Capítulo 3 A noite acabou feito gim

Muitas vezes as pessoas não acreditam, mas nós, prostitutas também levamos uma vida comum. É claro que não tão comum quanto a da maioria das pessoas, mas não posso reclamar do meu enredo, bebo minha cerveja e vez em quando até uso algumas drogas ilícitas - entretanto nenhuma droga ou cevada faz com que eu me sinta melhor que quando me junto ao Emílio, meu melhor e único amigo, que diga-se de passagem é extremamente bonito. Particularmente gosto demais do cabelo macio e escuro que forma uma franja macia cobrindo parte da sua testa.

O sorriso é contagiante e o nariz foi perfeitamente desenhado por Deus.

Sexta-Feira, 21h00.

Nada deveria fazer com que uma profissional como eu trocasse seu dia de faturamento por alguns goles de cerveja, mas sabe... o Emílio é meu tudo. Não gosto de fazer nenhum atendimento que não esteja pré-agendado, mas nas sextas-feiras eu sempre acabo recebendo algumas ligações inesperadas, acontece que eu ainda dou valor para minha única amizade verdadeira, mais uma vez o Emílio havia brigado com a namorada e precisava de um ombro para chorar, eu o distrairia - Sem cobrar, é claro - com muito prazer, de longe ele é uma das pessoas que mais amo neste mundo, mas infelizmente ele não sabe sobre minha verdadeira ocupação.

21h24.

A mesma intensidade em que o amo é destinada ao ódio que sinto quando ele se atrasa quando combinamos de nos encontrar.

21h35.

Me orgulho de nunca ter lhe contado sobre minha real profissão, caso ele quisesse os meus serviços eu teria que reservar dois horários já que ele simplesmente não consegue ser respeitoso ou p o n t u a l.

21h40.

Eu cobraria triplicado apenas pelo desaforo!

21h44.

Aaaaaah!

É muito engraçado ser mulher nos dias de hoje, mas não posso dizer que também não me beneficio. O que eu quero dizer é apesar de estar com o ódio exalando por todos meus poros neste exato momento por estar há mais de uma hora esperando o meu melhor amigo, ainda assim eu não ficaria sozinha caso eu não quisesse. Estar em um bar sozinha há esta hora da noite é como andar desarmada em meio àqueles enormes carnívoros caçadores que podem comer diariamente 35kg de carne chamado l e õ e s. Estou no meu terceiro martíni e já perdi a conta de quantos homens deram sorrisinhos sacanas para mim, devem estar se perguntando se estou realmente sozinha, se levei algum bolo de um namorado, se sou lésbica ou apenas uma eremita. A solidão tem sido subestimada.

21h56.

Bom, parece que levei um bolo e estou sendo prejudicada financeiramente - uma vez que não posso tentar abrir uma nova carteira de clientes nesse bar em que frequento com Emílio - seria arriscado demais e agora eu levantaria e iria embora caso não visse o meu boneco de pano entrando desesperado com olhares aflitos em todas as mesinhas do bar, procurando claramente a sua melhor amiga, que no caso, sou euzinha.

- Eu sei, eu sei... Você deve estar me odiando e eu tentei entrar em contato com você durante todo esse tempo, e eu até conseguiria se não tivesse esquecido o carregador do celular em casa, você precisa me perdoar, Bela. - Emílio estava ofegante, demonstrando ter corrido o suficiente do estacionamento até o bar de maneira a diminuir os minutos de atraso.

- Espero que tenha uma boa desculpa, talvez a Stephanie tenha tido um ataque fulminante ?

Stephanie era a namorada de Emílio, e na verdade ela me odiava. Um ciúme doentio, realmente doentio. Ele me beijou no rosto, fazendo um cafuné rápido na minha cabeça e sentando-se na minha frente.

- Não, ela não teve um ataque fulminante e nem está prestes a morrer...

- Nem ao menos internada? - Demonstrei certo descontentamento, mas ele riu.

- Para de ser maldosa, você sabe que é apenas ciúme... Ela nunca vai entender nossa amizade, eu digo que somos almas-primas.

- E ainda assim ela deve querer me exorcizar. Mas me fala... O que aconteceu? Um homem não deixa uma mulher esperando por quase uma hora e não dá nenhum tipo de justificativa. Vamos, eu mereço. Sem contar que perdi várias chances de desencalhar, vários homens me olhavam como se quisessem me devorar...

- Ah, você não sairia com alguém e me faria perder viagem, sairia?

- Pedi para um deles voltar dentro de dez minutos, caso você não aparecesse, provavelmente eu estaria tomando champanhe em algum motel por aí... Sabe como é, estou realmente carente, faz muito tempo que não dou uma. - Sim, nosso relacionamento é tão íntimo a ponto de falarmos sobre tudo um com o outro... Bom, no meu caso, quase tudo.

- Já falei que posso te arranjar alguns caras, você precisa abrir o placar desse ano, Bela.

- Eu não vou sair dando para qualquer um, Emílio.

- Então você pode dar para mim e resolvemos seu problema de frigidez.

Rimos o suficiente para chamar a atenção das pessoas das outras mesas, apesar de toda nossa intimidade, amor e besteiras que falávamos um para o outro, essa realmente nunca havia sido uma possibilidade real. Não que eu nunca tenha pensado ou fantasiado sobre transar com o Emílio, ele era muito atraente e aquelas mãos enormes me chamavam atenção, mas a nossa amizade era algo que realmente nos tornava inacessíveis... e eu o amava de todo o coração.

- Então não me enrole, eu vou adivinhar: A Stephanie descobriu que você viria me encontrar em uma sexta-feira e fez o escândalo de sempre, vocês brigaram e você procurou acalmá-la explicando que existe sim amizade verdadeira entre homem e mulher... Ela deve ter dito que você estava cego e que provavelmente eu sou uma vagabunda sem coração que está fazendo com que vocês se afastem para que eu tenha você só pra mim. Você atrasou porque ela fez drama, repetindo em voz alta "eu não acredito que você vai me deixar nesse estado para encontrar aquela infeliz...", então você ficou até ela entender que nós somos feitos um para o outro. Certo?

Ele gargalhava, e aquele sorriso era realmente lindo:

- É, minha amiga... Foi praticamente isso, e eu iria te ligar para falar sobre o atraso, mas ela pegou meu celular e começou a bisbilhotar, a bateria acabou e ela não quis nem ao menos emprestar o cabo dela. Para não atrasar ainda mais decidi não passar em casa para pegar o meu e vim o mais rápido que pude.

- Então o que bebi até agora vai direto para sua conta, afinal eu não teria bebido quatro martínis tão rápido se você não tivesse atrasado tanto. Em falar nisso... Garçom? Me traga mais um martíni, por favor? - Esse seria o meu quarto.

01h40.

A noite acabou feito gim e eu sei que não sou um exemplo a ser seguido, por conta disso nunca dirijo quando bebo. Eu não esticaria a noite para não causar mais desconforto entre a relação do meu amigo com sua namorada, mas ele insistiu em me trazer para casa e acabamos subindo para o meu apartamento com a promessa de tomarmos apenas a última "saideira". Entramos no elevador e eu já estava bem animada devido a quantidade de bebida - na verdade eu não estou acostumada a beber tanto, quando saio pela noite preciso me manter sóbria para poder realizar bem o trabalho que sou contratada para fazer. Mas hoje? Hoje eu estava com meu verdadeiro amigo, e ele sim aguentava beber todas! Estávamos apoiados um no outro e ríamos das besteiras mais sem graça que vocês podem imaginar, ao mesmo tempo em que ele tentava equilibrar uma garrafa de vinho gelado.

O bom de morar em um prédio pequeno de apenas cinco andares - e muitas famílias tradicionais brasileiras - é que isso me poupa o trabalho de explicar minha rotina para um porteiro, já que o condomínio não havia contratado um. Mas ainda assim não me isenta da responsabilidade de explicar para os meus vizinhos a variedade de homens que frequentam meu apartamento... Na verdade, eu nunca havia me importado muito com isso, mas senti minha espinha esfriar quando a Dona Idália - uma senhora alta de aparência amarga que adorava comentar sobre a vida de todos os moradores do prédio - entrou no elevador para subir até o último andar conosco. Eu prometi doar cestas básicas caso ela não fizesse nenhum comentário sobre a movimentação dos corredores, ou se melhor ainda, ignorasse nossa presença.

- Boa noite, Isabela.

Ok, eu dobro a promessa!

- Boa noite, Dona Idália.

Emílio, educado o suficiente, também a cumprimentou... Eu senti que o universo estava conspirando contra mim quando ela decidiu esticar o assunto:

- Boa noite, meu menino. E quem é você? Eu sou a vizinha da Isabela, você deve ser o namorado? Pode ficar despreocupado que eu estou sempre de olho nessa garota. Viver sozinha não é uma tarefa fácil, não é Isabela?

MEU DEUS, EU ROGO SUA PRESENÇA!

Emílio sorriu e me abraçou:

- Eu sou amigo dela na verdade, Dona Idália. Somos amigos há muuuuuuuitos anos. A senhora que é nova por aqui, não?

- Sim, sim. Me mudei há pouco e me preocupo sempre com meus vizinhos, gosto de pensar que somos como uma família. Mas a Isabela parece ser bem ajuizada, sempre está acompanhada de bons amigos, bem vestidos, bem apessoados...

Eu vou ajoelhada ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida se essa v e l h a d o c a r a l h o infartar agora, eu prometo. Por favor, Jesus... JESUS?

Como eu não poderia então contar com a intervenção divina, precisaria ser mais inteligente que aquele fóssil que insistia em existir. Mas graças à eletricidade, antes mesmo que eu precisasse pular no pescoço enrugado daquela maldita, o elevador alcançou o seu andar e saímos. Demorei alguns minutos para achar minhas chaves e entramos, como sempre ele estava bem organizado e limpinho, e Emílio logo reparou:

- Ah... Que saudade das noites que passávamos aqui enchendo a cara, hein Bela?

- Pois é... Melhor época das nossas vidas! Precisamos retomar nossas noitadas.

- Vou ter mais tempo para você agora, estou terminando o mestrado e tudo vai ser mais fácil. Tudo! Vamos voltar a nos divertir, só vou dar um jeito de aproximar você e a Stephanie. Não tem como viver em um pé de guerra, né?

- Sabe que eu topo tudo para ficar ao seu lado. Ela poderia estar aqui... A convide, vamos! Tenho mais bebida na geladeira.

- Não, eu prometi para ela que voltaria cedo pra casa e não beberia demais hoje a noite, foi uma condição. Inclusive ela já está dormindo, eu não poderia ligar agora, mas vou mandar uma mensagem dizendo que estou em casa. Me empresta seu carregador? Posso pegar?

Enquanto ele falava, caminhava em direção ao meu quarto de trabalho, abrindo rapidamente a porta e demonstrando certo espantamento:

- Uau... Esse quarto está sempre arrumado, e cheiroso.

- É da minha amiga que divide o aluguel comigo, você sabe... Assim que ela voltar do intercâmbio vai voltar a usá-lo, por isso sempre deixo organizado. É uma promessa não deixar ninguém se apossar da cama dela. Mas vem, eu vou te dar o carregador.

02h55.

Vinho é a melhor coisa que existe!

03h05.

Cerveja gelada é uma dádiva!

03h15.

Esqueci que o Emílio sabe fazer uma caipirinha majestosa.

03h30.

VIVA!

03h35.

qqtaacontesendo

03h40.

Nunca, nunca misture...

            
            

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