Capítulo 3 Cássio

O rapaz ao meu lado nem se moveu. Respirei aliviada, talvez ele fosse mais calmo ou só estivesse com depressão.

Uma mulher de meia idade foi até a mesa em que eu estava sentada e colocou uma marmita de comida pronta na minha frente e uma na frente do rapaz ao meu lado. Depois colocou uma colher para nós.

Peguei a colher e fiz uma careta. A marmita continha uma comida simples, arroz, feijão, batata doce, carne moída e uma salada verde separada. Olhei novamente para a colher. Qual o problema com os garfos? Mas logo me perguntei isso lembrei. O Dr. Galates comentou que alguns podiam ser violentos. Suspirei resignada. - Só um mês. - Falei baixo comigo mesmo, e comecei a comer.

Eu estava desde que acordei sem comer, mas mesmo assim não conseguia sentir fome. Comi um pouco do almoço, que estava horrível, diga-se de passagem. A comida não tinha gosto de nada, tudo estava meio misturado, fazendo tudo ter o mesmo gosto. Empurrei a marmita um pouco e esperei liberarem para voltarmos para a sala, ou mandassem ir a outro lugar.

Cada minuto se estendia por uma eternidade, os pacientes comiam, batiam as talheres nas marmitas, viravam suas comidas, enfermeiros auxiliavam alguns, outros se sacudiam ou davam gritos aleatórios. Eu me sentia em um hospício. Suspirei esfregando as mãos no rosto. - Só um mês. - Repeti para mim mesma novamente. Era isso ou ficar louca também.

- Só um mês.

Olhei para meu lado, onde o rapaz que até então estava quieto falou.

- Oi? - Falei baixo, como um sussurro para ele.

Ele não me olhou, mas repetiu. - Só um mês.

Ergui a sobrancelhas.

- Você também ficará só um mês?

Perguntei, contrariando a dica do Dr. Galates, de não falar com ninguém. Afinal eu precisaria conversar com alguém, eu precisava falar. Eu era uma boa aluna na escola, estudiosa, sempre participava ativamente das aulas, tinha vários amigos com quem saía, jogava, participava de aulas de dança... Como conseguiria ficar um mês em silêncio?

Mas recebi seu silêncio. Virei-me para frente novamente e baixei a cabeça. Já estava me sentindo cansada. Queria poder me deitar.

- Só um mês...

Olhei para o lado novamente, o garoto balançava-se levemente para frente e para trás, tinha comido pouco de sua comida, menos que eu. Fiquei o olhando por um momento.

Ele deveria ter por volta dos 18 anos, pele branca, cabelos castanhos meio ondulados, de perto era possível ver que ele tinha alguns músculos. Era um rapaz bonito, porque será que está aqui? Me perguntei.

Ele ergueu os olhos para me encarar nesse momento, me fazendo estremecer. Nem mesmo Alisson, o garoto com quem eu vinha ficando tinha sido capaz de me causar tamanho arrepio. Os olhos dele, são de um azul celeste que eu nunca tinha visto em minha vida. Eram como de cristais, fazendo me enxergar dentro deles. - Oi... - Consegui dizer sem desviar o olhar.

Ele não me respondeu, apenas baixou a cabeça para suas mãos que se contorciam ansiosamente.

- TODOS DE VOLTA PARA O SALÃO PRINCIPAL.

Uma enfermeira falou alto, enquanto uns se levantavam e se encaminhavam para fora do refeitório, outros aguardavam por auxílio. Me levantei e segui de volta para sala, mas ao olhar para trás vi que o garoto ficou sentado no mesmo lugar. Estava mais curiosa do que o normal. Ele não parecia ter nada, parecia um garoto normal, a não ser pelo comportamento que ele estava tendo.

Sentei-me no mesmo local de antes e continuei observando tudo a minha volta.

- Você, está sentada.. no meu ... lugar...

Olhei para a direção que vinha a voz. Era o garoto do refeitório. Ele não olhava para mim, mas para algum ponto em cima da minha cabeça. Olhei para trás mas era só a parede.

- Ah... desculpe. - Falei me levantando. Mas uma enfermeira veio e puxou ele pelo braço.

- Esse lugar está ocupado, sente-se em outro.

Ela foi brusca com ele. Fazendo ele repuxar o braço e dar um grito. Me assustei dando um pulo da cadeira.

- Tudo bem, eu troco de lugar. - Disse tentando acalmar os ânimos.

- Ele tem que aprender, que as coisas não são só como ele quer! - Ela disse olhando para ele. - Vamos Cássio, tem vários outros lugares...

Cássio... então esse era seu nome.

Se eu achava que tinha me assustado antes, era porque não tinha visto o que ia acontecer agora.

Cássio se jogou no chão, sentando-se curvado, abraçando as pernas. Ele falava palavras desconexas, soltas e sem sentido. A enfermeira tentou o levantar, mas ele tinha força e não permitia, ser tocado.

- Tudo bem, ele pode... - Eu queria que deixassem ele, ele só queria sentar no lugar dele, mas o local começou a ficar agitado, outros pacientes se descompensando por conta do tumulto.

Vários enfermeiros vieram para volta dele e começaram a tentar erguê-lo. - Vamos tirar ele da sala, levar para o quarto. - Um deles disse, enquanto erguia ele com dificuldade.

Sentia meu coração descompassado, Cássio focou seus olhos em mim, e seu choro me pedia socorro. Mas como eu poderia socorrê-lo? Fiquei olhando, enquanto arrastavam ele para fora da sala, enquanto gritavam com ele, e tudo que eu via eram os límpidos olhos azuis tristes e desamparados.

Sentei-me de volta na cadeira, mas logo me levantei e troquei de lugar. Aquele lugar era de Cássio, não me sentaria mais ali.

Fechei os olhos tentando me acalmar, minha respiração estava ofegante, entrecortada e pesada. - Porque? ... - Eu repetia para mim mesmo, enquanto sentia as lágrimas escorrerem silenciosamente. Porque meus pais fizeram isso comigo? Porque os pais de Cássio estavam fazendo isso com ele... o que havia de errado com ele? Quanto tempo ele estava aqui ? Porque ele estava aqui?

Me levantei indo em direção a uma das portas que dava para o corredor.

- Onde você vai ? - Uma voz autoritária perguntou. Ergui os olhos e encontrei os olhos ferozes de um homem, que pela roupa devia ser mais um enfermeiro. Era jovem, devia ter uns 25 anos, olhos verdes, cabelos loiros. Era um homem bonito, pena a expressão tão fechada e feroz.

Engoli seco. - Eu... eu preciso falar com o dr. Galates... - Falei baixo, eu nunca senti tanto medo em minha voz como nesse momento.

Ele deu um sorriso de lado, mas não soou nada agradável. Ele me olhou de alto a baixo me causando arrepios. - O que você quer com ele ?

Pisquei, sem saber o que dizer, nem eu sabia direito o que eu queria com ele. Só que ele era a única pessoa dentro desse inferno que eu estava que eu podia conversar, ou perguntar alguma coisa.

Percebendo meu silêncio, o enfermeiro continuou. - Como é seu nome?

- Laura. - Respondi encarando-o sem muita convicção.

- Laura... - Ele tirou o celular do bolso e digitou algo. - Você chegou hoje, não é?

Assenti com a cabeça, com medo de minha voz não sair.

- Humm, aqui está... Laura Strabauer, bonito nome. - Me encarou fixamente. - 16 anos, depressão profunda, tentativas de suicídio...

Levei as mãos a boca. Então isso foi o que o médico colocou que ela tinha? Que ela era uma suicida e por isso precisava de observação constante? Senti meu estômago revirar.

- ... Transtornos alimentares...

Tirei as mãos da boca. Aí estava, cuidariam da minha alimentação com essa desculpa. Rosnei e dei as costas ao enfermeiro. Mas antes de chegar ao meu lugar ele se colocou a minha frente.

- Você não tem cara de suicida...

- É porque não sou! - Bradei, me arrependendo logo em seguida, lembrando que não podia correr o risco de o Dr. Galates me dopar de remédios. Fechei os olhos com força, tentando mais uma vez, desesperadamente acordar desse pesadelo.

- Não... - Ele tinha uma voz que me irritava profundamente, não era grossa nem fina, era uma voz que parecia que arranhava a garganta. - Então porque está aqui, Laura?

Bufei. - Talvez eu seja louca. - Falei fazendo um gesto circular com os dedos ao redor da cabeça.

Ele deu uma risada. - Se não é, aqui você vai ficar...

O encarei, sentindo um medo ensurdecedor me consumindo. Ele percebeu, pois sorriu e se retirou, me deixando ali, em pé, no meio da grande sala, sozinha e desesperada. Olhei para trás e o vi saindo e trancando as grades que davam acesso ao corredor.

Com passos lentos voltei para onde estava sentada. - Eu só preciso sobreviver... Meu Deus, me ajuda... - Recomecei a chorar, silenciosamente, para não chamar a atenção. Era isso que eu precisava. Não chamar a atenção.

Baixei a cabeça, na mesa, apoiada pelos meus braços e fiquei ali sentindo as lágrimas escorrerem e ouvindo os barulhos ao redor. Não sei exatamente quanto tempo depois, comecei a ouvir uma música. Ergui a cabeça e encontrei um casal, sentado no meio da sala. Ele estava com um violão nos braços, tocando uma música infantil, enquanto a mulher cantava, com uma voz suave e afinada.

Olhei as horas no relógio a cima da porta de entrada. 14 horas. Ainda faltava muito para hora de dormir, eu já sentia que em menos de um dia, metade da minha sanidade tinha ido embora. Observei o casal tocar e cantar animado, enquanto alguns pacientes cantarolavam, e até dançavam com as músicas.

Cerca de uma hora depois, o casal se despediu, abraçou alguns e se retirou da sala.

- PESSOAL, HORA DO PÁTIO.

O enfermeiro que falou comigo antes gritou, abrindo as portas laterais, liberando um pátio grande. Me dirigi em silêncio para lá, junto com os demais colegas. Era isso que eles eram. Meus colegas. Melhor pensar assim, suspirei. O local era bonito e bem cuidado, com partes com pedras lisas e outras partes com gramado. Tinha vários bancos para sentar e redes dispostas para os pacientes se embalarem. Pacientes não! Colegas. Meus colegas. Sorri comigo mesmo. Eu vou sair daqui e vou denunciar vocês, nunca mais vão colocar pessoas num lugar contra a vontade delas. Já estava me sentindo como uma daquelas pessoas que contavam histórias que muitos não conseguiam acreditar depois.

Achei um canto e me sentei, quieta, como eu seria dali em diante.

            
            

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