Ela arfou, virou-se finalmente para encarar a figura, as sobrancelhas espessas estavam franzidas de preocupação, ele fazia força ao redor dela tentando abraçá-la, então parou de lutar e permitiu-se ser embalada pelo corpo quente.
- O que foi, Matt? – murmurou ao seu ouvido, mas ele nada disse apenas continuava com a cabeça enfiada no seu ombro. – Hum... Matthew... não sei se notou, mas estou exposta e está ventando um pouco.
O amigo enrijeceu, soltou-a de olhos fechados virando-se de costas, viu as pontas das suas orelhas ficaram rubras de constrangimento, não pode conter uma risada gostosa de provocação. Saiu da água, secou-se com os saiotes, abandonando-os ali e meteu-se dentro do vestido azul.
- Pode virar.
Matthew deixou a água com os olhos baixos e o rosto vermelho, o rapaz jogou-se na grama e tapou o rosto, Very cobriu a distancia que os separavam com um sorriso brincalhão nos lábios, deitou-se de barriga para baixo com a lateral do corpo colando-se a dele.
- Por que está tão constrangido? Já nos vimos nus mais de uma vez... - e afastou as mãos do rapaz do rosto. - Estou vestida já, veja. - mas ele continuava sem olhá-la. Very fez beicinho e apoiou o queixo no peito largo do amigo.
Matthew havia mudado muito, quando criança era um menino alto para a idade, mas agora tinha uns bons trinta centímetros a mais que ela, que já era alta demais para uma mulher, seu corpo era robusto, braços e pernas grossos de quem costumava levantar peso, o cabelo vermelho estava cortado bem curto, como dos outros guardas, também estava começando a criar aquela sombra em volta dos lábios, que os homens acabam adquirindo conforme raspavam a barba diariamente.
Involuntariamente acariciou a pele mais grossa do queixo dele, atraindo finalmente sua atenção, do antigo Matt só havia sobrado os olhos, emoldurados por longos cílios dourados, suas irís verdes transbordavam da gentileza apenas visível quando estavam sozinhos. Como gostava de ficar sozinha com ele...
- Very? Desde... – ele hesitou. – Desde quando você tem peitos?
A pergunta voou em sua direção como um murro, de um pulo colocou-se de pé, lembrou-se que estava irritada com Matthew. De repente todos os músculos do corpo dele pareceram-lhe rir-se dela e de seu físico franzino se comparado ao dele.
- Eu sou mulher, uma hora eles iam aparecer... – respondeu seca.
- Não fique brava comigo! Só fiquei surpreso, você está sempre usando roupas larga fica difícil saber que estavam aí. – ele correu pra segurar sua mão e fazê-la parar. – Se servir de consolo, eles são bem pequenos...
O punho de Veridiana acertou seu queixo com força, passou o braço direto nos seios para protegê-los, mesmo que já estivesse vestida. Matthew massageou o rosto no lado vermelho, indignado com a agressão.
- Você é um grande idiota! – berrou tentando subir em seu cavalo com seu vestido úmido que embolava-se nas suas pernas. Cansou-se de tentar, apanhou o meio do vestido e mordeu-o fazendo um pequeno furo no tecido, depois foi enfiando os dedos dentro da fissura até rasga toda sua circunferência deixando-o na altura dos joelhos. Por fim subiu em seu cavalo de perna abertas sentindo o vento golpeando as panturrilhas expostas.
A volta para casa foi preenchida por uma atmosfera silenciosamente hostil, de forma que Matthew fez apenas uma reverencia forçada quando deixaram os cavalos nos estábulos e tomaram rumos diferentes.
No fim não pode conversar sobre as conclusões da conversa com Rowan, na verdade, nem conseguiu compreender o porquê da afirmação dele a deixar tão incomodada, não foi ela que passou boa parte da adolescência amaldiçoando suas mudanças corporais e invejando as dele?
Novos argumentos para odiar verdadeiramente suas formas roliças surgiram no trajeto que fez para dentro de seu quarto, encaravam-na como um prato de bife pelos trabalhadores. Não soltavam obscenidades para ela, como já os viu fazer tantas vezes, afinal era uma princesa, mas não disfarçavam a natureza odiosa de seus pensamentos.
Revirou seus pertences na vã esperança de encontrar uma calça que fosse, aceitaria usar quantos vestidos precisasse se pudesse se sentir menos ridícula, mas sua mãe fez o trabalho direito, não deixou nada e, como se para afrontá-la, abasteceu seus armários com vestidos das mais variáveis cores e tecidos nobres.
Enfiou a cabeça dos joelhos e apertou-a até enxergar vários pontinhos acinzentados dançando nas pálpebras fechadas. Não sabia o que fazer se precisasse se casar... Teria de acatar as ordens de um marido? Não poderia mais treinar e participar de competições? Ou pior, deveria viver gravida de vários principezinhos? Seus questionamentos, cheios de autopiedade, foram interrompidos por batidas na porta.
- Com licença, alteza... – Louise entrou com ares preocupados. – Sua mãe solicita sua presença. – olhou para o vestido em frangalhos de garota. – Acho melhor se trocar, a rainha não está feliz.
- Não tenho mais nada para vestir, ela roubou minhas roupas.
Louise olhou para os dois lados do corredor e entrou fechando a porta, nas mãos tinha uma pequena pilha de toalhas, apoiou-as na cama e do meio delas tirou uma camisa e calças um pouco menores do que estava acostumada a usar, mas que com certeza lhe serviriam.
- São do meu filho, pode dizer que pegou-as do varal quando voltou, mas, por favor, não vá assim, ela lhe aguarda na biblioteca. – a mulher a abraçou e deu-lhe um beijo babado na testa, depois retirou-se.
Sua mãe estava sentada sozinha lendo de costas para a porta, seu pé batia de impaciência e seu cigarro ficava menor rapidamente conforme tragava. Sentou-se na poltrona diante dela sem anunciar-se e aguardou.
- Porque você tem sempre que ser tão teatral? – começou sem encará-la – Agride o único homem que parece suportar a ideia de desposá-la e depois foge por horas, voltando para casa com seu vestido rasgado, cabelos molhados e cheios de grama como se estivesse rolado no mato. – fechou o livro com força sem marcar a pagina e levantou os olhos. – Você não consegue mesmo compreender sua situação.
Ângela levantou-se, apanhou uma caixa de madeira belamente adornada e lhe entregou, Veridiana abriu o objeto, apreensiva, dentro dela havia um espelho simples.
- Olhe-se no espelho, Veridiana e descreva o que você vê. – mandou.
- Eu me vejo – não conseguia compreendeu a onde ela queria chegar.
- Descreva a aparência que você vê.
- Olhos grandes, cor de avelã, cílios curtos e pretos, nariz de bolinha, maçãs altas, testa grande, sobrancelhas grossas e unindo-se, cabelos pretos cacheados e longos. Preciso descrever meu pescoço ou minhas orelhas? – questionou sarcástica, quem estava sendo teatral agora?
- Qual é a cor da sua pele, Veridiana? – questionou rispidamente.
- Eu sou escura, estou dourada agora, porque ando pegando Sol.
- Você se lembra do rosto do seu pai?
- Sim.
- Então você sabe que se parece comigo. – Ela assentiu com a cabeça. – Andam dizendo por ai que estamos sendo atacados, porque esse reino é governado por uma estrangeira, e a herdeira nem ao menos se parece com eles. Quando você age assim, sem ligar para os costumes, vestimentas e tradições, que imagem você passa para os homens e mulheres que estão indo e mandando guerreiros para patrulhar e guerrear no seu lugar? – Ângela tirou o espelho e a caixa de suas mãos. – Lave-se, vista isso se quiser, mas anuncie seu casamento com Rowan Foltest aos seus tios e primos que garanto que eles passaram a informação para frente, apenas entenda de uma vez suas obrigações e, principalmente, suas limitações por nascer como e na família que nasceu.
A rainha sentou-se novamente apanhou o livro que estivera lendo anteriormente, puxou outro cigarro longo da caixinha, colocou-o nos lábios e aguardou encarando-a, Very apanhou os fósforos que ficava em cima da mesa e acendeu o cigarro. De olhos fechados tragou-o, tirou o cigarro da boca, mas soltou a fumaça pelas narinas.
- Saía, não consigo olhar para você agora.
Suas mãos tremiam quando deixou o lugar, queria correr e fugir dali, mas andava pelos corredores lentamente, a noção da realidade crua estava começando a materializar-se tão imutável que sentia-se observada até mesmo quando não haviam pessoas nos corredores, parou uma serva nas escada e pôde jurar que ela lhe encava com superioridade.
- Peça para Louise me encontrar no meu quarto e mandem encher minha banheira, por favor. – a mulher assentiu e mudou de direção na escada.
O quarto de Veridiana era grande e ricamente mobiliado, mas a maior parte dos moveis jamais foi usada, incluindo a penteadeira de madeira maciça. Foi até ela e sentou-se de frente para o espelho, nunca pensou de verdade sobre sua aparência, passou mais da metade da infância colada ao pai e ao pai de Matthew, que os tratavam como soldadinhos, aprendeu a lutar, a não ligar para sujeira e ignorar a dor caso se machucasse. Depois que ele havia morrido, seguiu a vida como a conhecia, mesmo que sua mãe tentasse impedi-la, usou as mesmas roupas de treino até que elas ficassem curtas, e então pegou as velhas roupas do falecido rei.
A principio, Ângela ignorou que as usasse, pois julgou que fosse apenas saudade, mas conforme os anos passavam começou a irritar-se, a princesa acreditava que a rainha tinha algo contra ela, que se ressentia por ser uma garota, contudo, agora começava a compreender.
Não eram as únicas pessoas de pele escura daquele reino, o casamento de sua mãe criou uma aliança forte, o que facilitava a comercialização de produtos e imigração de nobres e burgueses, então não havia entendido sua aparência com a de uma pessoa diferente, além das alterações que ela mesma fazia em sua imagem.
- Princesa? – perguntou Louise apreensiva, aparentemente a serva estava lhe chamando a algum tempo, já que até a banheira estava no lugar. – A senhorita me chamou?
- Pode me ajudar, Louise?
Anos mais tarde se lembraria desse momento com um arrepio na espinha, seu corpo foi esfregada e massageada com varias coisa fedorentas e outras tão cheirosas que causavam náuseas, seu corpo foi completamente depilado deixando a pele sensível a menor das brisas, no cabelo foi aplicado óleos e pomadas, depois foi transformado em um coque baixo como via a mãe usar com frequência. Nos lábios foi aplicado um pouco de batom vermelho e ruge nas bochechas, Louise ficou com medo de colocar maquiagem demais e deixá-la em choque.
Não sabia de onde surgiu um espartilho e a anágua, já que jamais usou ou possuiu qualquer uma das duas, mas ainda sim na hora do jantar descia novamente as escadas mal conseguindo respirar ou andar com tantas camadas de tecido, munida de suas botas e de uma resignação até então desconhecida.
Ia se casar com Foltest, teria que abrir mão da individualidade que pensou ter lutado e se encrencou para ter, agora sabia que nunca houve real possibilidade de acontecer...