-Lia, vai se atrasar pro primeiro dia na escola, querida.
Emburrada, puxo o lençol para baixo e descubro meus olhos que se abrem alternados, uma piscadela de cada vez até que a luminosidade do dia lá fora, que ultrapassa a cortina fechada, não seja mais um problema. Suspiro de mau humor. Certamente a escola nem vai notar minha ausência logo no primeiro dia. Ainda deitada, grito:
-Eu não vou hoje. – estou determinada a seguir o que digo com convicção e não movo um músculo. Porém, tia Ana, nossa atual tutora legal, não agiria com tamanha negligência, ainda mais quando se trata da nossa educação e, principalmente, é o que a nossa mãe faria. Sem esperar mais, ouço minha porta abrindo bem devagar. Pela fresta, tia Ana aparece apenas com a metade do rosto, dá um suspiro cansado e eu logo a encaro:
-Lia, você precisa. Vem, espero você em cinco minutos.
Ao vê-la dando as costas e escutando seus passos descendo as escadas, penso que seria muito fácil fazer birra e sustentar a minha vontade, mas não seria justo com quem largou tudo em Chicago para nos cuidar. Reconheço que lidar conosco não é uma tarefa fácil, ainda mais comigo.
Num estrondo descuidado, Petter abre a porta do meu quarto como um furacão e vem disparado para debaixo do meu cobertor.
-Ah, Lia, levanta logo. Se a gente for pra escola, dá pra tomar sorvete depois da aula. Peguei três dólares na caixinha. – ele pula e agita o colchão nas diversas pedidas enquanto puxa meu braço para cima. -Por favor, por favor, por favor, por favor...
Na intenção de acalmar o furacão Petter, o agarro num abraço e logo respondo: -Tá boooom, tá bom. Eu levanto. Vai logo tomar café. Eu já tô descendo.
-Ebaaaa! – festeja Petter, que sai correndo com os braços planando como um avião, e por alguns segundos fixo minha atenção nas ações dele, dessa pequena criança que tenho o prazer de chamar de irmão.
Às vezes invejo sua inocência infantil que não dá a mínima para os problemas dos adultos. Os olhinhos claros, branco feito papel e os cabelos castanhos claros que ele sempre dá um jeito de abarrotar de gel, puxou todos os traços da mamãe. Já eu, herdei as características do meu pai: olhos azuis expressivos; cabelos lisos castanhos e desalinhados; lábios carnudos e rosados; bochechas cheias e a pele tão pálida quanto neve.
Levanto de uma vez por todas antes que eu me arrependa. Entre passos pesados, consigo chegar até o banheiro na coragem arrastada de uma preguiça, abro a porta, dou de cara com o espelho e me espanto com o que vejo. Nossa, a decência está passando longe! Repuxo meu cabelo e encontro tanto nó que até repenso a possibilidade de poder desembaraçar tudo em alguns minutos. Minhas pálpebras, por mais acordada que eu esteja, caem involuntariamente.
Ainda encarando meu reflexo, sinto um cheiro não tão bom exalar de algum canto. Ao aproximar o nariz do meu pijama, recuo imediatamente e penso: "Direto pro banho, Lia."
Depois de uma boa ducha, sinto minha dignidade recuperada em parte, abro o guarda-roupa e o aroma que vem de dentro é nostálgico: o perfume do amaciante das roupas limpas que minha mãe tanto gostava se espalha pelo meu quarto, por isso exagerava na quantidade extra das dosagens que sempre colocava na máquina de lavar.
Sem dar muito espaço para as lembranças que ainda doem, não faço muita cerimônia para escolher uma muda de roupa para um dia que nem estou com vontade de viver. Pego uma calça rasgada, uma blusa com capuz e apresso os passos para descer.
A cada degrau descido da escada, o cheiro de comida matinal fica cada vez mais forte e até que me alegra um pouco. Vejo tia Ana embrulhada no seu roupão vermelho vinho de sempre, com a barriga grudada no fogão e concentrada na frigideira que frita alguns ovos. Me aproximo sem fazer muito barulho e, perto da mesa em que Petter está sentado devorando tudo o que vem pela frente, tenho uma visão mais panorâmica da exaustão estampada no semblante horrível da tia Ana, com um cabelo embaraçado e preso num coque por fazer, olheiras enormes ao redor dos olhos e pálida. Por alguns instantes, meu coração aperta, porque não parece a mesma mulher no auge de sua juventude que vejo estampada em alguns retratos de fotografias antigas de família que ainda cultivamos pela casa, tão linda, dos olhos esverdeados, castanhos cabelos macios e sedosos. Talvez se tornar responsável por uma jovem saindo da aborrecência e uma criança não a esteja fazendo tão bem.
-Bom dia! – digo, chamando a atenção dela para mim.
-Bom dia! Que bom que desceu, já estava quase subindo. – responde ela, deixando alguns ovos no meu prato. De perto posso ver seu cansaço transparente e, ainda que não tenhamos tanta aproximação e nem conversas duradouras, tenho noção dos sacrifícios que ela tem feito até agora. Como uma forma de retribuir, digo: -Ah... tia, pode deixar que eu busco o Petter na escola hoje. Vai descansar um pouco.
-Obrigada, querida. – responde ela em um agradecimento sorridente. -Ah, Martin vai chegar de viagem hoje. Então... teria problema ele vir jantar conosco?
Apesar de sua pergunta ser quase uma confirmação que precisa de uma mínima aceitação, logo vejo a alegria de Petter ao ouvir o nome do tio Martin:
-Obaaa! Tio Martin vai amar meus jogos novos. – festeja Petter, abocanhando o bacon no prato.
Eu, uma pessoa de poucas palavras, prefiro ser breve:
-De boa. – engulo rápido um pedaço de torrada e já estou preparada para sair. -Vamos, Petter.
Antes de chegar na porta, tia Ana nos alcança e ressalta:
-Boa aula, meninos. E Lia... Sem arranjar problemas, hein. Hoje não.
Como reação imediata, reviro os olhos e abro logo a porta, me arrependo de ter sentido pena dela por alguns instantes. Eu sei que, assim como eu, ela também perdeu alguém muito importante, mas... algo entre nós nos mantêm distantes, talvez o fato de ter escutado o nome dela envolvido numa briga do papai e da mamãe tenha colaborado nesse mini ranço sem explicação, ou como ela olha para mim às vezes com pena, às vezes com cansaço. Às vezes eu tento nem pensar, porém, nós duas sabemos implicitamente que não conseguimos ficar perto uma da outra por mais de dez minutos, e assim viemos nos comportando desde que nossa convivência se tornou diária.
Com Petter ao meu lado em direção às nossas escolas, faço questão de apertar os passos, só quero que esse dia acabe logo, quando dou por mim, minhas preces são ouvidas e em apenas cinco minutos o caminho se tornou mais curto do que de costume, em alguns passos já chegamos na escola de Petter.
Não sei o motivo, ou talvez eu saiba até demais, mas não consigo me despedir de Petter. Na verdade, não queria seguir sozinha para nenhum outro canto. Desde que tudo aconteceu, não testei a vida em sociedade, somente Petter e o meu quarto foram o meu aconchego.
Com o peito em resfôlego, de mãos dadas com Petter, finjo manter a visão nas outras crianças entrando no colégio. Petter olha para nossas mãos unidas em entrelaço e, em seguida, olha para mim, pois pode até ser novo em idade, mas sabe exatamente como lidar comigo, ainda que eu tente ser super durona na maior parte do tempo.
Vendo que estou travada e não dou o primeiro passo para nossa despedida, ele fala: -Ei, sorvete hoje sem falta depois da escola. No parque.
Com sua voz mandona, saio do transe e, com pesar, largo sua mão. Imediatamente me recomponho, sorrio e repito:
-Sem falta. - Petter me abraça apertado e diz antes de correr para longe:
-Fica tranquila, Lia. - E, de fato, era tudo o que eu precisava escutar.
Vendo-o passando pela porta dupla aberta, com sua professora responsável o recebendo com um abraço, dou partida em direção ao que será o meu inferninho particular.
Ainda distante alguns metros, repito mentalmente que não será um dia fácil, mas que dá para sobreviver. O que vão fazer? Me matar? Não, não vão, mas até que não seria má ideia.
Com mais três minutos de caminhada, consigo ver o letreiro gigante que enfeita a marquise da escola que sustenta letras vermelhas que juntas formam: The Ohio School.
Penso em dar meia volta e adiar o meu primeiro dia, mas ao mesmo tempo me pergunto: se não for hoje, uma hora vai ter que ser. Em confronto comigo mesma, decido terminar o que comecei. Numa tentativa inútil de camuflagem, ponho o capuz, insiro os fones nos ouvidos e ando com a cabeça nem tão baixa para não esbarrar em ninguém, e nem tão alta para não soar arrogante.
O caminho por onde ando divide dois gramados adjacentes em que as pessoas se amontoam em grupinhos de quatro ou cinco, pouco a pouco miram a atenção para mim, é claro que todos já estão cientes da morte dos meus pais. O que me incomoda não é esse fato horrível que vai me assombrar por um bom tempo, mas sim a falta de senso das pessoas, que ao invés de ao menos disfarçarem, olham para mim e ainda cutucam os colegas ao lado para que olhem também. Enfim, um bando de idiota sem noção.
"Calma, Lia, uma hora isso passa." repito mentalmente enquanto aperto o passo e chego ao interior da escola. Os alunos antigos estão tão preocupados em contar como passaram o verão que, pela graça dos céus, ainda estão todos no gramado, deixando o corredor livre e silencioso para mim. Como de costume, a ornamentação é a mesma: o mesmo corredor de piso de concreto polido, paredes brancas de um tom hospitalar, com faixas e cartazes pregados dando as boas-vindas aos alunos veteranos e novatos, portas pretas com janelas de vidro no meio e vários detalhes tão sem graça e comuns que não vale a pena destacar.
Logo nos primeiros passos, alguém vem por trás e puxa meus fones de ouvido. Recuo assustada na mesma hora e sinto um alívio imenso ao ver de quem se trata:
-Meu Deus, Susan. – ponho a mão no peito enquanto suspiro e penduro os fones no ombro direito. -Que susto! Não... faz mais isso.
Susan, por sua vez, nem escuta o que falo e parte para um abraço completamente imediato e apertado. Eu não esboço nenhuma reação, afinal, nem deu tempo, mas sinto certo conforto no coração em ver alguém que me quer bem por perto.
-Eu fiquei tão preocupada. E você não respondia as minhas mensagens, mas... que bom que veio. – ela finalmente me solta, ocupa as mãos pegando nas alças da mochila pendurada nas costas e solta uma palavra atrás da outra. -E o Natan tava aqui também, só que o time de futebol queria uma reunião antes da aula começar, então ele teve que ir. Mas me pediu pra não deixar você entrar sozinha.
-É bom te ver. – digo quase em sussurro, arrependida por não tê-la respondido e a evitado por um bom tempo, o remorso é perceptível no meu tom, mas tenho certeza que ela entende.
Pela primeira vez um sorriso se faz no meu rosto, e não seria diferente, já que Susan tem esse poder desde que nos conhecemos quando éramos bem pequenas, desde que era aquela menininha ruiva acobreada, de sardas em pontinhos fortes e espalhados pelo nariz e bochechas, sempre foi muito defensora de mim e da nossa amizade. Ela não sabe, mas agradeço todos os dias por tê-la como amiga.
Juntas seguimos corredor a fundo até encontrarmos a nossa sala com uma lista imensa de números postos um abaixo do outro na parede ao lado da porta. Essa numeração indica o armário renovado que cada aluno recebeu, e esse ano fiquei com o 516, um novinho em folha que eu e Susan exigimos na diretoria no ano passado, porque os nossos antigos não funcionavam as trancas direito, e como resultado tínhamos furtos constantes. Ao ver que nossos pedidos foram atendidos nesse ano, sorrio para Susan e ela para mim. Em outras circunstâncias, pularíamos de felicidade e estalaríamos um high five com as palmas de nossas mãos, mas Susan é sensata, um sorrisinho meu para ela já basta. Sem mais esperar, coloco todos os meus pertences dentro, inclusive os materiais que reciclei do ano passado.
Não demora muito até que o corredor comece a se encher de gente, todos deixaram para verificar seus armários nos dois últimos minutos antes da campainha tocar, em consequência disso, a muvuca começa. O que antes estava vazio e calmo, agora parece uma feira agitada de vendedores ambulantes.
Eu carrego meu livro de Biologia, e Susan, segurando quase uma Bíblia de química, se sente na responsabilidade de me acompanhar até a porta da minha primeira aula do dia. Geralmente não gosto muito dessa atenção exagerada em cima de mim, mas penso que ela está fazendo o que acha que é certo por uma amiga, e eu compreendo essa atitude, na verdade, não esperaria menos dela.
Na porta da minha sala, Susan me dá outro abraço apertado e diz: -Olha, na saída a gente se encontra. Eu, você e Natan. Vamos fazer alguma coisa. O que acha?
-Acho bom. – respondo, ainda incomodada por estar sendo motivo dela estar se esforçando para me descontrair, mas não demonstro, apenas sorrio e finalizo. -Então, a gente se vê no final do dia.
-Belê. Até depois. – Susan some pela multidão que se formou no corredor, enquanto eu entro na sala, com o livro preso pelos meus braços cruzados.
Mantenho meu olhar baixo, retiro o capuz e me sento no meu lugar favorito: no fundão e perto da janela, porque é silencioso e a visão para o gramado da escola compensa, sem papear com ninguém. Susan e Natan são os únicos com quem eu falo e tenho uma amizade sincera, dentro ou fora da escola, só me comunico com o restante quando fazemos grupos para trabalhos. Os alunos não costumam ser tão receptivos com bolsistas, como se fossem os donos da porcaria do mundo. Ano passado, isso deu o que falar: os professores notaram essa divisão de bolsistas e não bolsistas. Como solução, buscaram uma semana de interação de um aluno com todos e todos com um. É claro que eu, Susan e Natan não participamos, e por isso fomos obrigados a fazer algumas sessões de terapia.
Voltando sobre a questão da atenção inconveniente que estão direcionando a mim, na sala de aula não é diferente, sinto uma multidão de olhares, mas finjo folhear o livro.
O professor Magnus, um quarentão um tanto charmoso e cheio de vida, na intenção de me dar uma recepção calorosa, diz em meio ao silêncio:
-Bom te rever, Senhorita Freeman. – ele acena e sorri. É claro que ele tinha a melhor das intenções, mas só me deixa mais desconfortável do que já estou. Como resposta, só esboço um sorriso e continuo fingindo que algo no livro de biologia me interessa. A vontade que eu tenho é de gritar "POR FAVOR, PAREM DE OLHAR PRA MIM."
A campainha alarmante anuncia o fim dos alunos entrando na sala e o início da aula, o professor Magnus bate uma mão na outra em conformidade, se levanta, verifica a porta para ver se não tem ninguém ainda chegando atrasado ou coisa parecida. Com a checagem de que todos estão a postos, a porta é fechada e, então, ele começa:
-Então, pessoal, bom dia! - Um coro baixo, sem ânimo e uníssono responde:
-Bom dia.
-Misericórdia, quanta animação. Mesmo assim temos que começar de algum lugar. – ele busca o seu livro aberto em cima da mesa e, com o objeto em mãos, volta sua atenção para nós. -Pra quem não me conhece, sou Magnus, professor de biologia encarregado de ensinar a vida em evolução a vocês. Não só a vida como também a... Três batidas na porta são ouvidos. Logo, a pessoa responsável pelo incômodo dá as caras.
-Aaah, o trio do atraso. Os anos passam e nada muda, não é? Vamos, entrem logo. Só porque hoje eu tô legal.
Em uma fila em trio, uma vem entrando atrás da outra: Megan, a líder das megeras e, Diana e Cris, que são só as cobaias de Megan, tão insignificantes que sequer possuem uma posição de "respeito" nessa amizade segurada pelo status, o trio que vem atazanando minha vida desde que entrei nessa escola, respiro fundo em insatisfação.
Megan se senta logo na primeira cadeira da quarta fileira, e, consequentemente, Diana e Cris, nessa mesma ordem, se sentam nas cadeiras atrás da líder. O mais engraçado é que os assentos pareciam estar esperando por elas, como se fossem as donas dos lugares e, de fato, são, uma vez que elas mesmas ditaram essa regra e todos se veem obrigados a seguir. E depois dizem que o dinheiro não tem poder.
Megan, ao se confortar na cadeira, não perde a oportunidade de me procurar pela sala com os olhos e acaba me achando encolhida no fundão e perto da janela. Olhando para trás por cima do ombro, ela não tem outra feição senão pena. Pela primeira vez não me lança um sorrisinho sarcástico e eu nem sei se acho empático ou morro de raiva, na verdade, é o último sentimento que espero que tenham de mim, mesmo que esteja mais do que escancarado na face das pessoas.
-Então, continuando, eu falava sobre a vida, não é? – Magnus tenta prosseguir, reajustando a gravata azul escura por baixo de sua gola. -Biologia que, se formos atrás da etimologia da palavra, temos... – com o pincel azul ele escreve na lousa branca em letras garrafais a primeira fase de sua explicação: -"Bio", que vem do grego e significa vida, enquanto o sufixo "logia" entendemos como ciência de algo. Ou seja... – ele sublinha os dois termos no quadro e se vira animado para nós. -...estudaremos a ciência da vida, que agrupa os organismos, sua origem, seu funcionamento, evolução, reprodução e toda essa relação que qualquer ser vivo tem com o ambiente em geral. Resumindo, senhores, tudo aquilo que tem vida possui um sistema, e é aí que a gente entra bem animado pra aprender. Vamos vasculhar tudo o que pudermos, do início da vida de uma célula até sua morte.
-E do que adianta a gente decorar um monte de coisa em latim e até entender o organismo de uma lombriga se vai todo mundo morrer um dia? – pergunta Jonas, figurinha carimbada dos professores e bastante conhecido por gostar de chamar a atenção com piadas sem graça, isso quando não está na última cadeira da sala no fundão dormindo, não é à toa que o chamam de Soneca, o cara faz jus ao apelido. - A vida é um sopro, fessor. Eu não sei se amanhã vou estar aqui, então, se eu fosse o senhor...
Um aluno sentado atrás pega seu livro de biologia e bate nas costas de Jonas na intenção de fazê-lo perceber que está sendo inconveniente ao extremo, Jonas se vira com raiva, e pergunta:
-Qual foi, cara?
Não preciso ser profissional em leitura facial para saber que o aluno que bateu em Jonas olhou de esguelha para mim como quem alerta "Cala boca, idiota, a Lia perdeu os pais. Para com essa porra de 'a vida é um sopro!", uma vez que Jonas, ao se virar e fazer contato visual, logo olha para mim e solta um:
-Aaaaaah, foi mal, a sala inteira não dá um único suspiro.
Professor Magnus, já impaciente e constrangido pela situação, vai em direção à mesa de Jonas, abre seu livro de biologia e força uma fala simpática com reprovação em seu tom, acompanhado de seu rosto carrancudo:
-Se eu fosse você, Senhor Jonas, faria o favor de ficar calado e me deixar ser o professor. Pode ser ou será que tá difícil? - Jonas, envergonhado, levanta as mãos abertas ao ar em forma de trégua e não fala mais nada.
Odeio o clima denso que se formou decorrente da gracinha do Jonas, por mais que o professor contorne a situação e mude de assunto, sei que tudo, a partir de agora, vai ser dito com o maior dos cuidados para não me afetar, sinto falta de quando eu era invisível.
Na cadeira da frente, Megan é a única que ainda olha para mim, com o semblante sério e a falta de noção de sempre, isso me dá nos nervos de uma forma que não sei explicar.
Dou de ombros, abro o livro na página em que o professor pede e sigo fingindo que presto atenção, ignorando o elefante gigantesco que anda pela sala.
Depois das primeiras angustiantes horas de aula, a campainha toca e anuncia o horário do almoço, que é a minha salvação. Enquanto ando a caminho do refeitório, passo os olhos por todos os lugares: nenhum sinal de Susan ou de Natan.
Na grande praça de alimentação da escola, de longe consigo ver o cardápio do dia: uma salada com batatas que mais parecem borrachas do que algo para comer. Sinto minha barriga estremecer só de pensar em engolir algo assim, dou meia volta e resolvo que o gramado perto da quadra de futebol americano pode ser uma boa estadia para alguém que não deseja ser vista. E, realmente, o ar fora da escola está mais tragável e bem mais fácil de respirar, principalmente quando estamos sem alguém por perto para desabafar.
Meus pensamentos estão tão longes que sou tomada por um pânico gigante quando alguém chega me abraçando por trás tão forte que a única reação que tenho é me debater.
Sem visão de quem seja, e ainda mais quando percebo se tratar de um menino, grito estridente:
-Me solta!
-Uou, uou! Calma aí, sou eu!
Ao finalmente me libertar, vejo que é apenas Natan, todo fardado com o uniforme do time de futebol americano da Ohio School. Aliviada, respiro fundo antes de falar alguma coisa:
-Pelo amor de Deus, você e a Susan tiraram o dia pra me receber de uma maneira tão... – nem consigo terminar a frase de tão nervosa que estou. Com a mão no coração, vejo-o tentando se retratar.
-É, tem razão, foi mal. Foi mal, mesmo. Mas é que... Você ficou tão afastada nas férias que quando te vi vindo pra cá, corri logo pra te abraçar, e... – Natan, procurando um meio de prosseguir com sua frase, remexe em seus cabelos ondulados e castanhos escuros, olha para os lados e então diz: -...eu queria que soubesse que a perda dos seus pais foi...
-...muito grande. Eu sei, eles eram como pais pra você também. – termino a frase. Odeio como meu tom sai ríspido demais, mas foi mais forte que eu.
O silêncio entre nós é constrangedor, e eu me arrependo de ter falado alguma coisa. Natan, sempre sagaz, arranja um jeito de reverter a situação:
-É, olha, me desculpa. Vamos mudar de assunto. Eu queria que eu, você e Susan...
Enquanto ele força um sorriso entusiasta e arregala os olhos castanhos para parecer o mais animado possível, um integrante do time vem correndo cortando o campo gramado e, de longe, chama Natan:
-Qual é, cara? O pessoal tá te esperando.
-Tá, tá, avisa que já tô indo. Só um minuto. – Natan, ao respondê-lo gritando ao meu lado, volta sua atenção para mim e, antes de falar qualquer outra coisa, pega nas minhas duas mãos e diz com a voz amaciada: -Que tal eu, você e Susan sairmos depois da aula? O que acha?
-Foi exatamente o que Susan disse. – sorrio.
-Ótimo, isso quer dizer que ela topa. E você? – Natan me olha com a maior cara de pidão do mundo, quase parecido com o gato de botas do Shrek. Eu não fazia ideia de que estava com saudade disso até presenciar. Sem mais delongas, faço que sim com a cabeça.
-Ah, legal. Então, vejo vocês duas depois da aula. – ele se despede, atravessando o campo, indo ao encontro do colega de time apressadinho. Antes de virar as costas de vez, ele diz em alto e bom som: -Senti sua falta, Lia Freeman.
Como já estou longe, apenas mexo os lábios na intenção de que Natan os leia: -Eu também senti.
Dou meia volta, ando por um tempo ao redor do gramado até ter, literalmente, somente um minuto para a campainha tocar. É uma tática para cruzar com o mínimo de pessoas possíveis, e funciona.
Como estou atrasada, corro em direção ao meu armário, quase ninguém mais está perambulando pelos corredores e nem pelo refeitório.
Apressada, pego o livro da aula da vez e, quando fecho a porta do armário, dou de cara com Megan, Chris e Diana. Minha aura, que tinha melhorado um pouco com o abraço inesperado do Natan, despenca para zero e a cor agora é avermelhada.
Apenas reviro os olhos, tento me desviar sem trocar nenhuma palavra, porém Megan se mete na minha frente e começa seu falatório, com o mesmo olhar de pena dela e das outras duas. Isso me enraivece num nível que não dá para explicar.
Tento uma fuga silenciosa, mas Megan se coloca na minha frente para onde quer que eu vá.
-Não, espera aí, Lia. – diz Megan. Desisto de tentar desviar, bufo insatisfeita, engulo em seco e pergunto:
-O que você quer, Megan? - Megan ajeita uma mecha de cabelos loiros atrás da orelha direita, ajeita o livro entre os braços e força uma
voz meiga:
-Eu estava conversando com as meninas e... pelo que aconteceu com você, queria que a gente deixasse as nossas... desavenças pra trás e... quem sabe, até podemos ser amigas. – o mais incrível na entonação da Megan é que, mesmo que ela tente parecer uma pessoa boa e mudada, sua prepotência é tão gigante que algo entranhado no ser dela não permite qualquer ato de bondade.
-É, Lia. Aceita. Inclusive, ia até dizer que você tá linda hoje. Quer dizer, não mais que eu, mas nada que um banho de shopping em você não resolva. – diz Chris, balançando seus cabelos curtos e bem lisos.
Diana, por sua vez, não diz nada, só fica apreciando as amigas boas samaritanas enquanto olha para mim com o rosto recheado de pena. Para mim, isso é a gota d'água:
-Só... calem a boca e me deixem passar. – nem eu mesma acredito que essas palavras saem da minha boca com tanta rapidez e agilidade, mas minha chateação é tão grande que a tela preta toma conta da minha mente e, como consequência, as minhas atitudes são tomadas pelo controle automático da raiva.
-Isso não é maneira de tratar quem só tá tentando ajudar, garota. – intervém Megan.
Algo dentro de mim ferve como fogo, não preciso da solidariedade de ninguém. Todos os olhares de hoje, a situação da sala de aula, a pena nítida no rosto de todos... Tudo isso culmina num pico de fúria que me faz explodir:
-Parem de olhar assim pra mim! Parem de tentar ser legais, porque vocês não são! Eu não preciso de vocês, e nem de ninguém na merda dessa escola. Eu só quero que... saiam do meu caminho, que saco.
Diana, que até então estava oculta, se coloca a minha frente, atrapalhando minha passagem e protesta enquanto segura sua cintura, indicando indignação:
-A gente vem aqui, na boa, te oferecer o que quase todo mundo quer na merda dessa escola e você nos trata igual como trata aqueles dois farrapos que você chama de amigos?!
Meu sangue ferve de raiva e então, o que sai a partir de agora, fica por conta do ódio acumulado e desprezo por tocarem no nome das duas únicas pessoas no mundo que eu defendo, assim como eles fariam por mim. Sorrio sarcasticamente, contenho a respiração acelerada e me aproximo intimidadora de Diana, enquanto digo cara a cara.
-Fala mais uma vez deles pra ver se eu não meto um tapa nessa sua cara de vagabunda.
-Uuuh, ela quer partir pra agressão. – Diana desfaz da situação. -Anda, bate aqui, ó. Só se prepara pras consequências, porque é assim que nós tratamos gentalha ingrata.
Não recuo nenhum centímetro, no entanto, Megan puxa Diana pelo braço e diz:
-Esquece, Di. É por isso que nós três estamos acima desses merdinhas. Vamos, deixa a Lia aí, no final do dia ela vai voltar correndo pro papai e pra mamãe pra contar que fomos muito malvadas com ela. – Megan dá as costas com as outras, e juntas elas sorriem e seguem pelo corredor.
Pela primeira vez não meço meus atos, parto na direção de Megan, que está no meio do trio, enrolo minha mão no cabelo loiro dela e puxo com a força do ódio que sinto.
Ela grita e resmunga, tentando puxar o cabelo de volta, possivelmente para amenizar a dor no couro cabelo que está sendo puxado.
Enquanto enrolo uma mecha grossa de cabelo dela em meu punho, digo estridente:
-Fala de novo dos meus pais, cadela! FALA! Pelo menos eu tinha pais descentes. E você, hein? Não é porra nenhuma senão uma menininha birrenta que depende da porra dessa aparência mentirosa de dona do mundo pra parecer mais interessante, porque todo mundo aqui sabe que na sua casa você não é nada além de um saco de pancadas.
Todas as minhas palavras saem como balas disparadas uma após a outra. Dentro de mim vários sentimentos se espalham e, na verdade, nem sei direito o que falei, entretanto, pela cara das três, disse uma besteira imensa que vai contra a minha índole, mas já é tarde demais, eu disse e não dá para voltar atrás.
Numa resposta raivosa a tudo o que eu proferi, Megan também age de acordo: recupera o domínio de seu cabelo e me empurra com força em direção à porta do meu armário, seguido de um estrondo barulhento e metálico que ecoa pelo corredor quando minha cabeça se choca com o alumínio.
Megan me encurrala e diz furiosa:
-É isso que a gente ganha por tentar ajudar gentinha ridícula que nem você. Pelo visto, seu luto já acabou, não é? E você se prepara, se antes era ruim, vou fazer questão de infernizar sua vida pessoalmente, Lia Freemerda!
As três não percebem quando o professor Williams vem chegando por trás, provavelmente por ter escutado o barulho do meu impacto contra o armário, e pega Megan no flagra me cercando:
-Mas o que é que tá acontecendo aqui?
Megan se vira de imediato para trás, arregala os olhos e não sabe como explicar:
-Acontece que... a gente só tava tentando ser legal e a Lia...
-Senhorita Rougffield, não consigo encontrar resposta no mundo que justifique você estar encurralando uma colega dessa forma? Ainda mais se esse barulho todo tiver vindo daqui. – Williams, passa a mão pelo rosto todo em exaustão, suspira e finaliza: -Quer saber, nenhuma conversa a mais. Lia e Megan, na minha sala. Vocês... – ele aponta para Diana e Chris. - Voltem agora pra a sala de aula.
Eu não falo absolutamente nada, apenas obedeço ao que me foi mandado.
Williams anda na nossa frente indicando o caminho, ao que Megan me fuzila com os olhos e sussurra ao meu lado:
-Se esse idiota ligar pro meu pai, eu acabo com você.
-Vai em frente, Megan. Aí eu digo o que me levou a uma medida tão agressiva. Os professores vão amar saber que tem uma aluna psicopata que gosta de tirar sarro do sofrimento alheio. Talvez três meses de terapia dê jeito. E também eles precisem falar com seus pais. – sussurro de volta, Megan se cala, no entanto, não consegue disfarçar seu bufo de ódio.
Ao entrarmos na sala dele, vejo-o correndo em direção a um pedaço de pano jogado e amarrotado no canto que, se não estiver enganada, parecia um vestido. Se depender do constrangimento de Williams, diria que é exatamente o que estou pensando: cheirinho de adultério no ar, já que todos os professores e diretores são muito bem casados com pessoas fora da escola.
Williams limpa a garganta, aponta com a mão aberta para que eu e Megan nos sentemos nas duas cadeiras à frente da cadeira atrás da mesa na qual ele se senta, cruza as mãos, apoia os cotovelos sobre a mesa e pergunta de maneira simples:
-O que levou à tamanha violência, Senhorita Rougffield?
-Eu só tava tentando ser legal. Até a convidei pra fazer parte do meu trio que o senhor já deve conhecer. Mas ela foi bem mal educada com todas nós e eu acabei revidando. Foi... Mais forte que eu, confesso. – explica Megan.
-Lia, o que tem a dizer?
Reviro os olhos, tento olhar para outro canto que não seja para os olhos firmes de Williams, afinal, eu e Megan acabamos de firmar um pacto silencioso, pois se eu contar que ela falou dos meus falecidos pais, ela conta que eu puxei seu cabelo com a força de um gigante, e nós duas sabemos que fazer terapia nessa escola é como ir para o inferno: os profissionais são desqualificados, ficam com a mesma conversinha de sempre e, para piorar, teremos que praticar o que eles chamam de "O afeto pelo próximo". Pensando rápido, decido agir de acordo com o que ele viu, pois, querendo ou não, Williams flagrou Megan me intimidando, e então finalmente respondo:
-Eu disse que não preciso de ajuda de porcaria. E é verdade, professor, não preciso da compaixão de ninguém. Não quero a amizade e muito menos a pena de ninguém dessa escola. É muito simples.
Williams parece ter entendido a situação, olha para mim e depois para Megan, se acomoda em sua cadeira giratória e dá seu parecer.
-Tudo bem, já entendi, mas... Megan, o que nisso tudo te daria raiva o suficiente pra empurrar e encurralar uma colega contra o armário? Tô tentando entender isso.
-É só que... – Megan está pronta para dizer exatamente o que a fez agir com brutalidade, mas se interrompe no meio da frase e omite a minha culpa na história quando diz: -...que eu não tolero falta de educação comigo e nem com as minhas amigas. – ela empina o nariz, comprime os lábios e não reduz sua arrogância.
-Não se combate violência com violência, Megan. – Williams respira fundo, pega o celular do bolso e digita alguns números como quem está decidido.
-Espera, o que o senhor tá fazendo? – Megan pergunta, desmanchando de repente sua posição super firme. Pela primeira vez a vejo com uma cara tão assustada.
-Ligando pro seu pai. Já chega! Esse ano minha tolerância pra atitudes como essa são mínimas, ainda mais no primeiro dia de aula. Se querem agir como criancinhas inconsequentes, então terei que tratá-los como tais: ligando pros responsáveis.
-Não! – reivindica Megan na mesma hora, dando um pulo para frente e arrancando o celular das mãos de Williams.
-Megan, me devolve já esse celular!
Williams e Megan, ambos em pé se encarando, enquanto eu permaneço sentada, observando a cena tensa que se formou na minha frente:
-Não, por favor, Williams. Eu faço qualquer coisa: cumpro detenção, limpo os banheiros, sirvo merenda, qualquer coisa. Só não liga pro meu pai. – Megan pede com tanto fervor que seria quase um crime não dar outro castigo que não fosse ligar para o temido pai. Pela primeira vez em anos eu a vejo tão vulnerável.
Williams respira fundo, segura a cintura com as duas mãos e responde:
-Tudo bem. Agora, me devolve isso. – Megan parece aliviada, devolve o celular, encara o chão como um animalzinho de estimação que fez uma grande besteira e escuta quando Williams finaliza: -Eu vou pensar muito bem no seu caso, mas saiba que não vai sair impune. Nessa escola não toleramos violência. Que isso fique bem claro pras duas. Podem sair.
Megan, que já estava de pé, só circula a sua cadeira e sai enfurecida da sala. Eu saio devagar, esperando que Williams me dê algum tipo de detenção, mas ele não fala nada.
A caminho da minha sala, resolvo passar antes no banheiro, até porque já perdi alguns minutos de aula mesmo, mais outros não faz mal. Em frente ao espelho, vejo meu cabelo todo desarrumado, tudo bem que os fios são assim por natureza, mas receberam ajuda de rebeldia quando Megan me deu um empurrão.
Enquanto passo as mãos pelos fios rebeldes em frente ao espelho que cobre uma parede inteira, sinto a parte de trás da minha cabeça latejar de dor que aumenta de intensidade.
Pouco a pouco meus sentidos vão se esvaindo, me desequilibro e reajo apalpando as paredes do banheiro. Meus passos ficam trôpegos e então, de súbito, desmaio sobre o piso gelado e úmido.