― Me diz de novo: por que a gente está assistindo esse negócio mesmo?
― perguntei aos meus dois colegas de casa enquanto me sentava no sofá
segurando uma vasilha de pipoca e uma garrafa de Smirnoff Ice.
― Porque eu sou constantemente obrigado a assistir aos filmes que vocês
escolhem. Então nada mais justo do que vocês assistirem a final do TUF
comigo. ― Ramiro respondeu com os olhos vidrados na televisão. ― Porra,
isso aí! ― ele comemorou enquanto um cara caía de cara no chão na tela da
tv. ― Ano que vem, se tudo der certo, eu vou estar assistindo a final ao vivo
em Vegas, já que ver a disputa oficial do cinturão do UFC é mais concorrido
do que o tal show da Sandy & Júnior que vocês tanto falavam! Vocês podem
ir comigo se quiserem.
― Eu assisto porque tem vários homens gostosos sem camisa. ― Iane
respondeu.
― Agora sim eu vi vantagem. ― respondi, fazendo Ramiro revirar os
olhos.
― A luta é um tipo de arte. E você mais do que ninguém deveria saber
disso, já que é a artista dessa casa. ― meu amigo me repreendeu.
Nós três compartilhamos um apartamento de três quartos no Flamengo.
Iane foi a primeira moradora do apê 403. Ela se mudou para cá assim que
passou no vestibular para cursar Publicidade e Propaganda. Assim, ficaria
mais próxima da faculdade. Ela e Ramiro se conheceram nas primeiras
semanas de aula e se aproximaram devido a um trabalho que precisaram fazer
juntos. Quando ele comentou que precisava de um lugar para morar, ela disse
que tinha um quarto sobrando no apartamento em que morava.
Iane e eu nos conhecemos desde... Bom, desde sempre já que somos
primas. Apesar de Iane ser mais velha dois anos, sempre fomos melhores
amigas e vivíamos grudadas uma na outra. Depois de um tempo, quando eu
passei no vestibular e decidi que queria sair da casa dos meus pais, ela me
convidou para ocupar o quarto que ainda tinha sobrado por aqui. Foi assim
que uma aspirante a atriz, uma louca do cabelo colorido e um apaixonado por
lutas marciais viraram melhores amigos.
Atualmente, eu trabalhava como professora de teatro para crianças em
uma escola perto de casa. Eu gostava do meu trabalho e ele pagava as minhas
contas. Mas, desde que eu comecei a cursar Artes Cênicas, meu objetivo
sempre foi estrelar uma grande peça no teatro. Meu maior sonho, óbvio, um
dia é me apresentar na Broadway. Sonhar não custa nada, né? Embora, por
enquanto, tudo que eu tinha conseguido foram pequenos papéis em algumas
peças teatrais e figuração em algumas novelas. Mas eu não desisto dos meus
sonhos. Todo teste de elenco euzinha sou presença confirmada. Uma hora
meu momento vai chegar. Não é isso que dizem? Se você pensar positivo, a
positividade vai até você. Ou algo assim.
― Quem é esse Deus grego? Olha só esse tanquinho. ― Iane comentou.
Retornei minha atenção para o programa que estava na televisão.
― Quando dizem que lugar de mulher é no tanque, eu imagino um tanque
assim. ― eu respondi olhando para o cara gostoso que estava lutando. ―
Qual o nome desse lutador, Ramiro? Eu vou seguir no Instagram agora
mesmo.
― O nome dele é Arthur Birkman. Ele é uma lenda. No último ano foi
campeão nacional invicto e foi convidado pro TUF esse ano.
Joguei o nome do lutador na busca da rede social e logo achei o seu perfil,
repleto de fotos sem camisa para a minha sorte.
Ai. Meu. Deus. Ele tinha uma foto (sem camisa, claro) com uma criança
e um cachorro? Isso era demais para o meu coração.
― Iane, você está vendo o perfil desse cara? ― perguntei à minha prima,
sentada esparramada do outro lado do sofá.
― A gente precisa mandar A mensagem.
― Eu voto sim! ― respondi.
A mensagem era uma brincadeira inventada, com muito orgulho, por mim.
Em uma noite de sábado, depois de mais taças de vinho do que eu estava
acostumada, abri meu Instagram com uma missão: mandar uma mensagem
escrito "vc é gostoso d+" para um modelo gringo famoso na rede social que
eu seguia há um tempo. Por que eu fiz isso? Não sei. Mas a Maya bêbada
achou que seria interessante dizer para um cara que ela nunca viu na vida que
ele era gostoso, mesmo que ele nem sequer entendesse português.
Como a Maya bêbada sempre tem razão, nós tornamos isso a nossa
própria espécie de ritual de melhores amigas. A partir desse dia, sempre que
o perfil de alguém gostoso, brasileiro ou gringo, aparece na nossa tela
mandamos A mensagem.
― Vocês nunca desistem disso? ― Ramiro perguntou. ― Ele tem mais de
500 mil seguidores. Vocês nunca serão notadas.
― Nunca diga nunca, Ramirinho. ― eu brinquei enquanto mandava A
mensagem para Arthur. ― E a graça é exatamente essa. Mandar várias
mensagens até um dia ser notada. Pode deixar que eu apresento ele para você
quando virarmos melhores amigos de Instagram. Você vai poder tietar ele à
vontade, tirar foto e tudo.
― Eu já tenho foto com ele, querida. ― Ramiro se gabou. Puxando o
celular do bolso, ele abriu seu próprio perfil e me mostrou um story antigo
dos dois juntos depois de alguma luta que ele havia assistido ao vivo.
― Quando e como você conheceu esse deus grego? ― questionei.
― Ser publicitário de marcas voltadas para o esporte tem seus benefícios,
Maya. Talvez assim vocês se animem a ir comigo em alguma luta quando eu
chamar da próxima vez.
Ramiro quase sempre conseguia ingressos de graça para assistir às lutas.
Muitas vezes ele convidava Iane e eu para irmos com ele, mas a gente sempre
inventava uma desculpa. Eu estava tão arrependida. Nunca mais iria sugerir
que ele levasse outros amigos no meu lugar. De repente MMA me pareceu
um esporte muito, muito interessante.
◆◆◆
No dia seguinte, a brisa fresca que tinha surgido no Rio de Janeiro tinha
tornado possível que eu ficasse sentada na sacada do nosso apartamento,
bebendo um suco e escrevendo o roteiro para a peça de final de semestre dos
meus alunos. Esse ano o tema escolhido foi Peter Pan na Terra do Nunca. As
crianças estavam super empolgadas e confesso que eu também. Depois da
história da Chapeuzinho Vermelho, Peter Pan era a que eu mais gostava. Eu
estava no meio de uma das minhas cenas preferidas quando uma notificação
de nova mensagem no WhatsApp apareceu no canto inferior direito da tela do
meu computador.
Lívia: Oie, amigos! Nosso reencontro de alunos está marcado para o
próximo sábado, às 20h, no pátio do nosso querido Colégio Nossa Senhora
da Paz. Estamos preparando tudo com muito carinho para receber a tds vcs!
Qm não confirmou presença, por favor, confirme através do link a seguir:
www.reencontrocnspaz.org/confirmacao . Um bjão a tds! :)
Alguns instantes depois, outra mensagem chegou.
Lívia: Oi, Maya. Ainda não vi seu nome na listinha dos confirmados. O
site tá abrindo direitinho pra você? Sua presença é mto importante. Se
precisar de ajuda me fala, querida. Bjinhos :*
― Nem em sonho que eu vou nisso.
― Tá falando com quem, priminha? ― Iane perguntou, me fazendo notar
que eu tinha falado aquilo em voz alta.
― Aquela vaca da Lívia Motta, lembra dela?
― Vagamente. Você deve ter reclamado comigo dela apenas umas 13.495
vezes.
Lívia Motta. O terror da minha infância e adolescência. Ela era a menina
mais popular da escola: linda, cheia de amigos e só tirava notas altas. Eu era
uma criança tímida, tinha apenas duas amigas e notas dentro da média. Minha
mãe achou que seria uma boa ideia me colocar no clube do teatro para ganhar
mais confiança e perder a timidez. E, assim como eu, Lívia também era do
mesmo clube. Mas, ao contrário de mim, ela queria mais era ser o foco de
toda atenção.
A gente estava no 4º ano quando tudo aconteceu. A nossa professora
estava fazendo a seleção dos alunos para o papel de Chapeuzinho Vermelho.
Eu precisava daquele papel. Eu amava a Chapeuzinho Vermelho. Todos os
dias eu estudava meu texto, decorando cada ponto e cada vírgula daquele
roteiro. No dia do teste, pedi para minha mãe me arrumar como se eu fosse a
própria personagem. Minha mãe, que amava a ideia de ter uma filha atriz,
arrumou uma fantasia com cesta e capa vermelha para que eu usasse. Era o
dia mais feliz da minha vida. A sorte estava ao meu favor. Quando subi no
palco para fazer o teste, surgiu em mim uma confiança que eu nem sabia que
existia. E, para minha total alegria, o papel de Chapeuzinho se tornou meu.
Lívia, que também queria esse papel, ficou morrendo de raiva de
mim. A partir desse dia ela saiu do clube de teatro e decidiu que isso era coisa
de fracassados e perdedores. Ela também decidiu que eu era a líder dos
fracassados e perdedores. E quando Lívia Motta decidia uma coisa, toda a
escola a seguia.
― Ela decidiu fazer um reencontro estúpido naquela escola estúpida. E
agora está me mandando mensagem dizendo que não viu meu nome na lista
de confirmados. Mas é óbvio que ela não viu. Não tem a menor possibilidade
de eu aparecer por lá.
― Por que não?
― Livia e os amigos populares idiotas me fizeram passar pelo verdadeiro
inferno naquela escola. Não quero ver a cara deles nem pintados a ouro.
― Ah, mas você vai sim. Você vai chegar lá toda linda e maravilhosa e
mostrar pra eles o mulherão incrível que você se tornou. ― Iane tomou o
celular da minha mão.
― O que você está fazendo, sua doida?
― Confirmando sua presença, claro. Prontinho. ― ela anunciou depois de
alguns segundos e me devolveu o celular. ― Presença confirmada. Já posso
começar a pensar no cabelo, make e roupas para você usar?
― Eu tenho outra escolha? ― perguntei ainda que eu soubesse a resposta.
2.
MAYA
― Você está uma verdadeira musa do verão. ― Iane comentou
enquanto olhávamos meu reflexo no espelho do quarto. A festa organizada
por Lívia tinha como tema Verão Tropical. Eu usava um top cropped branco
com uma saia de cintura alta azul pastel de um tecido leve que ia até a altura
dos tornozelos. Nos pés, uma sandália de tiras, também na cor branca,
completava meu look.
― Estou me sentindo uma sereia tropical com esse look. ― eu comentei,
admirando o quão bonito ficava o contraste da minha pele bronzeada com as
cores claras da minha roupa. Apesar de estar me vendo linda, eu ainda me
sentia nervosa e insegura de aparecer naquela festa com todas aquelas
pessoas que por tantos anos zoaram da minha cara.
― Que cara é essa? Você não está pensando em desistir, né?
― É só que... Iane, eu não sei se consigo. Voltar lá, no meio daquela
gente. ― o som das risadas de deboche e dos apelidos que ganhei na escola
ainda me assombravam.
― Maya, você não é mais uma garotinha. Você é um mulherão. Uma
grande atriz que em breve terá seu nome estampando todas as revistas de
fofoca do mundo. Mas fica tranquila que serão só fofocas falando bem de
você, tá? ― ela me abraçou. ― Mas, só por precaução, o Ramiro fez umas
caipirinhas pra gente beber antes de você ir. Isso vai te ajudar a ficar mais
relaxada.
Chegando na cozinha, Ramiro já estava com os drinks preparados em cima
da bancada. Ele me entregou um copo e deu outro para Iane. Erguendo seu
próprio copo, ele fez um brinde:
― Às voltas que o mundo dá. ― virei minha bebida de uma vez.
― Eu quero mais, Ramiro! Foi muito pouco.
― Seu pedido é uma ordem! ― ele imediatamente me preparou mais um
copo.
Quando terminei meu segundo copo de caipirinha já me sentia mais
alegre, solta e confiante. Peguei meu celular de dentro da bolsa para chamar
um Uber que me levaria até minha antiga escola. Ele ainda demoraria 10
minutos para chegar no meu prédio segundo o aplicativo mostrava na tela.
Aproveitei para dar uma olhada no instagram se alguma das minhas colegas
já tinham postado algum story do reencontro. Pulando de uma postagem para
outra me deparei com um vídeo do Arthur Birkman treinando, postado pelo
próprio. Não resisti. Cliquei na caixa de resposta e digitei uma mensagem:
@mayamoura respondeu ao story: nossa, hein... nem um guindaste
Aquele homem era gostoso demais para seu próprio bem. Um aviso
de que meu carro se aproximava apareceu na tela do celular, tirando minha
atenção do corpo malhado de Arthur na academia. Guardei meu celular na
bolsa, peguei minhas chaves e fui em direção ao elevador. Estava na hora de
mostrar para Lívia Motta que eu não era mais a perdedora que ela acreditava.
Na porta de entrada da festa, uma menina vestida como uma havaiana
entregava colares de flores para todos os convidados. Mais a frente, uma
mesa de madeira estava repleta de copos em formato de abacaxi.
Aparentemente, cada convidado deveria ter um copo desse e usá-lo durante
toda a noite. Pegando meu copo, fui direto para a mesa de bebidas enchê-lo.
O ginásio estava todo decorado com cangas e almofadas coloridas pelo chão.
Balões de várias cores flutuavam pelos cantos do lugar criando um ambiente
agradável e feliz. Totalmente diferente das lembranças que eu tinha da minha
adolescência naquele lugar.