Dançando com o Diabo
img img Dançando com o Diabo img Capítulo 2 Lembranças de Aurora
2
Capítulo 6 Alguns anos antes img
Capítulo 7 Uma situação ruim img
Capítulo 8 Fugir do que se espera img
Capítulo 9 Tristeza img
Capítulo 10 Uma noite antes do fim img
img
  /  1
img

Capítulo 2 Lembranças de Aurora

Aurora estava com um pé no degrau da carruagem quando um barulho no outro lado do cais a fez parar. O prisioneiro havia chegado ao fim da prancha e estava recebendo ordem para subir em uma carroça ali parada, o que era obviamente difícil por causa das correntes.

Ao se mover devagar demais, levou um violento empurrão que o fez tropeçar e quase ficar de joelhos. Agarrando-se na parte de trás da carroça, tomou impulso e conseguiu ficar de pé novamente, voltando-se para os guardas com um olhar de desdém.

Sua insolência carregada de indiferença pareceu enfurecer seus algozes, rendendo-lhe um golpe com a coronha do mosquete nas costelas, o que fez com que se curvasse de dor.

Um grito de protesto contra o ataque covarde alojou-se na garganta de Aurora no momento em que o prisioneiro balançou as correntes na direção dos guardas. Foi um gesto vão de desafio, pois ele estava preso de uma maneira que dificultava seus movimentos, incapaz de causar algum dano real, mas seu ato de rebeldia aparentemente foi a desculpa que os guardas esperavam.

Os dois marinheiros o golpearam com a coronha de seus mosquetes, lançando-o contra o calçamento de pedra aos gritos de "cão sarnento" e "escória do mar".

Aurora recuou, mostrando-se horrorizada por presenciar alguém sendo tratado de maneira tão violenta, sem misericórdia.

- Por misericórdia, Percy - murmurou roucamente. - Faça-os parar!

- É um problema da marinha - respondeu o primo, em um tom cruel, em seu papel de vicegovernador de São Cristóvão. - Não tenho nenhuma justificativa para interferir.

- Meu Deus, eles vão espancá-lo até a morte...

Sem esperar resposta, Aurora ergueu um pouco as saias, ajustando-as para poder andar melhor, e seguiu apressadamente na direção da confusão.

- Aurora!

Ela ouviu Percy chamar seu nome e praguejar baixinho, mas não diminuiu o passo nem parou para pensar no perigo ou na loucura de interferir na violenta disputa.

Ela não estava armada e não tinha nenhum plano claro a não ser tentar salvar o homem, mas quando se aproximou dos guardas, bateu com a bolsinha no agressor mais próximo, conseguindo atingi-lo no lado do rosto.

- Mas que porcaria é...?

Quando o perplexo marinheiro hesitou diante do inesperado ataque, Aurora aproveitou para forçar a passagem e ficar entre o prisioneiro e os agressores. Ocultando o próprio medo, ela se ajoelhou cobrindo parcialmente o homem quase inconsciente com o próprio corpo para impedir que ele fosse atacado novamente.

O guarda blasfemou de maneira vulgar.

Fria e furiosa, Aurora levantou o queixo e o encarou, desafiando-o em silêncio a agredi-la.

- Madame, a senhora não tem nada o que fazer aqui - ele disse furioso. - Este homem é um pirata cruel.

- Você, meu senhor, deve se dirigir a mim como milady - respondeu ela, com a voz normalmente serena soando quase feroz ao recorrer ao poder de seu status. - Meu pai é o duque de Eversley e tem o príncipe regente e o lorde almirante como pessoas muito próximas.

Ela pôde perceber o marinheiro avaliando seus trajes e observando-a; seu elegante bonnet adornado de seda e o vestido de passeio eram cinzentos, representando um semiluto, com apenas um toque de lilás nas lapelas do casaquinho para quebrar a sobriedade.

- E este cavalheiro - prosseguiu ela quando Percy chegou apressadamente a seu lado - é meu primo Percy Osborne, que, por acaso, é o vice-governador de Névis e de São Cristóvão. Eu pensaria duas vezes antes de desafiá-lo.

Percy cerrou os dentes com o comentário dela e murmurou uma reprimenda:

- Aurora, isso é totalmente inapropriado. Você está dando um show.

- Mais inapropriado ainda seria ficarmos parados enquanto esses covardes matam um homem desarmado.

Ignorando o olhar do guarda, ela observou o prisioneiro ferido. Os olhos estavam fechados, mas ele parecia estar consciente, pois tinha o maxilar retesado pela dor. Ele ainda tinha uma aparência um tanto selvagem - a pele cintilava numa mistura de suor e sangue, e uma barba escura por fazer cobria parte do rosto.

Os piores danos pareciam ter sido causados à cabeça. Não apenas a têmpora sangrava em profusão, mas também o cabelo castigado pelo sol, de um dourado muito mais escuro que o dela, ficou com um tom enegrecido pelo sangue ressecado, evidentemente originado por um ferimento anterior.

Aurora ficou tensa enquanto olhava para baixo, sentindo os batimentos cardíacos acelerarem. A rude masculinidade que a havia afetado à distância era ainda mais óbvia de perto, a sólida musculatura do corpo era inconfundível. O peito era bronzeado pelo sol e os ombros envoltos por músculos, enquanto o culote de lona abraçava suas coxas fortes.

Ele então abriu os olhos, fixando-os nela. Eram escuros, de uma cor viva, com tons café e âmbar misturados. Seu olhar atento proporcionou a mesma sensação que tomara conta dela antes, abalando-a mais uma vez: a sensação de estar totalmente sozinha com ele, além da consciência aguçada da sua feminilidade.

Quase tão estranha para ela também era a terna sensação de proteção que os ferimentos dele lhe proporcionavam. Gentilmente, Aurora esticou-se para secar a mancha de sangue na testa dele.

Ouviu-se o som metálico das correntes e ele agarrou o pulso dela murmurando com a voz rouca:

- Não. Fique fora disso. Você vai se machucar.

Ela sentiu a pele queimar quando os dedos dele a tocaram, mas tentou ignorar a sensação, da mesma forma que não obedeceu ao seu pedido. Naquele momento ela estava mais preocupada com a vida dele do que com proteger a si mesma.

- Você não esperava que eu ficasse olhando enquanto você era assassinado, esperava?

Ela pôde vislumbrar um sorriso dolorido quando ele soltou seu pulso e tentou se erguer, impulsionando o cotovelo. Por um momento, ele fechou os olhos, como se sentisse tontura.

- Você precisa de um médico - disse Aurora, assustada.

- Não, eu tenho uma cabeça dura.

- Está claro que não é tão dura assim.

Ela já tinha se esquecido de que eles não estavam sozinhos quando o primo se inclinou sobre os ombros dela e exclamou consternado:

- Pelo amor de Deus! É o Sabine!

- Você o conhece? - Aurora perguntou.

- De fato, eu o conheço. Ele é dono de metade dos navios mercantes do Caribe. É americano. Nick, mas que porcaria você está fazendo aqui?

Ele fez uma careta de dor.

- Um infeliz encontro com a marinha britânica, acho.

Aurora percebeu que a fala dele era mais macia e rápida do que os sons entrecortados que ela emitia enquanto o primo voltava-se para os guardas e exigia uma explicação.

- O que significa isso? Por que este homem está acorrentado?

Os guardas foram poupados de responder quando o superior deles se aproximou. Aurora lembrava-se de ter conhecido o capitão Richard Gerrod em algum evento pomposo do governo algumas semanas antes.

- Posso lhe responder, vossa Excelência - disse Gerrod calmamente. - Ele está acorrentado porque é um prisioneiro de guerra, condenado ao enforcamento por pirataria e assassinato.

- Assassinato, capitão? Francamente, isso é um absurdo. Você já deve ter ouvido falar de Nicholas Sabine - insistiu Percy, pronunciando o sobrenome do americano Sa-bin. - Ele é um herói por essas bandas, e não um assassino. Obviamente você o confundiu com outra pessoa.

- Posso lhe assegurar que não o confundi com ninguém. Ele foi reconhecido por um de meus oficiais em Montserrat, onde ele foi atrevido e arrogante o suficiente para visitar uma mulher no meio de uma guerra. Ele provavelmente é o capitão Sabre, o notório pirata. Ele não apenas pilhou pelo menos dois navios mercantes britânicos desde o início da guerra, como também afundou o Barton, o navio de Sua Majestade, no mês passado.

- É do meu conhecimento - disse Percy - que a tripulação do Barton foi salva do afogamento pelo mesmo pirata e deixada na ilha mais próxima.

- Sim, mas um marinheiro morreu naquele episódio e muitos outros ficaram feridos. E Sabine quase matou um de meus comandados ontem, quando resistia à prisão. Ele realmente perpetrou atos de guerra contra a Coroa, sir Percy. Atos passíveis de serem punidos com a morte.

Percy voltou-se para o homem caído e perguntou:

- Isso é verdade, Sabine? Você é um pirata?

O sorriso amarelo de Sabine demonstrava uma raiva contida.

- Na América usamos o termo corsário, e jamais abrimos mão do direito de proteger nossos próprios navios. O Barton estava atacando um de meus navios mercantes e eu intervim. Quanto à pilhagem dos seus navios, considero essa uma troca justa pela perda de duas das minhas embarcações.

Aurora não estava tão horrorizada quanto talvez devesse com a acusação de pirataria. Pelo fato de os dois países estarem em guerra, a Grã-Bretanha considerava culpado qualquer navio americano. E Sabine realmente tinha o direito de defender seus navios. Ela sabia que o primo concordava. Apesar de essas crenças políticas serem consideradas desleais à Coroa, Percy considerava aquela guerra um erro e acreditava que a Grã-Bretanha era a principal culpada por instigá-la. A acusação de assassinato, no entanto, a deixou muito perturbada.

- Pirata ou não - disse Percy ao capitão, obviamente perturbado -, haverá consequências pelo fato de este homem ter sido feito prisioneiro. O senhor está ciente de que o senhor Sabine possui muitas conexões com a Coroa? Incluindo diversos governadores das ilhas e o comandante da Frota do Caribe?

O capitão falou com uma expressão carrancuda:

- As conexões dele foram justamente o que me impediram de enforcá-lo imediatamente. Mas duvido que venham salvá-lo. Quando o almirante Foley souber dos crimes dele, tenho certeza de que a ordem será executá-lo.

Com um ar sombrio, o capitão Gerrod olhou para Aurora.

- Minha senhora, é melhor ficar longe. Ele é um homem perigoso.

Ela suspeitava que o americano fosse realmente perigoso, mas aquele não era um argumento que justificasse a cruel brutalidade dos guardas.

- Sim, de fato - disse ela com ar de desdém, levantando-se para encarar o capitão. - Tão perigoso que sua tripulação precisou espancá-lo até que perdesse os sentidos, mesmo com ele amarrado como um peru de Natal. Realmente, eu temo pela minha vida.

Gerrod cerrou os lábios com raiva, mas Percy interveio rapidamente.

- O que você pretende fazer com ele, capitão?

- Ele será entregue ao comandante da guarnição e ficará preso na fortaleza até o dia da execução.

Aurora sentiu o coração apertado ao pensar naquele homem vigoroso perdendo a vida.

- Percy - implorou ela, encarando-o.

- Agradecerei, excelência - disse Gerrod em tom sombrio -, se não houver interferência no desempenho de minhas obrigações. Levante-se, pirata.

Sabine cerrou os lábios, e seu ódio pelo capitão era evidente no calor de seus olhos negros. Mas sua fúria continuava controlada enquanto levantava-se com dificuldade, apoiando-se nos joelhos.

Aurora o ajudou a se levantar, apoiando-o quando perdeu o equilíbrio, e sentiu o pulso acelerar quando o corpo pesado dele momentaneamente inclinou-se sobre o dela. Mesmo ferido e ensanguentado, sua irresistível masculinidade a afetava.

Seu primo deve ter sido lembrado da impropriedade daquele comportamento, pois Percy delicadamente a pegou pelo braço e afastou-a.

- Venha, minha querida.

Retesado pela dor, Sabine seguiu em direção à carroça. Aurora vacilou ao ver as marcas de sangue que cobriam seus ombros largos e as costas musculosas e, mais uma vez, um dos truculentos guardas agarrou-o pelo braço e o forçou para dentro da carroça.

Impotente, Aurora mordeu o lábio para segurar mais um grito de protesto.

O capitão Gerrod lançou um olhar duro a Aurora enquanto os dois guardas subiam atrás do prisioneiro, mas as palavras que disse foram dirigidas ao primo:

- Eu não pretendia escoltar o prisioneiro até a fortaleza. Eu deveria estar preparando minha fragata para ir até o litoral americano e participar do bloqueio naval. Mas vejo que preciso assegurar que minhas ordens sejam cumpridas com perfeição.

- Pretendo visitar a fortaleza pessoalmente - ameaçou Aurora precipitadamente, temendo pelo que fariam ao prisioneiro uma vez que estivessem sozinhos com ele. - Se ousarem espancá-lo ainda mais, prometo que vão se arrepender.

Ela sentiu os dedos do primo pressionarem seu braço e por pouco não se conteve de resistir ao apertão.

O capitão fez uma reverência dura, em que manifestou claramente seu descontentamento, depois subiu ao banco da frente da carroça e ordenou ao velho condutor negro que pusesse o veículo em marcha. Aurora e Percy ficaram olhando enquanto a dupla de cavalos de carga levava a carroça para longe.

- Você não vai se envolver ainda mais nisso, Aurora - murmurou Percy.

Obstinada, ela libertou o braço da mão firme do primo.

- Você não aprova esses tratamentos cruéis! Tenho certeza disso. Se o senhor Sabine fosse um prisioneiro inglês nas mãos dos americanos, você esperaria que ele fosse tratado com humanidade.

- Certamente que sim.

- O que vai acontecer com ele? - perguntou Aurora, com a voz repentinamente rouca.

Percy não respondeu imediatamente, o que confirmava seus piores temores.

- Certamente haverá um julgamento - protestou Aurora. - Não enforcariam alguém importante como ele assim, sem mais, enforcariam?

- Talvez ele não venha a ser enforcado - respondeu o primo soturnamente. - O almirante pode muito bem mostrar clemência.

- E se isso não acontecer? Você pode interferir?

- Tenho poder para derrubar uma ordem do almirante, mas colocar essa prerrogativa em prática talvez significasse o fim da minha carreira política. Minhas opiniões sobre a guerra já causam desconfiança. Libertar um prisioneiro condenado provavelmente acabaria sendo considerado uma traição. Pirataria e assassinato são acusações graves, minha querida.

Aurora olhou para Percy desolada.

- Você podia pelo menos mandar um médico para ver os ferimentos dele.

- É claro. Vou conversar pessoalmente com o comandante da guarnição e garantir que Sabine receba os cuidados médicos adequados.

Aurora olhou nos olhos azuis de Percy, tão parecidos com os dela, e conseguiu ler a preocupação que havia ali - assim como o comentário que ele não fez.

Que diferença faria as feridas de Nicholas Sabine serem tratadas se em breve ele seria enforcado?

A esposa de Percy ficou assustada com todo o sangue no vestido de Aurora, mas menos chocada com o motivo do que se esperava que ela ficasse.

- Não sei se eu teria coragem para interferir - disse Jane depois de refletir sobre a história que tinha acabado de ouvir.

As duas mulheres estavam sozinhas no quarto de Aurora. Depois de Percy tê-la acompanhado até a casa da fazenda e partido para cumprir sua promessa em relação ao tratamento médico do prisioneiro, a criada de Aurora a ajudou a trocar de vestido, levando o sujo para lavar. Lady Osborne ficou para receber um relato privado e mais detalhado dos acontecimentos daquela manhã.

- Não considero corajoso impedir que um homem seja espancado até a morte - retorquiu Aurora, ainda indignada com o incidente matinal. - E minha intervenção parece ter contribuído pouco para mudar o destino dele.

- O senhor Sabine tem uma família proeminente na Inglaterra - disse Jane, tentando confortar Aurora. - Ele é primo de segundo grau do conde de Wycliff. Além de possuir enorme riqueza, Wycliff sempre foi um homem de grande influência nos círculos governamentais. Ele poderia muito bem interceder em favor do primo.

- Talvez ele seja enforcado antes de a notícia de que foi preso chegar à Inglaterra - respondeu Aurora em tom sombrio.

- Aurora, você desenvolveu uma afeição por Sabine, não é?

Ela se sentiu ruborizar.

- E como eu poderia ter me afeiçoado a ele? Conheci esse homem somente hoje pela manhã, e estive com ele apenas por alguns instantes. Não chegamos nem a ser formalmente apresentados.

- Que bom! Porque, francamente, ele está longe de ser o tipo adequado de cavalheiro, apesar de suas conexões. Na verdade, suspeito até que ele seja um tanto perigoso.

- Perigoso?

- Para o nosso sexo, quero dizer. Ele é aventureiro e um tanto libertino - e além de tudo é americano.

- Percy disse que ele é um herói.

- Creio que seja mesmo. Ele salvou a vida de mais de duzentos plantadores durante uma revolta de escravos em Santa Lúcia alguns anos atrás. Mas isso não o tornou mais, digamos, aceitável. Dizem por aí que ele é a ovelha negra da família, que passou a vida adulta viajando por terras estrangeiras e participando de explorações bárbaras. Apenas depois da morte do pai tornou-se minimamente respeitável - e apenas por ter herdado uma fortuna e assumido os negócios da família.

- Você não o acusou de ser muito pior do que metade dos rapazes da Inglaterra.

- Ele é incontestavelmente pior, posso lhe garantir. Caso contrário, jamais teria sido aceito na famosa Liga Fogo do Inferno, apesar de ela ser patrocinada pelo primo dele, lorde Wycliff.

Aurora sabia que a Liga Fogo do Inferno era um círculo fechado e exclusivo, restrito aos homens mais libertinos da Inglaterra, dedicados ao prazer e à devassidão. Se Sabine realmente pertencia àquela associação licenciosa, ele era mesmo um pervertido.

- E você não pode deixar de lado o fato - acrescentou Jane - de que ele é um pirata condenado, com sangue nas mãos.

Aurora baixou o olhar para suas mãos. Jane, uma de suas amigas mais queridas, era atenciosa e astuta o suficiente para analisar objetivamente uma situação - atributos esses que faziam dela a esposa perfeita para um político. Percy muito corretamente a adorava, sentimento esse que era recíproco.

- Aurora - disse Jane -, existe a possibilidade de você ter sido absorvida por esse homem para fugir dos seus próprios problemas? Talvez você esteja tentando ignorar seu sofrimento ao se envolver no destino de um estranho.

Aurora enlaçou os dedos com força. Era bastante possível que sua simpatia por Sabine fosse maior em razão de sua própria situação delicada. Ela podia identificar-se com ele; conhecia a sensação de se sentir impotente para definir seu futuro, de não ser a dona do próprio nariz. Ele estava à mercê de seus captores, enquanto ela estava sujeita aos ditames do pai - e muito em breve seria apanhada na armadilha de um casamento extremamente desagradável.

Jane deve ter lido a verdade em sua expressão, pois disse gentilmente:

- Você tem preocupações muito maiores do que o destino de um pirata. Será muito melhor para você esquecer tudo isso.

Jane levantou-se com um leve silvo do seu vestido de seda.

- Desça para almoçar quando estiver pronta. Você vai melhorar depois que comer, ouso dizer.

Aurora, porém, não se sentia melhor, nem tinha apetite. Apenas brincou com a comida enquanto aguardava ansiosamente o regresso do primo.

Quando finalmente chegou a mensagem de seu escritório em Basseterre, o bilhete de Percy não continha nada além da reafirmação de que ele tinha conversado com o comandante da guarnição, que prometera pedir ao médico da fortaleza que examinasse os ferimentos do prisioneiro.

Aurora mostrou o bilhete a Jane e fingiu não pensar mais no assunto. Pouco depois, ela pediu licença, dizendo que precisava organizar suas coisas para fazer as malas e voltar para a Inglaterra. Mas não fez nada disso. Em vez de arrumar as malas, ficou olhando para o chão, lembrando-se do par de olhos negros que a observou atentamente e a tremedeira que provocou nela.

"Pelo amor de Deus, pare de pensar nele", repreendeu-se Aurora intimamente.

Logicamente ela concordava com Jane. Era muito mais sábio tirar o famoso pirata da cabeça. Ela iria embora de São Cristóvão dentro de alguns dias. E já precisava lidar com seus próprios e sérios problemas - mais precisamente seu compromisso com um homem nobre e dominador mais de vinte anos mais velho do que ela. Um homem que ela não apenas não amava, mas de quem realmente não gostava por causa de seus modos soberbos e autoritários e de sua estrita, quase puritana, fidelidade às convenções. Um anúncio público do seu noivado seria feito assim que retornasse à Inglaterra.

Por um momento, Aurora sentiu o mesmo pânico que sempre sentia quando pensava em seu futuro casamento. Assim que estivessem casados, ela se tornaria, na prática, uma prisioneira do decoro. Na realidade, poderia se sentir feliz se tivesse permissão para ter um pensamento original. Mas, como já vinha fazendo havia meses, forçou-se a pensar em outra coisa.

Abandonando a ideia de organizar sua viagem, Aurora pegou um livro de poesia. Mas quando tentou ler, não conseguia focalizar a página. Em vez disso, via as formas ensanguentadas de Nicholas Sabine no momento em que ele estava aos seus pés, impotente, seminu, acorrentado. Tentou tirá-lo do pensamento, mas fracassou completamente.

Ela não precisava fechar os olhos para imaginá-lo deitado em uma cela de prisão, ferido e com dores, talvez até próximo da morte. Teria ele pelo menos um cobertor para cobrir o corpo quase nu? Apesar do calor do sol caribenho, ainda era inverno. A brisa oceânica vinda do Atlântico podia tornar as noites bem frias. E a fortaleza de Brimstone Hill, para onde ele tinha sido levado, foi erguida bem no alto de um penhasco, exposta ao frio.

Ainda mais assustador era o fato de um prisioneiro poder desaparecer para sempre no vasto labirinto de câmaras escuras e corredores estreitos do lugar. A imponente cidadela da fortaleza era defendida por muros de rochas vulcânicas com mais de dois metros de espessura e levou décadas para ser construída.

Aurora chegou a comparecer a uma recepção militar na fortaleza de Brimstone Hill com Percy e Jane, e considerou desconfortáveis até mesmo os alojamentos dos oficiais. Estremeceu ao imaginar como seriam as acomodações dos prisioneiros.

Não era consolador lembrar a si mesma que havia feito tudo o que pôde por ele. Inútil argumentar consigo e exigir que fosse sensata. Ela nunca havia abandonado alguém em uma posição tão vulnerável.

Os últimos anos teriam sido mais fáceis se ela tivesse sido capaz de ignorar sua consciência, de controlar seus instintos protetores. Se tivesse conseguido manter um distanciamento adequado quando o pai despejou sua ira em seus infelizes dependentes. Mas ela jamais conseguiria ser tão insensível.

E agora só conseguia pensar em Nicholas Sabine, vulnerável e impotente, à mercê de seus brutais captores.

Talvez se o tivesse visitado, ainda que brevemente, apenas para ter certeza de que ele estava sendo bem tratado, ela pudesse aliviar a consciência a ponto de esquecê-lo...

Sentindo a ansiedade diminuir pela primeira vez desde o perturbador incidente no cais, Aurora calmamente baixou o livro. Seu coração começou a bater de forma errática com a perspectiva de ver o americano novamente, apesar de tentar reprimir o sentimento proibido quando pegou o sino para chamar a criada.

Ela combateria o decoro com uma vingança, talvez correndo o risco de um escândalo, ao visitar um pirata condenado, mas aquele poderia ser um dos últimos atos de independência que teria a oportunidade de realizar.

            
            

COPYRIGHT(©) 2022