Capítulo 2 II

Quando Elaine acordou novamente, sua cabeça não estava mais tão confusa quanto antes. Lembrava de cada detalhe do que havia ocorrido, se perguntava quem era aquela mulher que havia visto e se foi ela quem lhe ajudou.

Ela estava deitada numa cama muito velha e dura, uma pequena olhada em volta revelou que ela estava numa casa de pedra num quarto totalmente vazio com excessão de sua cama e uma cadeira de madeira com suas roupas douradas em cima. Ao notar que suas roupas estavam ali, ela olhou para baixo rapidamente, ela usava agora uma velha camisola de pano branca que tinha algumas manchas de sangue.

Ela elevou as mãos a frente do rosto, ficando um tanto quanto perplexa pois haviam poucos sinais de cortes neles e estavam já praticamente cicatrizados, deixando poucas marcas.

A porta então abriu apenas uma fresta e da mesma a cabeça de um velho senhor que tinha poucos cabelos e aparentava ser muito magro sorriu para ela.

- Vejo que acordou, já fazem quase três dias que estava dormindo.

- Onde eu estou? - questionou ela ao homem, não retribuindo a gentileza de suas palavras, a garota estava extremamente hostil.

- No Principado de Santana. - o rapaz então entrou no quarto, se aproximando da cama, Elaine se sentou rapidamente, se encolhendo ao canto dela, mantendo o máximo de distância possível, o velho senhor vendo que ela estava acuada, fez um sinal com as mãos para que ela as acalmasse.

- Calma, está tudo bem, jovenzinha. Você estava muito ferida quando a Lady Satana lhe trouxe aqui, eu tratei de você, não há o que temer.

- Onde fica o "Principado de Santana" e quem é você?

Bamako, o velho rapaz já esperava que a menina estivesse confusa, pois como um experiente doutor, conhecia muito bem a fisionomia humana e sabia que por mais sutis que fossem as diferentes, aquela humana não era dali.

- Nós estamos na Sangria, a Terra das Sombras Eternas e eu sou o doutor Bamako, muito prazer. Seu corpo é tão delicado, sua pele fina e macia, presumo que seja uma humana de Arcádia.

Ela reparou nos braços daquele homem que eram muito magros e sua pele que a primeira impressão pareciam enrugadas mas na verdade eram pedaços grossos de pele que pareciam calos. Os humanos que viviam nestas terras cruéis tinha a pele assim devido as extremas condições em que viviam, eram uma forma de defesa do corpo.

- Eu não sabia que haviam humanos aqui e onde está aqueles corpos podres que tentavam nos agarrar quando viemos aqui por engano?

- Acredito que você esteja se referindo ao Nevoeiro de Almas, é a última região antes do vazio infinito, do outro lado da Sangria, após o castelo de Lucius. Agora venha comer algo, você deve estar faminta. Logo terei de sair para conseguir roupas para você pois a sua foi completamente rasgadas! - ele falou pegando suas roupas que estavam na cadeira e levando até ela. Agora que ele havia dito, Elaine notou a monstruosa fome que sentia, ela pegou a sua batina com as duas mãos e a ergueu a sua frente, não havia parte alguma com mais de dez centímetros que não tivesse um rasgo, ela estava totalmente inutilizada.

Sentindo um pouco mais de confiança, ela se levantou da cama para seguir com ele até a cozinha, assim que seus pés tocaram o chão frio, ela tateou instintivamente com eles em busca de algum calçado mas não havia nada ali, ela olhou então para os pés de Bamako notando que ele também estava descalço e que seus pés estavam totalmente sujos, quase da cor do lodo negro que ela havia visto antes.

A cozinha era tão humilde quanto o quarto, havia apenas uma mesa disposta com duas cadeiras, um armário pequeno que não possuía portas e que tinha apenas alguns pequenos potes de vidro dentro e um pequeno fogão de chão com uma caldeira. O velho puxou a cadeira para que ela se sentasse, então foi até o armário, tirando um pedaço de pão caseiro, um baldinho e um copo, ao dispor o balde na mesa, ela viu que dentro do mesmo havia leite que estava com um cheiro forte, o homem sorriu para ela despejando o leite no copo.

- Normalmente eu não faço um banquete para pacientes.

Aquilo tocou Elaine de uma forma estranha, as condições dos humanos neste lugar devia ser deplorável, uma pequena nota de comoção tocou em seu coração. Ela aceitou muito educadamente a comida, extremamente grata pois sabia que aquele pedaço de pão e um copo de leite era muito mais do que ele poderia oferecer.

- O senhor poderia me explicar quem é Satana e por que minha magia não funciona aqui?

- Sua magia? Humanos não conseguem fazer magia! Pelo menos não nós da Sangria, seria fantástico fazer feitiços e coisas do tipo. Não me diga que os humanos de Arcádia são capazes?

- Sim, nós somos os mais hábeis magos. - ela respondeu de forma automática pois sua mente agora tentava entender o que poderia estar acontecendo, talvez fosse algo relacionado a está dimensão seus poderes terem sido afetados mas quando eles vieram pela primeira vez até estas terras, todos foram capazes de continuar usando normalmente suas habilidades mágicas, o que apenas lhe deixou mais intrigada com a situação.

- A senhora Satana é uma princesa, a mais bondosa de todas as criaturas, é a única nobre que não escraviza humanos e nos permite viver livres, você está num reduto único e próspero da Sangria. Se você tivesse ido parar em qualquer outro lugar destas terras, você veria a situação difícil que passamos nestas terras... Não se engane pela minha casa e meu banquete, minha situação não reflete a realidade da maioria dos humanos daqui.

Isto era um total absurdo, inaceitável e incompreensível, se a situação dele era considerada boa, como viviam os demais neste lugar? Era tudo tão miserável e horrendo neste lugar? Quando se está acostumado com o conforto, certas realidades podem ser chocantes, mesmo para Elaine cuja a vida não havia sido um mar de rosas, não conseguia acreditar pelo que essas pessoas estavam passando.

Ela perguntou onde poderia encontrar Satana, pois talvez ela tivesse algumas respostas e quem sabe até mesmo conhecesse um meio para retornar a Arcádia, ele então disse que bastava seguir a única rua do vilarejo até o fim que levaria até o castelo de Satana, ela agradeceu a hospitalidade e a generosidade do homem e se despediu. Ele a acompanhou até a porta, na saída ela se virou para ele segurando suas duas mãos.

- Eu irei retribuir sua generosidade um dia.

- Não se preocupe minha jovem, não sou eu quem precisa de ajuda nestas terras! Ajude alguém que esteja necessitado, assim já estará me retribuindo.

Ela confirmou com a cabeça que seguiria seu pedido, disposta a ajudar quem fosse preciso como formar de gratidão a alguém tão bondoso.

A rua que ela seguiu, não era nada mais que o local onde a terra estava batida devido as pessoas passarem diariamente pelo mesmo lugar. Enquanto caminhava pelo vilarejo, ela notou que a maioria das casas não passavam de tendas estendidas, tendo uma ou outra feita de madeira e a única feita de pedra era a de Bamako.

As pessoas pareciam correr e se esconder de sua presença conforme ela caminhava, alguns poucos no máximo ficavam a espiando pela janela, devido a aparência, eles estavam lhe confundido com uma Temerária, uma quase extinta raça da Sangria que se assemelha a muito aos humanos.

Com pouco tempo de caminhada ela deixou a vila para trás, no horizonte, em meio a montanhas ela conseguia ver o castelo, demoraria um bom tempo até chegar a ele. Seus pés descalços sofriam muito conforme caminhava, aquele pedaço de pão e o copo de leite não eram nem de longe suficientes para lhe nutrir e seu corpo estava frágil devido aos diversos machucados que havia sofrido ao passar pelo Bosque Vermelho.

Quando noite chegou ela optou por continuar a caminhar sem parar para dormir, quanto antes chegasse mais rápido este sofrimento estaria perto de acabar. O ar era muito calmo e fedido, não havia uma brisa sequer de vento, o céu era negro e sem estrelas e a lua era um corpo celeste disforme vermelho e o silêncio era absoluto. Desde que chegará ela reparou após prestar atenção no silêncio que não havia visto animal algum desde que chegará, talvez eles não existissem aqui ou eles viviam o mais afastado e silenciosos possível para não serem notados pelo que quer que vivesse aqui.

Quando finalmente chegou no castelo já estava quase amanhecendo novamente, ela estava a beira da exaustão. O castelo a sua frente era enorme, de modo que ao se aproximar da muralha frontal, ela não conseguia mais ver as extremidades devido ao tamanho colossal da construção.

Ela parou em frente a um enorme portão, ao olhar para os lados não via ninguém que pudesse lhe atender. Sua primeira tentativa foi bater no portão para que alguém escutasse, ela fechou o punho e bateu fortemente contra a madeira algumas vezes, quebrando o mórbido silêncio costumeiro daquele local e após vários minutos de espera sem nenhum sinal de que alguém tivesse ouvido, ela decidiu ir verificar se havia alguma outra entrada no castelo.

Após um tempo caminhando ao lado da grande muralha que antecedia o castelo, ela avistou uma pequena portinhola de madeira que estava aberta. Ao chegar na entrada, Elaine reparou que a mesma se tratava de uma espécie fosso que vinha lá de cima, numa caída não muito ingrime que descia na diagonal, os desgastes nas pedras formavam sulcos grandes os suficientes para ela conseguir apoiar os pés e as mãos.

A jovem não sabia a finalidade daquele buraco, o mesmo era uma vala por onde piche quente era despejado contra os exércitos invasores.

Ela se enfiou no buraco com relativa facilidade, apoiando as mãos nas protuberâncias das rochas e escalando como dava. Ao chegar na metade, ela parou olhando para a pequena luz na saída, seus cabelos estavam grudados sobre a testa devido ao suor, ela fez uma careta de dor devido a fadiga, dor e fome, pensando seriamente em desistir. Suas pernas começaram a estremecer, ela estava prestes a se soltar quando ela sentiu um arrepio passar por seu corpo, algo como se fosse um uivo soar em sua cabeça, seria possível que mesmo ali o Lobo ainda estava com ela, lhe guiando? Todo o seu esforço até ali teria sido em vão. Ela respirou fundo, puxando todo o ar que seus pulmões eram capazes de comportar e então continuo sua escalada, indo muito mais rápido que antes e sem pausas até chegar no fim do buraco.

Ela colocou as mãos para fora e fazendo força, ela conseguiu subir, se jogando ao chão do local que era uma enorme plataforma na parte superior da muralha. Ela permaneceu ali jogada ao chão, olhando na direção do castelo com um sorriso, se sentindo realizada por ter chegado tão longe simplesmente com seu esforço próprio, algo que ela faria questão de que Shura soubesse no futuro.

            
            

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