Sequer me dei ao trabalho de olhar por cima do ombro e observar seu olhar de ódio. O resto deles me esperava no topo da escada, mas passei por eles como se não estivessem ali. Somente vi quando Laura foi em direção ao quarto. Apesar dela e de babbo viverem em pé de guerra, um dia se amaram e respeitaram as regras da família, da confiança e do respeito. Ele nunca levantou a mão para ela e Laura nunca alterou a voz dentro de casa, aparentemente eram o casal perfeito e feliz.
Desci as escadas correndo, o som das minhas botas de salto alto ressoando no mármore Carrara branco do chão. Estava brava e queria ficar um pouco sozinha para pensar com clareza. Naqueles momentos, quando eu não podia nada por ser quem era, me sentia sozinha, com saudade da minha casa, da vida que fui obrigada a deixar há quinze anos porque meus pais sonhavam com uma vida melhor.
Corri pela porta da frente, entrei no meu carro esporte vermelho e saí da nossa casa, em Cook County. Os portões de ferro foram abertos para eu passar e o carro deslizou pelas ruas de Chicago. Sentia ansiedade e raiva, um tipo de frustração de uma pessoa que vivia em um mundo que não era dela, mas queria ser valorizada de alguma forma. Sabia que babbo não me daria uma chance, eu não tinha o sangue deles e ainda era mulher, mas mesmo assim, pensei que o amor que ele sentia por mim o influenciaria em sua decisão. Eu era tão infantil.
- Tola! – eu me xinguei enquanto dirigia.
Fiz o que mais gostava, fui para o clube de tiro. Lá eu poderia colocar toda a minha raiva para fora e ainda me divertir atirando no alvo até que ele desfizesse sob as balas. Cheguei no local e tirei minha jaqueta, coloquei o colete a prova de balas, os fones e fui para a cabine. Atirei até destruir o alvo. Pedi outro, recarreguei a arma e atirei de novo. Mesmo
assim, minha ansiedade não havia passado, eu parecia uma bomba relógio prestes a explodir. Quando saí da cabine me deparei com Michael Torn, um policial gente boa. Ele era alto e eu batia na altura do seu peito largo, ele sempre carregava um sorriso nos lábios, principalmente quando me via. Claro que ele sabia quem eu era, que ele conhecia meu pai, e talvez soubesse que ele era um mafioso, embora a maioria das pessoas pensasse que ele fosse um CEO do ramo da tecnologia, ele era, o que disfarçava o crime organizado e lavava seu dinheiro.
Dom Andreas era um homem acima de qualquer suspeita. Nada era feito em seu nome, ele usava as pessoas certas para isso. E no caso de serem presas, ele cuidava delas na prisão, não deixava que fossem feridas e também cuidava da família deles aqui fora. Era essa a forma de comprar o silêncio das pessoas que trabalhavam para ele. Do contrário, como eu disse, todos morriam.
Michael trabalhava no setor de homicídios, nossos caminhos não tinham se cruzado até a morte de Tiffany e então uma súbita simpatia surgiu entre nós. Descobrimos que gostávamos do clube de tiro. E não era segredo para ninguém e muito menos para ele que meu apelido era garota coyote. Babbo me batizou assim por causa de onde vim quando ele me encontrou.
- Olá. – Ele parou diante de mim.
Ele se abaixou e me deu um demorado beijo no rosto. Será que o desgraçado estava tentando me seduzir? Provavelmente. Fazia bem para o meu ego, mas eu não confraternizava com o inimigo. Tratar bem fazia parte do negócio, mas transar com um, nunca. Eu jamais faria isso com a confiança de babbo ou comigo mesma.
- Oi – respondi quando ele se afastou.
bonito.
- Veio brincar um pouco? – ele perguntou com aquele sorriso
- É, mas estava de saída – avisei e passei por ele.
- Dani – ele me chamou pelo nome e parei para fitá-lo por cima do
ombro -, o que acha da gente tomar um drinque mais tarde?
Eu ri e balancei a cabeça em negativa. Voltei a andar ignorando seu milésimo convite.
- Não custa tentar – ele disse às minhas costas.
O que ele não sabia era que babbo o mataria se soubesse que um policial estava flertando comigo. Esse era o único problema de Dom Andreas. Ele não deixava que os homens se aproximassem, ele me mantinha dentro de uma redoma e não me deixava envolver com ninguém. Era doentio, mas era assim. Ele dizia que não me perderia para ninguém. Era apenas nesse momento que eu tinha medo dele.
O primeiro e único garoto que beijei, Robert, durante o ensino médio, sofreu um acidente de carro dias depois do nosso primeiro beijo. O carro dele foi encontrado numa vala depois de pegar fogo após capotar. Dom Andreas nunca assumiu o que fez, mas havia rumores, Genaro sempre dizia algumas coisas que me deixavam na dúvida, insinuações, mas nunca tive certeza de nada. Porém, a desconfiança me fez temer pelo pior e não deixei que ninguém mais se aproximasse.
E como eu sentia falta de ter contato físico com um homem. Aos vinte e cinco anos, um homem ainda não havia tocado meu corpo e eu ansiava por isso, por beijar alguém, por namorar, por sentir a paixão percorrendo meu corpo. Mas enquanto babbo estivesse vivo, eu tinha medo. Enquanto eles flertavam de longe, não havia problemas. Porém se encostassem a mão em mim, desapareciam.
Havia também um cara, eu nunca cheguei a saber o nome dele. Eu estava dançando na Napolitana, e ele chegou por trás e me abraçou. Os soldados de babbo o tiraram de cima de mim e dias depois vi a cara dele estampada nos jornais, o corpo havia sido encontrado boiando no lago Michigan.
A garota coyote não era apenas perigosa, ela era nociva. Era como se eu tivesse um veneno na pele e quem tocasse morria. Talvez, eu estivesse fadada a ficar sozinha o resto da minha vida, pensei com amargura enquanto tirava o colete e entregava a arma ao funcionário. Eu invejava Nicoletta por conseguir ter suas fugas e namorar longe dos olhos de seu pai. Comigo, a situação era mais séria, ele me mantinha vigiada vinte e quatro horas, tinha acesso ao meu celular e o rastreava com facilidade. Por isso, eu não corria riscos. Estava para nascer o homem que enfrentaria babbo por mim e sobreviveria para contar a história.
Eu vivia numa prisão sem grades. E ainda era grata por isso. Doentio, eu sabia. Mas não podia me erguer contra Dom Andreas, ele salvou a minha vida e por mais que tivesse essas atitudes possessivas, era um bom pai para mim.
Meu celular tocou assim que saí do clube e entrei no meu carro.
- Onde você está? – a voz de Mary soou do outro lado.
Mary Anne Roosevelt, a filha de Franco Roosevelt, o consigliere de babbo. A primeira pessoa com quem eu podia conversar sem ter medo que meus segredos fossem revelados e eu não tinha muitos.
- Saindo do clube de tiro – disse ligando o carro.
- Já sabe da novidade?
- Que novidade? – perguntei entediada.
Ela não tinha culpa do meu mau humor.
- Domenico Gonzalez acabou de pedir Nicoletta em casamento – ela contou a fofoca.
- O quê?
Havia acabado de sair de casa e não vi nada disso? Não era possível que em menos de uma hora tanta coisa tenha acontecido. Gonzalez era o chefe do tráfico no México, ele era tão poderoso que nada acontecia naquele país sem autorização dele. O cara tinha a idade de Dom Andreas e ficou viúvo há pouco tempo. Além disso, tinha sete filhos, a maioria da nossa idade. Não fazia sentido que uma garota tão jovem enterrasse a vida ao lado de um homem tão repugnante no século vinte e um.
- Escutei meu pai falando com Dom Andreas pelo telefone – ela contou empolgada, como se fosse a novidade do ano.
- Babbo não vai deixar que ela se case com o mexicano! – falei
segura.
Podia odiar Nicoletta, mas ela não merecia se casar com um homem
tão nojento. Eu sabia que na máfia casamento arranjados eram comuns, ainda mais entre famílias poderosas por causa de alianças. Por não ser de uma estrutura mafiosa italiana e ter criado seu próprio império, babbo precisava fazer concessões se quisesse continuar no poder absoluto.