– Tem certeza que pretende participar, Filipa?
– Já discutimos este assunto várias vezes, César. Eu nunca tive dúvidas quanto a isso. Não sei porque insiste em me perguntar.
– Desculpe, mas não sei se te fará bem estar neste meio. As lembranças podem vir à tona e te machucar.
– As lembranças estão sempre me acompanhando, César. Elas nunca me deixaram. Ademais, Eva sabia bem que este era meu desejo e tenho certeza que ficaria feliz em me ver realizá-lo. Assim como ela realizou o sonho dela.
– Mas isso trouxe um fim trágico para ela.
– César, não foi isso que trouxe este desfecho. Eu não sei quem fez aquilo com minha irmã e nem o porquê, mas o fato é que ela realizou um grande sonho e estava muito feliz com isso. Eu vi seu olhar naquela arena, diante de toda aquela multidão. Jamais havia visto aquele brilho em seus olhos. Eu só... Só queria poder ter lhe dado um abraço antes de... de... – Filipa não conseguiu segurar a tristeza.
– Ah... Filipa. – ele a envolveu em um terno abraço. Não sabe o quanto isso também me dói. Estivemos juntos durante toda essa jornada. Não sabe como comemorei a vitória dela, mesmo ela sendo minha adversária. Nossa amizade estava acima de qualquer coisa.
– Eu sei, César. Obrigada por tudo o que fez por ela e agora está fazendo por mim. Sei que perdeu muito tempo me treinando e...
– Não fale isso. Treinei Eva e ela pretendia treiná-la quando terminassem os jogos, ela me disse. Infelizmente, ela não pôde fazê-lo. Estou fazendo isso por ela e por você também.
– Eu só queria entender porquê ninguém ligou para a morte dela. Nunca descobriram o culpado, tampouco se preocuparam em descobrir.
– Também acho que isso foi muito descaso, mas sabe bem, tanto eu quanto ela e muitos participantes, não somos ninguém. Somos apenas meras peças dentro de um jogo que atrai muito dinheiro para a coroa. Mesmo os jogos sendo tão propagados e as pessoas adorarem acompanhar tudo isso, elas logo encontram um novo ídolo e se esquecem rapidamente de tudo o que aconteceu. Parece que não há sentimentos dentro de ninguém. Logo encontram um novo ídolo ali dentro que possa lhe gerar vitória entre as apostas e se esquecem de tudo.
– Isso é deprimente...
– Eva rendeu muitas moedas a muita gente. Muitos encheram seus bolsos com a vitória dela. Toda aquela gente que enchia as arenas, tinha dinheiro envolvido em tudo isso. Por que você acha que o público presente era escolhido a dedo? Somente familiares entravam sem ter condições financeiras, o resto gerava muito dinheiro para a coroa. As apostas só eram clandestinas nos primórdios de tudo isso, depois a coroa passou a tomar conta de toda essa sujeira.
– Eu sei, mas... Bem, ela era um ser humano que os ajudou muito financeiramente também. Eles poderiam ter tido um pouco mais de consideração.
– A única consideração deles é com o próprio bolso, Filipa. Eles prestaram todas aquelas homenagens no festival do ano seguinte para passar uma imagem perfeita. Poucos daqueles que se emocionaram, sentiam algo de verdade. Doeu em mim, assistir aquela homenagem. Eu sentia verdadeiramente, mas estávamos cercados de hipócritas. Por isso, não gosto de vê-la enveredando-se por este caminho também. Por Eva, eu quase desisti disso tudo.
– E por que não desistiu?
– Pelo mesmo motivo que tive vontade de desistir, por ela. – César baixou a cabeça e começou a compreender a motivação de Filipa. – É... Você tem razão. Não dá para simplesmente ignorar tudo e fingir que nada disso acontece. Tentar apagar as marcas, abandonando o barco.
– E você foi o grande campeão no ano seguinte. Tenho certeza que ela ficaria muito feliz por você.
– Gostaria de ter podido compartilhar minha vitória com ela. – respondeu bastante amuado.
– Vai ficar tudo bem, César.
– Eu vou proteger você, Filipa, sabe bem. Só não prometo piedade se um dia nos confrontarmos. – sorriu tentando descontrair um pouco e espantar a atmosfera triste que tentava cercá-los.
– Eu digo o mesmo. – ela devolveu o sorriso e rememorou uma de suas conversas com a irmã. – Talvez, eu consiga descobrir quem matou Eva ou o porquê a mataram.
– Não deveria mexer nisso, Filipa. Não é bom para você.
– Não saber o motivo também não me faz bem. Eu preciso entender o que aconteceu.
– Só acho que isso pode te fazer sofrer.
– Não mais do que a morte dela já me fez sofrer.
– Você é quem sabe. – ele deu ombros.
– Bem, eu já fui aprovada no teste e já fiz minha inscrição. Amanhã, estaremos juntos naquele lugar.
Filipa guardou a espada que fora de Eva. Era com ela que treinava e com ela que ia participar das competições. Estava bem velha e deteriorada, mas tinha muita história a contar. Era um objeto mais que especial.
Olhou para sua avó que cortava alguns legumes compenetrada, sentiu um aperto em seu peito. Dona Ana não era mais a mesma, seu sorriso não exibia mais a alegria de outrora. Todas as vezes que se lembrava de Eva, era inevitável não chorar. Filipa que sempre fora emotiva, mais sensível, tentava se segurar e não verter tantas lágrimas, ao menos diante da avó. Tentava manter-se o mais forte possível por ela. Lembrava-se de como era o comportamento de Eva. Sabia que sua irmã sofria pela partida de sua mãe, mas portava-se como uma rocha diante das duas. Rememorou as tantas vezes que ouvia Eva chorar baixinho no quarto e fingia estar dormindo para não apagar a imagem que sua irmã tentava passar à ela. Respirou profundamente e achegou-se ao lado da avó. Beijou sua face sofrida e começou a ajudá-la com o jantar.
– Eu trouxe um pouco mais de sal, vovó.
– Que bom que você se lembrou. O nosso já está quase no final.
– Eu trouxe também mais um pedaço de carne e já conversei com o dono da barraca que compra nossas mercadorias. Ele virá duas vezes por semana aqui para pegar as mercadorias e ver se está tudo bem com a senhora.
– Eu disse que poderia fazer isso sozinha, minha filha.
– Vó, nós já conversamos sobre isso. Só vou partir tranquila se tiver a certeza que ficará tudo bem com a senhora. Não quero que faça esforços desnecessários, já não basta o tanto que trabalha nesta horta.
– Mas acho que ele cobrou muito caro por isso.
– Desde que a senhora fique bem, não importa a quantia que for dispensada. Temos reservas suficientes para isso. Se Eva estivesse aqui, teria tomado a mesma decisão.
– Tudo bem, minha querida. – os olhos da mulher umedeceram ao ouvir o nome da neta. Sabia que Filipa tinha razão.
Voltaram a cortar os legumes em silêncio. Filipa apenas observava os movimentos da avó com carinho. Ela era tudo o que lhe restava de uma família. Faria de tudo para que sua avó ficasse bem.
Dona Ana, após a morte de Eva, relutou um pouco em concordar com a ideia de Filipa participar da competição. Contudo, logo voltou atrás, não ia podar o sonho da garota. A despeito de tudo o que aconteceu, sabia que Eva foi feliz em participar e principalmente por ter chegado ao auge. Sabia que não seria justo privar Filipa disso. Ela só não prometeu ir até a arena, pois não sabia se seu coração aguentaria. Filipa não se importou com isso, também não achava justo cobrar de sua avó algo tão grandioso e dolorido. Dona Ana apenas cobrou dela que fizesse com alegria e desse o melhor de si como Eva o fazia. Filipa prometeu que seria assim. A avó dela ainda fez César em uma de suas visitas, prometer que cuidaria da menina para poder ficar mais tranquila quanto a tudo.
Filipa ajeitou-se em seu quarto após o jantar com uma sensação bem estranha tomar conta dela. No dia seguinte, partiria para o castelo junto a César. Lembrou-se da animação que Eva exibia em sua última noite em casa. Um misto de tristeza e saudade tomou conta de seu âmago e foi inevitável não segurar as lágrimas que se formaram. A dor ainda era muito grande e sabia que enfrentar tudo aquilo não seria nada fácil. Sabia que a preocupação de César tinha seu fundo de razão, mas ia enfrentar com a mesma força de sua irmã. Mesmo que doesse, ia abafar a dor e prosseguir. Não ia deixar as lágrimas rolarem a todo momento, seria apenas uma guerreira. Talvez não chegasse a ser campeã como Eva, mas não iria desapontá-la. Daria tudo de si diante dos obstáculos tanto dentro da arena como na vida.
– Eu prometo que vou ser feliz, Eva. Como você sempre desejou. – murmurou e secou o seu rosto com o cobertor.
Fechou seus olhos e adentrou ao mundo dos sonhos.