Abriu sua caixa de joias e puxou o colar de contas azuis, ganhou-o de sua mãe antes de deixar seu país, para que fosse educada à moda do outro continente. Lembrava-se de como a madre superiora do internato para jovens damas tomou-o, pois não era decente uma menina andar com joias extravagantes, anos mais tarde optou por não usá-lo, pois aquela sociedade o acharia vulgar. Um sorriso nostálgico brincou em seus lábios ao se lembrar de um tempo em que queria apenas prender fitas nas tranças, que obrigavam-na a fazer para domar o volume dos cachos negros, um tempo em que não era casada, não era rainha e não era mãe, apenas a princesa de uma terra distante.
O tilintar do choque de espadas lembrou-a que no mundo real tinha uma filha que estava quase passando da idade de casar, que possuía um espírito tão rebelde e livre quanto os cabelos que herdara da mãe, mas não tinha desejo de refrear qualquer um dos dois. Suspirou fechando a caixinha, trancando novamente suas belas lembranças de infância, levantou-se e foi até a sacada de seu quarto, andares abaixo estava a filha, vestida com as velhas roupas de treino do pai, com sua espada apontada para o último rapaz tolo o suficiente para desafiá-la.
- Vamos, seu verme! Não é tão difícil assim! – bradou Veridiana, com um sorriso perverso nos lábios.
O homem virou o rosto suado e cuspiu no chão, deixando claro que não pretendia ceder, da pequena multidão de guardas e aprendizes surgiu um silvo de escárnio, instigando os combatentes. Infelizmente, a princesa era uma pessoa fácil de provocar e, somado aos burburinhos, o ato serviu para deixá-la mais irritada, apoiou a base de sua lâmina do queixo da presa, fazendo-o olhá-la nos olhos.
- Acho que posso cortar uma orelha se preferir... – a espada descreveu um arco do pescoço do rapaz até sua orelha direita sem, no entanto, permitir que se tocassem mais do que milímetros. Tamanha era a ferocidade contida naqueles olhos castanhos, que o homem quase cedeu ao impulso de desviar o rosto e cortar-se.
- Peça perdão de uma vez, precisamos voltar para o trabalho! – Gritou Matthew, que fazia parte da roda das pessoas que se amontoaram para ver a briga e não tinham intenção de se dispersar até que acabasse.
- O que está acontecendo aqui? Veridiana! Largue meu soldado! – Berrou lorde Richard, que saía de dentro do castelo pomposamente vestido. – Abaixe essa espada imediatamente, mocinha! É uma ordem!
Veridiana nem sequer olhou para o tio, só falou:
- Só quando arrancar o que quero desse infeliz!
- Não se preocupe, ela não o machucará muito... – Explicou entediado Matthew. - Luca desafiou a princesa ontem depois de uma bebedeira, como ela negou, ele a ofendeu. – ele suspirou. – E aqui estamos!
Com uma expressão de pura reprovação, cuspiu a frase:
- Esse lugar inspira as atitudes mais descabidas! Esse tipo de desrespeito com um monarca seria passível de forca quando eu era criança. – Richard havia se voltado contra seu subordinado sem pensar duas vezes. – Very, não se demore ai, Lorde Rowan está vindo visitá-la!
Veridiana fitou-o por um instante, depois voltou a prestar atenção no homem à sua mira.
- Diga à mamãe que o atenderei como estou agora.
O conde deu de ombros, e soltou um sussurro quase inaudível, que pareceu a Matthew, um praguejar ao mau gênio do irmão e da sobrinha.
De sua sacada, a rainha Ângela já conseguia divisar os cavaleiros da fortaleza de Foltest, vindo na direção dos portões do castelo e, pela cor dos cabelos loiros, Lorde Rowan liderava o grupo.
Com um suspiro, voltou para seus aposentos, resignada, pensou o quanto Very pretendia ser grosseira com Foltest, o único imbecil que ainda demonstrava qualquer interesse de desposá-la. Não culpava, exatamente, a filha por não ter interesse no rapaz mimado e grosseiro que se apresentava de tempos em tempos para cortejá-la, mas deveria compreender melhor sua situação.
Não tinha lá muitas opções e Rowan, pelo menos depois que a acne havia ido embora, tornou-se um homem bem apessoado. Desceu as escadas lentamente, tão imersa em seus pensamentos infelizes que nem percebeu que Karine, a criada, subia a escada aos pulos.
- Majestade! Majestade! – sua voz rouca estava aterrorizada – Acuda! Lady Very...
- Ela matou Luca? – sua voz falhou um pouco, e teve que se agarrar no corrimão da escadaria para firmar as pernas.
- Pior majestade, ela está apontando a espada para Lorde Foltest!
Por alguns instantes não conseguiu conter o alivio, alivio esse que deu lugar ao pânico ao se dar conta do que a filha estava prestes a fazer. Desceu as escadas de dois em dois degraus, quase esbarrando com o cunhado no meio do caminho, que, aparentemente, também estava indo ao seu encontro inconformado.
- Vá lá fora e tente por um pouco de juízo na cabeça de sua filha! O que a corte irá falar desse evento! Pode dizer adeus à esperança de casá-la com um príncipe, tenho dito!
Ângela lembrou o quanto era desagradável ter o cunhado ali e ouvir todas as coisas que ele dizia, seus arrependimentos começaram no dia em que estendeu demais sua hospitalidade, removendo o muro que seu marido havia imposto, e passou a ter que suportar a ele, a esposa detestável e quem mais ele desejasse em sua casa à cada primavera.
Sem responder ao cunhado, venceu o caminho que faltava para encontrar sua filha. Na porta do castelo já se via a figura de um rapaz de dezessete anos, apavorado, espatifado no chão, e, de pé, a triunfante Veridiana sorria da piada maldosa que era o covarde a sua mira.
- Pare! Eu lhe imploro! – pedia o garoto. – Homens! Façam alguma coisa, ela quer matar seu soberano!
Os homens de Foltest encaravam-se sem saber quem deveriam temer mais, seu lorde ou sua monarca, pois se por um lado seriam açoitados quando chegassem em casa, por outro poderiam ser enforcados ali mesmo por atacar um membro da família real. O impasse não passou despercebido a Matthew, mas por segurança apertou os dedos ao redor do cabo da espada.
- Implorar não é uma coisa digna de um lorde, Rowan!
- Lutar não é digno de uma princesa, mas isso não a impede, não é mesmo? – Very olhou assustada ao ouvir a voz da mãe – Recolha imediatamente essa espada!
Very embainhou a espada, deu mais uma olhada desejosa para o garoto, Rowan estava colado no chão atento a cada um de seus movimentos, mas os demais espectadores sabiam que havia terminado, ninguém desafiava a rainha, nem mesmo a princesa.
Louise aproximou-se de Veridiana oferecendo-lhe um lenço para que secasse o suor do rosto, dois homens apoiaram os braços de Rowan e o levantaram, mantendo-o bem amparado até que suas pernas se firmassem.
- No dia que for casada comigo vou lhe ensinar boas maneiras! – Rosnou o lorde.
Matthew cerrou os punhos, mas a garota limitou-se a balançar os cachos em reprovação.
- Não abuse da sorte Rowan!- depois deu um sorriso amargo – Bem, acho que eu também vou ter que lhe dar umas aulas de bom senso. Sua primeira lição, nunca implore a vida a quem te aponta à espada, porque você é um lorde e, já que vai morrer, morra com dignidade!
E seguiu até a porta, parando junto a sua mãe para ver o que lhe aguardava, não era boa ideia rebelar-se após aquela bagunça.
- Vá direto para seu quarto, se lave, coloque roupas limpas e penteie os cabelos. Depois desse espetáculo lamentável, o mínimo que você pode fazer é escutar o que Lorde Rowan tem a lhe propor.
- Como se eu já não soubesse o que essa doninha loira vai falar. – sussurrou para si mesma.
Ela subiu batendo os pés nos degraus da entrada, então a rainha voltou-se a Rowan.
- Lhe dou um conselho, meu jovem: se um dia minha filha aceitá-lo como seu marido, se falar com ela desse jeito acho bom que durma de olhos abertos... – olhou para a montanha de guardas e criados que se formara para ver a briga – O que ainda estão fazendo aqui? Voltem para seus postos imediatamente. – as pessoas começaram a se mexer – Você não, Matthew! Faça companhia ao nosso visitante e garanta que ele saia daqui inteiro.
- Não preciso dele! – protestou Rowan que tinha recém redescoberto sua voz – Fui pego de surpresa por aquela...
- Dobre a língua, senão serei obrigado a terminar o que a princesa começou. – Matthew avançou para ele, impondo todo seu tamanho.
- Eu gostaria de vê-lo tentar, seu bastardo. – Rowan levantou o queixo para encará-lo.
Ângela estava exausta daquele tipo de rusga, seu cunhado estava certo, havia alguma coisa naquele lugar que inspirava as pessoas a guerrear, devia ser o espírito de seu falecido marido.
- Parem de discutir os dois! Vamos entrar de uma vez, já estou ocupada com meus próprios dramas familiares, não tenho tempo para o de vocês também!
Ambos assentiram para a rainha e a acompanharam.