renomado Dr. Brandão e mais um garoto aterrorizado e de coração partido.

Eu o observei de longe, escondida atrás de um vaso de plantas perto da recepção. Meu coração doía com uma dor familiar e lancinante. Era isso que eu sonhara, pelo que rezei: Júlio, vulnerável, com medo, desesperado. Mas era tudo por outra pessoa.

Minutos se arrastaram em uma eternidade. Um médico finalmente se aproximou de Júlio, que avançou, suas mãos nos braços do médico, exigindo respostas. O médico falou baixinho, e eu vi os ombros de Júlio visivelmente relaxarem em alívio. Helena ia ficar bem.

Ele passou a mão pelo cabelo, uma respiração trêmula escapando de seus lábios. A tensão lentamente drenou de seu corpo, deixando-o com uma aparência totalmente exausta. Alívio, puro e absoluto, inundou seu rosto. Ele até sorriu levemente, um fantasma do sorriso terno da foto. Meu coração se contorceu.

Eu precisava saber mais. Aproximei-me da recepção, fingindo preocupação. "Com licença, estou aqui por Helena Valença. Como ela está?"

A enfermeira ergueu o olhar, sua expressão cansada. "Ela está estável. O Dr. Brandão está com ela agora."

"Dr. Brandão?", perguntei, como se estivesse surpresa. "Ele é... da família?"

A enfermeira me deu um olhar de cumplicidade. "Ele está aqui por ela desde o primeiro dia, querida. Desde que a irmã dela faleceu. Ele praticamente a adotou."

Meu sangue gelou. A irmã dela. Catarina. As peças se encaixaram, formando um quadro horrível. Helena não era apenas a cópia exata de Catarina; ela era a irmã de Catarina. Júlio não estava apenas substituindo seu amor perdido; ele estava protegendo a família dela, talvez até tentando se redimir pela morte de Catarina através de sua irmã. A revelação me atingiu como um golpe físico, uma nova onda de náusea subindo pela minha garganta. Minha suspeita de uma substituta foi confirmada, mas a verdade era ainda mais distorcida, mais angustiante do que eu poderia ter imaginado.

Minha cabeça girou. Cambaleei para trás, encostando-me na parede fria. Fez sentido. A Iniciativa C.V. Catarina Valença. Não era apenas pesquisa. Era um santuário, um legado. Ele o financiou para ela. Para Helena. Minha doação de 25 milhões de reais, o noivado cuidadosamente orquestrado de Caio – não era para nós. Era para ela. Para salvar Helena.

Senti uma nova onda de raiva, mais quente e potente do que antes. Não apenas raiva de Júlio, mas de mim mesma. Por ser tão cega, tão desesperada, tão completamente usada.

Júlio saiu do quarto momentos depois, seu rosto ainda pálido, mas suavizado pelo alívio. Ele me viu então. Sua mandíbula se contraiu, seus olhos se estreitaram, o calor instantaneamente substituído por aquele distanciamento frio e familiar.

"Clara", ele disse, sua voz plana, desprovida de surpresa ou boas-vindas. "O que você está fazendo aqui?"

Antes que eu pudesse responder, uma voz fraca chamou da porta. "Júlio?"

Helena. Ela estava apoiada na cama do hospital, parecendo frágil e etérea, seu cabelo escuro espalhado no travesseiro. Seus olhos, grandes e inocentes, fixaram-se em Júlio. "Você veio."

Júlio imediatamente se virou para ela, sua expressão dura derretendo em preocupação. Ele voltou para o lado da cama dela, pegando sua mão gentilmente.

"Claro que eu vim, Helena", ele disse, sua voz impossivelmente suave. "Você está se sentindo melhor?"

"Um pouco", ela sussurrou, seus olhos tremulando. Ela olhou para mim, um lampejo de algo indecifrável em seu olhar antes de se concentrar novamente em Júlio. "Eu estava tão preocupada. Com a emergência acadêmica."

Meu queixo caiu. Emergência acadêmica? Ele me deixou um bilhete sobre uma emergência no laboratório na manhã seguinte à nossa noite roubada. Agora isso. Ele estava sempre correndo para a crise de outra pessoa.

Helena apertou a mão de Júlio. "Eles disseram... disseram que meu remédio para o coração teve uma reação ruim. Aquele que você pagou." Ela olhou para ele, seus olhos cheios de lágrimas. "Você me salvou, Júlio. De novo. Assim como você me salvou anos atrás, depois que a Catarina..." Sua voz sumiu, um quadro de tristeza delicada.

A mão de Júlio apertou a dela. Ele olhou para ela com um remorso intenso, quase doloroso. "Helena, não se preocupe com isso agora. Apenas descanse."

Ela piscou, então olhou diretamente para mim, um sorriso sutil, quase imperceptível, brincando em seus lábios. "Sinto muito, Clara. Eu sei o quanto Júlio sacrificou por mim. Este noivado... deve ser tão difícil para você, sabendo que ele fez tudo por mim, pela Catarina."

As palavras foram um golpe calculado, direcionado diretamente à minha jugular. Ela sabia. Ela sabia sobre o dinheiro, sobre o acordo de Caio, sobre a verdadeira natureza do nosso noivado. Ela era uma víbora disfarçada de flor frágil.

Júlio olhou para mim, depois de volta para Helena, sua expressão indecifrável. Ele não negou. Ele não me defendeu. Ele simplesmente ficou ali, uma confirmação silenciosa de suas palavras cruéis.

Um nó frio e duro se formou em meu estômago. Os 25 milhões de reais. A "doação". Não era para sua pesquisa em geral. Era especificamente para a cirurgia cardíaca que salvaria a vida de Helena, uma condição exacerbada pela morte de sua irmã Catarina. Meu irmão Caio, em sua tentativa equivocada de garantir minha felicidade, havia essencialmente comprado a proteção de Júlio para Helena. Eu era apenas o infeliz dano colateral.

Senti uma onda de raiva incandescente, tão quente que quase me sufocou. Eu tinha sido um peão, um substituto, um escudo conveniente para sua culpa. Meu amor, meu desespero, todo o meu ser havia sido reduzido a uma transação.

Eu finalmente entendi. Minha paixão havia sido esmagada há muito tempo por sua frieza. Agora, a amarga verdade se revelava como uma ferida purulenta. Ele não estava apenas assombrado por Catarina; ele estava consumido por sua culpa, e Helena era a personificação viva de sua penitência. E eu? Eu não era nada além de uma obrigação transacional.

"Clara?", disse Júlio, sua voz agora afiada, vendo a emoção crua em meu rosto.

Eu olhei para ele, realmente olhei para ele, e não vi o homem que amava, mas um estranho. Um homem cego pela culpa e pela dor, manipulando aqueles ao seu redor, mesmo que sem intenção. Vi um homem que me permitiu acreditar em uma mentira, que me deixou me humilhar noventa e nove vezes, e depois uma centésima, tudo para proteger um fantasma e sua sombra viva.

Minha mandíbula se contraiu. Meus olhos, eu sabia, estavam em chamas. "Sabe de uma coisa, Júlio?", eu disse, minha voz perigosamente calma, as palavras pingando gelo. "Eu amaldiçoo cada segundo que desperdicei amando você. Cada um deles."

Seus olhos se arregalaram levemente, um lampejo de surpresa, talvez até de dor, cruzando seu rosto antes que ele o mascarasse novamente.

"Acabou, Júlio", declarei, minha voz ganhando força, ressoando com uma determinação recém-descoberta. "Nosso noivado. Essa farsa. Acabou."

Virei-me de costas, afastando-me dele, de Helena, do hospital, dos destroços da minha suposta história de amor. Não olhei para trás, nem mesmo quando ouvi Júlio chamar meu nome, um som fraco e desesperado que foi rapidamente engolido pelo ar estéril do hospital. Continuei andando, um pé na frente do outro, em direção a um futuro incerto, mas finalmente livre dele.

            
            

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