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- Obrigado! - Agradeci e, sem me importar com sua presença, me aproximei de Íris. Puxei a poltrona desocupada para mais próximo e sentei. - Toma um pouco de água, moça. - Falei polido e ela abriu os olhos, fiquei por alguns segundos focado naquele olhar verde e perdido, até ela estender a mão para pegar a garrafa que lhe oferecia.
Esperei paciente enquanto se recompunha. Dessa vez decidi não falar nada e deixá-la à vontade para prosseguir. Não era nada comum, mas que escolha eu tinha?
- Obrigada! - Ouvi sua voz doce alguns minutos depois, ainda parecia hesitante, porém era um grande avanço.
- Se sente melhor? Acha que podemos começar? - Fui gentil ao perguntar.
- Sim, me desculpe. - Baixou os olhos com uma expressão culpada.
- Sem problemas. - Tentei transmitir um sorriso reconfortante que não foi devolvido, mas ao menos depois disso ela começou a responder minhas perguntas.
Passava longe de ser uma candidata normal. Íris ainda parecia nervosa e acanhada, entretanto dava para notar o quanto estava se esforçando para se comunicar e responder sem gaguejar.
Se fosse qualquer outro candidato, talvez eu já tivesse dado a entrevista por encerrada. Como contratar alguém com uma
dificuldade notável em se comunicar? Mas algo em mim, talvez um sexto sentido, dizia que após algumas semanas ela se comunicaria melhor e faria um excelente trabalho.
Apesar de tudo, a moça de olhos assustados era a profissional mais qualificada que havia passado pela minha sala durante as seleções, no entanto ainda restava uma dúvida sobre seu histórico trabalhista.
- Gostei muito do seu currículo e, pelo que conversamos, você é qualificada para o cargo, mas o que te fez se demitir do último emprego? - A moça se encolheu na poltrona, como se não quisesse tocar nesse assunto, entretanto, eu estava curioso, já que era um ótimo emprego em um dos escritórios mais requisitados da cidade.
- O escritório pertencia a um casal e quem ficava à frente da maioria das decisões junto ao departamento contábil era a mulher, mas, após algumas mudanças na administração, o seu marido assumiu. Não consegui lidar com algumas questões... - Apesar de ter sido a frase mais longa que saiu da sua boca desde que entrou aqui, e de eu estar com uma sensação estranha de orgulho por isso, algo não se encaixava naquela explicação.
- Você tem dificuldade para trabalhar sob pressão? - Questionei.
- Sempre fui responsável com meu serviço e prazos, então de certa forma nunca precisei ser pressionada.
Fiquei satisfeito com a resposta e acenei.
- Foi um prazer te conhecer, Íris. Entraremos em contato em breve. Boa sorte! - Sorri depois de falar a frase que dizia para todos os candidatos no fim da entrevista.
Ainda precisava avaliar muitas coisas junto a minha sócia, mas algo me dizia que não seria a última vez que encontraria essa
mulher.
02
Subi no ônibus trêmula e ao mesmo tempo decepcionada comigo. Aquela entrevista tinha tudo para dar certo, mas o medo idiota de um pré-julgamento me fez travar mais uma vez.
Eu já havia passado por aquilo, sabia que seria avaliada minuciosamente desde o momento que colocasse meus pés no prédio do escritório, porém aquela sensação ser julgada, misturada à hipótese de colocar tudo a perder por causa de uma palavra errada e a ansiedade, fez a coisa sair do controle.
Foi exatamente assim nas últimas dezenas de entrevistas que tive: sempre rejeitada por gaguejar ou hesitar em algumas perguntas. Quem colocaria uma contadora insegura no cargo, afinal? Contudo, contrariando a todas as suposições, eu era maravilhosa no que fazia. Tinha certeza disso e nenhuma opinião controversa me faria duvidar da excelente profissional que sou. No entanto, o que adiantaria ter tudo isso guardado para mim?
Dessa vez eu estava menos esperançosa do que em todas as outras. Tudo tinha dado errado, a começar pela forma como o advogado observou meu modo de vestir. Não via problema algum nas roupas largas que gostava, mas era certo que o homem estava acostumado a ver as mulheres acochadas[2] e elegantes, o que era comum no meio jurídico, só que nada daquilo tinha a ver comigo. Eu não era gostosa e sensual igual a maioria das advogadas que desfilavam pelo último escritório que trabalhei. Não sentia inveja ou me ressentia por não ser como elas, gostava de ser diferente.
Desci na parada próxima à minha casa. Estava arrasada por ter ido mal naquela entrevista, pois o cargo era muito bom e o salário bem melhor do que no meu antigo emprego.
Entrei pelo portãozinho de ferro e o fechei atrás de mim, ouvindo minha avó cantarolar "Relicário" do Nando Reis, provavelmente estava próxima à janela da cozinha. Girei a chave na grade e entrei, sentindo um cheirinho de sopa sendo temperada, do jeito que eu amava.
- Cheguei, vó! - Gritei da porta e em vez de ir logo falar com ela na cozinha, me dirigi ao meu quarto para tomar um banho. Suei tanto dentro daquele escritório gelado que minhas roupas estavam coladas no meu corpo peguento.[3]
Depois de uma chuveirada rápida, saí da minha toca e atravessei a casa. Ao colocar os pés na cozinha, notei que tínhamos visita.
- Oi, tia Rosa. - Cumprimentei minha tia-avó mais velha. Ela era solteirona como a tia Petúnia. E a tia Acácia era viúva, assim como a vó Margarida.
Todas elas tinham nome de flores, assim como eu.
- Suas outras tias estão vindo para o jantar, depois vamos jogar um pouco. - Vovó me avisou. - Como foi na entrevista? -
Entrei mais na cozinha e peguei uma maçã da fruteira em cima da mesa.
- Foi legal. - Comentei e dona Margarida me lançou um olhar triste após notar a falta de empolgação, ela sabia o quanto eu queria um emprego.
Além de ser muito desconfortável depender da minha avó aos 26 anos de idade, também queria parar de passar o dia em casa vegetando.
- Acho que você deveria namorar. - Entortei os lábios com aquele papo sobre namorar que se repetia sempre que elas me encontravam. - Talvez essa sua timidez melhorasse depois que um macho gostoso te pegasse de jeito. - Olhei horrorizada para minha tia.
- Não é timidez, tia. - Elas não entendiam que não se tratava apenas de vergonha, era muito mais do que isso.
- Rosa, para de falar essas coisas para a menina. Ela vai namorar quando alguém que a mereça aparecer. - Vovó repreendeu.
- Mas se...
- Mas nada. E o que você sabe sobre isso? Pelo que sei, continua virgem. - E lá vamos nós...
- Quem te disse que eu sou virgem? - Dona Rosa rebateu.
Saí de fininho com minha maçã, não estava a fim de ficar no meio daquele fogo cruzado. Quando as quatro se juntavam, era sempre assim, discutiam até dizer basta, mas nenhuma ia embora com raiva e no dia seguinte se falavam por telefone como se nada tivesse acontecido. Minha família se resumia a vovó e a elas três, então, apesar de pegarem um pouco no meu pé, eu as amava.
Deitei na cama e liguei minha TV para ver "Suits", a série que eu estava maratonando no momento. Assim que ouvi minhas tias se despedindo, saí do quarto para jantar. Não ficava muito à vontade quando pessoas me observavam comer, só minha avó era exceção àquilo e, assim que me sentei, ela se juntou a mim para questionar sobre a entrevista.
- Agora que elas já foram, me conta como foi hoje. - Sentou-se à minha frente para conversarmos.
Desde pequena eu contava tudo pra ela, vovó sempre me ouviu e orientou.
- Fiquei nervosa, vó. Assim que entrei na sala, o advogado ficou me encarando de um jeito esquisito e eu acabei travando.
- E depois?
- Ele achou que eu estava passando mal e me trouxe água, sentou do meu lado e começou a tentar me acalmar, foi um pouco engraçado. - Acabei rindo ao recordar o olhar assustado e a cautela que ele tinha ao falar comigo.
- Mas você conseguiu falar depois disso? - Indagou curiosa.
- Sim. Gaguejei muito, nossa! - Lamentei. - Mas conversei com ele. Não cria esperanças, vó, devo ter sido a pior candidata que ele entrevistou.
- Duvido. Se ele conseguiu ver o quanto você é inteligente, tenho certeza de que vai te contratar. - Levantou após falar e eu comecei a esfriar minha sopa, tentando não dar ouvidos à fé exacerbada que minha avó tinha.
Mais de uma semana passou e, como imaginei que seria, não recebi nenhum retorno. Eu entendia. Se fosse minha própria candidata, não ia querer me contratar. Por mais qualificada que fosse, como trabalhar em equipe com minha comunicação limitada? Seria uma grande desvantagem para o escritório.
Suspirei enquanto colocava meu vestido. Vovó havia me convidado para ir à missa e como eu ficaria em casa, acabei topando, apesar de ser sempre complicado estar em lugares cheio de pessoas, ter que cumprimentá-las e responder a perguntas muitas vezes indiscretas, já que a maioria daquelas beatas me viram crescer.