Capítulo 5 V

O quarto em que ela foi alocada poderia ser o mais luxuoso de toda aquela dimensão, se não fosse pela sujeira do local que o tornava desagradável.

A cama enorme tinha lençóis feito a seda, a mobília era feita de madeira plantada sobre os raros solos férteis da Sangria, cada parede possuía um enorme espelho, o tapete feito de coro de Wyvern, criaturas semelhantes aos dragões e um enorme lustre no centro finalizaram a decoração, mas restos de comida apodrecidos e sangue tornavam o local nojento.

A porta que dava para a suíte estava emperrada, com muita força ela conseguiu abrir uma pequena fresta cujo fedor que era forte até mesmo para os padrões locais, invadiu toda a sala, fazendo ela vomitar no chão, a origem daquele odor ela preferiu não saber.

Ela levou três dias para decorar a maior parte do castelo, os demônios menores estavam furiosos pois os humanos haviam sido dispensados e agora estavam tendo de fazer todo o trabalho escravo eles mesmos.

No quinto dia, enquanto andava pra sala das caldeiras, ela encontrou uma fenda na parede de onde era minerado os carvões para alimentar os caldeirões, que ela decidiu explorar, levando apenas uma tocha improvisada feita com a madeira e panos que ela achou ali e a acendendo no fogo das caldeiras que como as mesmas só eram usadas em dias de festanças, se encontravam vazias, apesar do fogo ali jamais se extinguir, ele devia ser alimentado para poder aquecer melhor.

Conforme caminhava acompanhada apenas de sua sombra, Elaine descobriu um complexo de túneis por baixo do castelo que levavam até as montanhas.

Já faziam cinco dias que ela havia chegado no castelo, Asmodeus estaria atrás dela quando retornasse, o que a fez se arrepiar por completo, não poderia mais voltar para o castelo, está era sua única chance de encontrar o Bruxo das Cavernas, que era como ela havia escutados os demônios o chamarem durante suas andanças sorrateiras pelo castelo.

Quando a chama começou a diminuir de tamanho, Elaine sentiu falta de sua magia, ela poderia simplesmente iluminar todo o local com uma centelha de seu poder e numa vã esperança de que sua magia tivesse reavivada, ela se concentrou na chama da tocha por alguns segundos, mas nada aconteceu, totalmente frustrada ela continuou a andar pelo local, desta vez chamando pelo Bruxo.

Por fim após mais de uma hora andando, ela começou a sentir uma brisa que conforme ela andava, ia aumentando, isso despertou sua curiosidade afinal, o único modo de o vento entrar numa caverna é pela entrada e de fato ela estava certa, quando o túnel começou a se inclinar para cima, numa subida não muito ingrime com um pequeno ponto luminoso no fim, este mesmo túnel canalização o vento por toda sua extensão, criando uma espécie de tonel que ficava mais forte a cada passo que ela dava.

A essa altura o vento já havia apagado a tocha em sua mão, sua única opção era continuar subindo por ele mas o vento que começou apenas fazendo seus cabelos esvoaçar, agora se postavam como uma barreira que quase a empurraram túnel a baixo.

Ela tinha de ir engatinhando e segurando firmemente em cada ao chão para que não fosse jogada pelo vento, as pequenas fuligem pareciam agulhas espetando por todo seu corpo devido a força com que o vento as jogava.

Quando finalmente chegou a saída, colocando a cabeça para fora e olhando em volta, sentia apenas uma leve brisa e se sentiu grata por não ter de lutar por cada passo. Ela se postou para fora da entrada da caverna que era quase no sopé de uma das montanhas, totalmente fora da propriedade de Asmodeus. Ela deu alguns passos para além da boca da caverna e acabou escorregando nas pedras lisas, caindo de bunda e deslizando até o final da montanha, o que para ela foi como se fosse um pequeno lembrete de que ainda era apenas uma humana, independente de tudo que já havia passado até o momento.

Ao dar uma melhor olhada em volta, já de pé, ela viu que estava agora atrás do castelo pois não havia aquela quantidade de cadáveres que havia visto quando chegou.

As montanhas continuavam formando um paredão com um único vão, a frustração diante dessa imagem tomou seu coração, se seguisse por ali, seria facilmente vista e sabia que não poderia correr mais que os demônios, não havia para onde ir e ainda não tinha encontrado o tal bruxo, estava presa entre enormes muralhas naturais de pedra, algo que um simples feitiço de levitação daria conta, ela se sentou no chão para descansar e tentar forçar seu cérebro a pensar em algo.

O céu começou a escurecer e enquanto olhava para a enorme montanha, tentando bolar algum pleno, um rápido lampejo luminoso a chamou a atenção, era um brilho branco, não amarelado como o do fogo mas sim branco, como um lampejo de energia, isso a fez se encher de ânimo e simplesmente sair correndo para a outra extremidade do cânion e ao cruzar a área plana do vale, os soldados demônios de campana notaram aquela criatura abusada perambulando por ali, assim os demônios alados de prontidão foram acionados para verificar do que se tratava. Infelizmente para Elaine eles eram criaturas muito rápidas, pois assim que chegou ao pé da outra montanha que era levemente mais ingrime que a qual ela havia escorregado para fora, ela tentou escalar já notando as criaturas voando em sua direção mas com um rasante, uma delas que tinha pés com garras enormes a pegou como uma águia faz com sua presa. De forma inútil ela tentou bater nas pernas da criatura e se debater mas ela era tão fraca se comparada a um demônio, era como uma criança tentando esmurrar um adulto e além de ineficaz seus espasmos para se libertar, a criatura apertava ainda mais suas garras, ao ponto de quase esmagar as costelas dela com tamanha pressão, tornando muito difícil sua respiração.

Antes que a criatura pudesse ultrapassar as muralhas do castelo, uma rajada de fogo lhe acertou, fazendo com que soltasse Elaine, a altura seria suficiente para quebrar pelo menos alguns ossos mas no meio da queda ela foi interceptada por uma criatura humanoide, que saltou da montanha a agarrando e pousando de forma nada sutil no chão, naquele momento ela estava sem força e se sentia como uma boneca de pano nas mãos da criatura que tinha a pele escamosa e uma rápida olhada em sua face revelava seus dentes serrilhados e disforme. A criatura praticamente a jogou no chão e saltou na direção do demônio alado.

Ela não conseguiu acompanhar a luta nos céus pois estava desorientada, conseguindo ficar em pé com grande esforço e quando finalmente levantou o olhar procurando pelo combate, o mesmo já havia acabado e criatura que lembrava um réptil semi humano havia sido vencedora, ambos ficaram se observando frente a frente, a criatura tinha pequenos espamos e mexia a cabeça de forma sútil como uma serpente.

- Por que me salvou?

- O que é você ? - a criatura tinha uma voz humana, diferente dos demônios e Elaine era tão estranha para ele quanto ele era para a maga.

- Eu sou humana e você?

- Também já fui humano. Hoje sou o Bruxo, amanhã serei algo que temo -

A criatura era emblemática, de forma que fez Elaine se perguntar qual o significado de suas palavras - podemos conversar depois, pois uma guarnição terrestre deve sair do portão a qualquer momento.

E de fato foi o que aconteceu, os enormes portões começaram a se abrir lentamente mas os dois não ficaram parados para ver o que sairia de lá, a criatura saiu na frente com sua agilidade sobre humana, subindo pela montanha e entrando numa das cavernas e de forma menos ágil mas com muita garra ela o acompanhou, também subindo e entrando na caverna.

Eles apenas caminhavam agora, a criatura parecia ter muita ciência de qual caminho seguir na escuridão que começava a aumentar, andando sem vacilar por momento algum e para não se perder, Elaine correu a seu lado, segurando em seu braço e se deixar ser guiada, num gesto de confiança ao Bruxo.

- Você é o famoso Bruxo pelo qual os demônios buscam?

- Por enquanto, sim. Deve ter notado minha estranha aparência, o fato é que fui amaldiçoado por Lucius e pouco a pouco estou deixando de ser humano, logo mais não responderei mais pelo nome que me foi dado, me pergunto se responderei por algum nome quando a maldição se completar.

- Você era um mestre em magia, para ter este apelido dado mesmo sendo humano, pensei que os humanos não fossem capaz de fazer magia na Sangria!

- Na verdade nós apenas não sabemos como a fazer. Encontrei alguns manuscritos tão velhos quanto O Fechamento, pude aprender sobre o funcionamento da magia em outras terras, como seu conhecimento é desenvolvido, apenas não tivemos a mesma chance por estarmos tão ocupados em servir e sobreviver.

- Mas eu possuo grande conhecimento em magia e não consigo realizar um feitiço sequer aqui!

- Então presumo que não seja da Sangria. Você tem conhecimento da magia de sua dimensão, não da magia da Sangria, pois aqui não há espíritos ou runas para canalizar seus poderes, muito menos objetos encantados e a própria natureza tem tão pouca energia aqui.

Como havia sido tola, agora tudo parecia tão claro para ela, as leis e modos da magia com que estava acostumada simplesmente não eram os mesmos daqui, como não havia notado antes?

- E como você é capaz de usar magia?

- O poder é tirado do sangue, morte e sofrimento, por isto os demônios a fazem tão naturalmente.

As referidas magias eram proibidas em Arcádia, até mesmo seus estudos eram vetados pelo Sumo Sacerdote e aqueles que a praticassem eram considerados criminosos, por isto a possibilidade de lhes usar sequer havia passado pela cabeça de Elaine, além de que eram magia perigosas e seus requerimentos para realização normalmente eram conseguidos de maneiras sórdidas mas na Sangria os três aconteciam naturalmente em qualquer lugar devido a sofrência do lugar.

- Se em ensinar sua magia, sei que serei capaz de desfazer a maldição.

- Sinceramente não me importo com meu destino. Eu vi o que fez, liberando os humanos da escravidão de Asmodeus, por isso lhe salvei.

Enquanto caminhavam, as lembranças de Elaine vagavam por Arcádia, como sentia falta das flores e do céu azul, sua mente as vezes trazia um rosto que ela tentará em muito esquecer, o dono da taverna, Panteon, com seu jeito sem modos e insuportável. A garota do vilarejo ao redor do Templo a Irolic, como será que ela estava? Havia tão poucas pessoas na vida de Elaine, ela sentiu um aperto no coração ao sentir que não havia mais ninguém em quem pensar com ternura, até mesmo os dois eram apenas pessoas distantes que ela havia visto uma única vez.

O local que o Bruxo a levou, era uma mina abandonada, muito escura e úmida, com algumas cabanas velhas deixadas para trás, o local agora era iluminado por alguns cristais brancos por todo o teto.

Ele a levou até uma das cabanas, o cheiro ali em baixo era mais agradável que o ar da Sangria apesar de ainda ter um odor não agradável. Dentro da cabana tinha uma cama com vários caldeirões e frascos e um único livro sobre uma mesinha, não havia mais nada, um local que ela considerou inóspito.

Não havia tempo a se perder, assim que chegaram, o Bruxo começou a repassar o que havia aprendido com seus anos de estudos sobre magia, o que para Elaine foi fácil de aprender, algo que um principiante dominaria rapidamente pois era simplista e totalmente crua mas como eram os estudos de apenas um único homem, ela achou incrível o quanto ele havia descoberto sobre o uso da magia.

Símbolos a serem desenhados com sangue, a canalização da dor e a energia contida nas almas foi o resumo do que lhe fora ensinado durante aqueles dois dias, e o Bruxo acabou por ficar impressionado com a facilidade que ela teve em dominar melhor que ele toda aquela magia.

Sentados um em frente ao outro, o Bruxo segurou a mão de Elaine, fazendo um símbolo com sangue de demônio em sua mão.

- Este é o ápice da magia que aprendi. - a está altura sua voz já não era mais humano, se tornava quase um grunhido. - sua primeira lição prática será dar cabo de minha existência.

- Não seja tolo! Agora que sou capaz de fazer magia, não demorará mais que dois até eu encontrar uma brecha em sua maldição.

- Minha missão foi concluída, Elaine. Todo o meu conhecimento viverá em você, os humanos necessitam de ajuda. Passei mais de um ano usando todo meu poder para conter o avanço da maldição, esperando ter uma esperança de libertar Sangria dos demônios. Agora é hora do meu descanso e o começo de uma nova era na Sangria. Marque sua outra mão com meu sangue, o poder do demônio com a vida do homem é o máximo de poder que posso lhe ensinar.

- Não diga besteiras, você deve viver para continuar suas pesquisas.

- Elaine, se você não tiver este poder, tudo será em vão. Ele não significa a vitória mas sim a chance de luta, apenas conclua o plano.

Ela permaneceu seria, uma pequena e minúscula lágrima escorreu de seu olho direito, por mais que houvesse o conhecido a poucos dias, havia criado um vínculo de amizade com ele e se compadecia de seus nobres ideais. A mão que ele havia desenhado o selo, começou a brilhar e foi como se o desenho ganhasse vida e começasse a andar pelo braço de Elaine, como uma cobra, saindo dela e envolvendo o Bruxo num abraço mortal, o homem que agora era uma semi fera, lutava para manter sua consciência humana até o momento de sua morte.

Sua alma começou a ser puxada pela ponta do desenho que se desenrolou de seu corpo lentamente, retirando aos poucos seu espírito e incorporando em si, uma magia profana e que tinha o mal como essência, mas que agora era necessária, a energia de sua alma se esvaiu e seu corpo caiu inerte no chão, seu espírito selado no sangue impuro de um demônio.

Elaine pegou outra pena e espetou no corpo dele, tingindo sua ponta com sangue e então desenhou em sua outra mão outro selo idêntico ao outro, onde ela deveria selar a alma de um demônio, completando a ligação de poder e vida em sua outra mão.

Ela se levantou, indo para fora, onde pegou uma velha pá que estava largada pelo local, deixado por aqueles que a muito tempo haviam usado estás minas. Com suas próprias mãos ela cavou uma cova e colocou sobre o túmulo uma placa de madeira e com a mesma pena que ela havia escrito em seu braço ela espetou seu dedo e usando de seu sangue ela deixou marcada em homenagem ao Bruxo.

"Aqui jas o herói da Sangria".

                         

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