- Onde está a minha pequena coyote? – ele perguntou batendo os punhos contra o colchão.
Laura Fellini teve que se segurar para não revirar os olhos. Eu estava no canto do quarto e assistia tudo, eles sequer notaram a minha presença. Nem mesmo o filho dele mais velho, o chato do Carlo e sua segunda filha Nicoletta. Eles me desprezavam, queriam me ver pelas costas, mas diante do capo não podiam demonstrar sua indiferença ou ele os punia severamente. Eram obrigados a me aceitar como se eu fosse da família, e no fim das contas, eu era. Talvez mais do que eles todos.
- Sono qui, babbo – respondi em italiano. (Estou aqui, papai).
Todos se afastaram para olhar para mim. Os olhos de Dom Andreas se encheram de amor. Foi assim desde a primeira vez que ele me viu naquele galpão repleto de imigrantes ilegais. Ele salvou minha vida, me deu seu nome e fez de mim sua filha adotiva. Eu era mais nova que seus filhos, um ano mais nova que Nicoletta, a desagradável. E eu gostava dele, no começo apenas o achei bonzinho, mas depois entendi que ele salvou minha vida porque Deus o enviou como um anjo ou meu fim teria sido trágico como daquelas outras crianças que não tiveram tanta sorte e foram mandadas para diversos lugares para trabalhos forçados.
Era assim que funcionava a máfia, eu sabia. Mas por respeito a Dom Andreas, eu fingia não ver. Não tive escolha, era isso ou morrer e eu gostava da vida por diversos motivos. Um deles era ver a família dele ter que engolir o carinho que ele tinha por mim.
Atravessei aquele corredor de gente e me aproximei da cama dele tocando sua mão com imenso carinho. Sua mão cheia de anéis segurou a minha e nossos olhares se encontraram. Não éramos pai e filha de sangue, mas éramos de alma.
- Deixem-me a sós com a minha filha – ele ordenou.
Laura foi a primeira a deixar o quarto. Ela não gostava de mim, não porque eu fosse uma pessoa ruim, mas por ciúme, afinal, eu era a única que tinha o amor verdadeiro do capo. Seus filhos me odiavam, não era apenas ciúme, era raiva, e eu sabia que se Dom Andreas deixasse de existir, eles não hesitariam em me matar. Não era me expulsar da vida deles, era me torturar para que eu sentisse na carne o preço de ter sido sempre a preferida e depois me matar com requintes de crueldade.
O médico também saiu, o doutor Brian Dickson era um amor de pessoa, cuidava de Dom Andreas muito antes de eu chegar naquela casa.
Nicoletta resmungou e também saiu contrariada como sempre. Mas Carlo, este ficou esperando que eu o fitasse, ele somente não cuspiu no chão porque sabia que o pai dele esfregaria a cara dele para limpar. Dom Andreas era implacável, sempre foi, e meu respeito permitia que eu o admirasse por isso. Aquele era meu mundo, minhas verdades e aprendi a não as questionar.
- Saia! – ele ouviu o pai ordenar mais uma vez.
Então Carlo saiu batendo a porta com força. Olhei para o capo e me sentei na beirada da cama. Ele estava com os cabelos grisalhos nas têmporas e alguns trechos de seus cabelos escuros. Aos sessenta anos, ele era um velho charmoso e ainda muito forte. Aquele mal-estar não o derrubaria, eu tinha certeza disso. Já haviam tentado matá-lo diversas vezes, mas nunca conseguiram. Não seria uma falha do coração que tiraria sua vida.
- O que foi? Tentando me assustar? – eu perguntei com imenso carinho sorrindo para ele. Nós só conversávamos em italiano, nunca em inglês, era uma exigência dele.
Abaixei e encostei os lábios em sua testa, ele não estava febril e isso era um bom sinal, mas estava pálido. O médico o havia medicado, apenas um forte analgésico que o faria dormir, foi o que o doutor Brian Dickson disse. Mas nada derrubava o capo. Nada. Nem um tranquilizante para elefantes o faria dormir se ele não quisesse. Nunca conheci um homem tão forte como ele.
- Sinto muito – ele apertou a minha mão -, não queria assustá-la, mas esse meu coração está me pregando peças.
- Seu coração é forte como o de um leão – eu disse.
- Você demorou para vir me ver – ele reclamou.
Encolhi meus ombros sob a jaqueta de couro vermelha. Eu sempre gostei do vermelho.
- Tomei café da manhã com o Genaro – contei -, estávamos discutindo sobre alguns soldados que não têm feito o trabalho. Ele só me contou sobre seu mal-estar no fim da conversa.
- Sabe que não deve confiar em meu irmão – ele me lembrou com o dedo em riste -, ele não gosta de você!
- Eu sei...
Genaro me desprezava tanto quanto o resto da família. Foi assim desde o primeiro momento em que Dom Andreas me levou para Chicago junto de sua família e os obrigou a me aceitar. O problema não era ser uma criança brasileira e adotada, era o fato de ser a mais querida
- Mas Genaro sabe separar negócios e vida pessoal – eu balancei a cabeça de um lado para o outro -, fique tranquilo, carrego minha arma sempre debaixo da roupa.
E afastei a jaqueta para mostrar a pistola presa ao cós da minha calça. Desde que entendi como funcionava a máfia e os riscos que corria por trabalhar para eles, Dom Andreas me ensinou a atirar e me deu aquela arma de presente. Não era grande, porém, poderia fazer um grande estrago. Éramos inseparáveis, quando não estava na minha cintura, estava na minha bolsa ou presa à minha panturrilha. Até mesmo para dormir, ela ficava debaixo do meu travesseiro.
Ele também me ensinou tudo o que eu sabia, tanto sobre os negócios, como a me defender fisicamente, a ser durona quando era preciso. Fiz coisas que tenho certeza que meus pais de sangue não concordariam. Mas eles não estavam mais ali, sequer minha nonna. Era uma outra realidade e eu
simplesmente não pensava mais neles. Não tinha motivo para ressentir de algo que não era mais meu.
- Hum – ele resmungou -, e o que decidiram?
- Vamos ter que levar Drew para o galpão e ter uma conversa dura com ele – respondi.
Drew Wood era um dos soldados de confiança de Dom Andreas. Contudo, descobrimos que ele recebeu uma quantia de dinheiro alta em sua conta nos últimos meses, nada referente às transações da família, ele teria que se explicar. Quem trabalha para a máfia sempre tem que dar satisfações de tudo, não pode fazer negócios ou agir sem a permissão do capo. E se ele não tivesse uma boa desculpa, seria torturado e morto. E sua família teria que deixar Chicago se não quisesse acabar a sete palmos debaixo da terra com ele.
O mundo do crime organizado não era legal. Poderíamos ser bons entre nós, justos. Mas quando o assunto era os negócios e traição, não havia sentimentos, benevolência ou misericórdia. Era o preço a se pagar. Vi muita gente boa morrer por ganância, por mentir, por tentar nos enganar. Por achar que era mais esperto.
- E quanto à casa de show Napolitana? – Ele quis saber me trazendo de volta à realidade.
Uma das prostitutas havia morrido de overdose na companhia de um figurão. Foi uma tragédia, era uma boa garota, trabalhava bem e estava quase terminando de pagar sua dívida com a máfia para poder voltar para casa. Eu fingia que era assim ou surtaria. Porque elas nunca voltavam para casa, ou continuavam a trabalhar para a máfia de forma mais independente, podendo usufruir do que ganhavam ou era o fim delas. Mas nesse caso, a tal da
Tiffany morreu por descuido, por loucura do figurão mesmo e a polícia estava em cima de nós.
- Vai reabrir esse fim de semana, consegui que o delegado MacGregor arquivasse o caso dando a morte como overdose por descuido da moça – contei -, nos custou centenas de milhares de dólares.