– Claro, minha filha. Se meu coração aguentar... – ela exibiu a falta de dentes num sorriso sincero.
– Vó, seu coração é mais forte do que imagina. – Eva respondeu. – Já passamos por tantas coisas e a senhora está aí, firme e forte.
– Minha força vem de vocês duas. Vocês são a razão de eu estar de pé. Vê-la digladiar-se naquela arena contra homens ou mulheres tão fortes, me deixa com medo.
– Não se preocupe, vovó. – Filipa segurou sua mão. – Ninguém morre ali.
– Mas ficam bem machucados, para mim já é o suficiente.
– Para tudo tem uma compensação. – Eva prosseguiu firme. – Olhe só a carroça que conseguimos com o que ganhei. Foi um grande passo em nossa vida.
– Não vou discutir isso, minha querida. Mas que meu coração fica assustado, ele fica. – a velha concluiu. Filipa depositou-lhe um beijo na face enrugada.
Terminaram a sopa quentinha feita com legumes colhidos da própria horta e um pedaço de carne comprado pelas meninas naquele mesmo dia. Após ajeitar as coisas na pequena cozinha, recolheram-se ao seus aposentos. As irmãs dividiam o mesmo quarto.
Eva começou a devanear sobre mais uma luta. Sonhava em finalmente poder se tornar campeã. Seria a segunda mulher a vencer, claro que teria que enfrentar Bárbara Anvero e sabia que não seria nada fácil vencê-la. Enfrentaria Cecília novamente, uma grande amiga que fizera naquele lugar no ano anterior. Elas tiveram seu embate, mas não deu para Cecília, a moça precisava se preparar mais para ser páreo para Eva. Contudo, elas se deram muito bem naquele lugar.
Elas aproveitaram para curtir o lugar juntas nos momentos de descanso e até mesmo para admirar os rapazes. Eram jovens e não podiam negar o desejo por alguns daqueles rapazes. Cecília afirmava ter se apaixonado por um deles; Kasimir. Ele era um competidor novato, nunca ficou entre os dez melhores, porém no coração da moça, já tinha um lugar cativo.
Eva divertia-se ao ouvir as narrativas poéticas de Cecília sobre o amor e Kasimir. Achava-as bobas e engraçadas. Em alguns momentos, chegava a zombar de Cecília. Sabia que neste ano, viriam muito mais explanações.
Eva também familiarizou-se com outros competidores, assim como criou rusgas com alguns. Eva não era doce e gentil como Filipa, por isso se algo a incomodasse, não deixava de falar ou se não gostasse de alguém, provavelmente criaria inimizade facilmente. Era o caso de Gaspar, achava-o inconveniente demais. Havia o enfrentado na grande final e perdeu para ele na última competição. O modo como ele interagia com ela, a irritava profundamente, e acredita que sua desconcentração diante das palavras dele, foram o motivo para perder a peleja, pois lutavam de igual para igual e chegaram a ficar empatados em pontuação. Foi um embate bem acirrado. César também não gostava de Gaspar, havia tomado as dores da amiga.
Com Bárbara, Eva não tinha problemas, porém havia uma certa amizade. Elas eram vistas de conversa, vez ou outra. Bárbara era uma mulher um pouco mais reservada, preferia não se misturar muito com ninguém, raramente era vista de conversa fiada com outro competidor. Na última competição foi eliminada por Gaspar também por isso não houve um enfrentamento direto com Eva.
Uma outra pessoa que Eva gostava muito, era Raul. Ele cuidava da alimentação dos competidores e tinha aproximadamente a idade deles. Era um jovem franzino e sua única habilidade era cozinhar, porém adorava estar ao lado dos competidores e muitas vezes, delirava sobre ser um deles, mas sabia que era algo impossível.
Muitos dos participantes não tinham muita paciência com ele ou lhe davam atenção. Eva, ao contrário, era muito receptiva e chegava a conversar por horas com o rapaz. Raul dizia a todos que ela era sua favorita e torcia fervorosamente por Eva. Havia construído uma amizade muito agradável com a moça.
Bárbara, Cecília, César, Kasimir, Raul, Gaspar. Logo estaria ao lado deles novamente. Uma infinidade de sentimentos pairava em seu cerne. Competitividade, amizade e quiçá até amor, lembrou-se de Cecília e riu. Ela definitivamente não combinava com aquele ambiente, no entanto havia muita garra naquela moça.
Pensou sobre Filipa e seu desejo de juntar-se a isso. Ela era muito parecida com Cecília, talvez não fosse uma boa ideia subestimar sua irmãzinha. Ela poderia surpreender e fazer história, por que não? Sorriu mais uma vez com seus pensamentos. Ao mesmo tempo, ponderou sobre haver um ambiente bem hostil naquele lugar, nem todos eram amigos, eram competidores diretos e muitos levavam isso muito a sério. Não gostaria de ver Filipa sendo hostilizada por ninguém.
– Eu estarei lá para protegê-la. – sussurrou. Filipa já dormia e não ouviu suas palavras.
Fechou seus olhos com tantas imagens e pensamentos pairando ainda em seu cérebro. Estava ansiosa, eufórica e feliz. Aquilo definitivamente era algo que gostava de fazer. Espantava todo e qualquer fantasma do passado. Embora seu cérebro a traísse e pensasse em como seus pais veriam suas conquistas na arena. Ficariam felizes? Teriam orgulho ou apenas medo por ela como a avó? Como seria tê-los a assisti-la? Por mais que não tocasse no assunto com ninguém ou até mesmo evitasse ouvir sobre, sua mente sempre resgata tais sentimentos, isso a deixava frustrada. Almejava apagar definitivamente aquelas lembranças, tinha raiva de si mesma muitas vezes por sentir tudo o que sentia. Mostrava-se sempre forte diante de todos, mas somente ela sabia o quanto seu coração sangrava ao pensar na família que as abandonou sem nenhum remorso. Abriu seus olhos mais uma vez e viu a face de Filipa adormecida, mesmo com a penumbra de seu quarto. Respirou profundamente e pensou que seria o suporte de sua irmã e de sua avó sempre. Faria tudo o que fosse possível pela felicidade delas. Fechou seus olhos novamente e desbravada pelo sono, finalmente adormeceu.