Ajustei o alarme para que me acordasse mais cedo do que todos. O celular tocou freneticamente embaixo do travesseiro e logo desativei o alarme para que eu fosse a única na casa que estivesse acordada.
Para dar uma viagem só, achei que tomar um banho antes de descer me despertaria, e deu certo. Nada que uma boa ducha de água gelada não prepare alguém para mais um dia de acontecimentos inesperados em Ohio School e... Ohio em geral, principalmente agora que declarei nenhuma paz selada entre mim e Megan, e por uma parte vejo coerência no que fiz. De certa forma, uma pessoa sensata gostaria de ter um pouco de calmaria em meio ao caos, e é claro que eu não fujo dessa estatística de sensatez, mas é só que todo o sentimento de "Coitadinha, ela perdeu os pais.", de pessoas que eu nunca vi nada vida, me faz ter saudade da vida que eu levava antes dessa tragédia acontecer, e quando eu digo tudo, é tudo mesmo: das pessoas e seus jeitos verdadeiros, momentos, dias medianos e isso inclui Megan fazendo um inferninho que, por muitas vezes, era até divertido. Então, tê-la como aliada a essa altura do campeonato, seria ter que me adaptar a mais uma mudança drástica, e eu sinceramente não estou preparada para isso, e nem quero. É melhor deixar que a vida siga seu rumo natural. É o mais confortável para mim no momento, talvez mais perigoso, mas esse detalhe é algo que estou disposta a encarar.
O banho gelado me ajudou a acordar cem por cento, pego minha mochila já pronta, desço as escadas com meus tênis nas mãos para evitar acordar qualquer um dos dois.
Como prometido a Petter, hoje não pode faltar de jeito nenhum o tão aguardado piquenique. Com as mãos mais silenciosas do mundo, abro a geladeira bem devagar e caço tudo o que pode ser utilizado sobre a grama verde de Lakewood: cupcakes, suco de laranja de caixinha, sanduíches naturais de atum que tia Ana adora fazer e deixar guardado para que comamos sempre que der fome, e, para não dizer que não estimulo a vida saudável ao meu irmão, pego duas maçãs. Deixo tudo sobre o balcão da ilha de mármore branco que se encontra no meio da cozinha, volto à geladeira e tento procurar outra coisa, afinal, não é só porque eu tenha zero criatividade para essas coisas que Petter mereça um lanchezinho na mesma proporção. E principalmente depois de termos passado tanto juntos, quero dar meu melhor para que ele não se sinta sozinho.
Segurando a porta da geladeira escancarada, atenta a qualquer outra comida já pronta que eu possa colocar na mochila, chego à conclusão de que posso comprar outras coisas pela escola e acrescentar ao mini banquete:
-É... é isso! – digo em voz alta para mim mesma, dando de cara com tia Ana parada atrás da porta da geladeira, com os cabelos desgrenhados presos num rabo de cavalo mais esfiapado que qualquer coisa, parece até que um furacão a engoliu e a cuspiu depois de horas rodopiando pelo ar.
Assustada com o meu susto, ela se encolhe num repentino espasmo e leva a mão ao coração, com os olhos rapidamente arregalados e apalpando o peito revestido pelo costumeiro roupão cinza felpudo.
-Meu Deus, tia! – ao passo que me espanto, me alivio por não ser uma assombração, apesar de ter aparecido tão sorrateira quanto uma. -Eu... quase morro do coração!
-Ah, me desculpa, achei que tivesse ouvido meus passos. Desci porque escutei barulhos aqui e... – tia Ana analisa o balcão com as coisas básicas que peguei, tudo já embalado e prestes a ser guardado na mochila. -O que é tudo isso? Tá planejando uma fuga?
A vontade que eu tenho é de responder "Sim, mas prometo não ir a canto algum se você me disser o motivo daquela briga misteriosa que teve com tio Martin.", no entanto, me contento com um olhar desconfiado, mirando qualquer outro lugar que não sejam os olhos dela e respondo:
-Prometi pro Petter que faria um piquenique com ele no Lakewood. Eu não pude ontem, então...
Não foi preciso explicar todo processo e nem todo o itinerário do dia que vem pela frente: eu não quero falar muito e, pelo visto, tia Ana já se deu por convencida, porém, o silêncio que paira entre nós torna a situação constrangedora, e ela me olha como se sentisse culpada por algo, como se o que foi falado ontem pesasse de uma forma tão avassaladora que ela mesma não consegue engolir o que disse. Na intenção de alternar a posição observadora, ela dá mais sustentação ao laço de algodão que aperta o roupão à silhueta de seu corpo, inspira, expira e volta a olhar para mim enquanto diz:
-Eu posso fazer algo pra acrescentar. Acho que o Petter vai gostar se eu fizer um...
Na mesma hora interrompo:
-Não, tia, sério, não precisa. Esse é um lance meu e do Petter. A gente sempre faz assim: raspa besteiras que tem na geladeira e leva pra comer sobre a grama. Sem muita preparação.
-Ah, mas que coisa! Não vai levar nem um minuto, eu posso fazer bem mais pra vocês levarem. Posso até ver um forro pra sentarem e não se sujarem. – diz ela, prestes a subir para seu quarto para ver o típico forro quadriculado branco e vermelho que sempre usam em momentos como esse, quando eu a impeço e digo sem enrolação:
-Mas a gente não quer. – tia Ana, que estava a caminho para subir as escadas, paralisa na mesma hora e se apoia na beirada da ilha. -Na verdade, eu não quero. – me arrependo da voz firme que uso, e quem sabe tenha sido sobre esse tom que ela tenha falado para Martin ontem antes daquela discussão, entretanto, esse tom, esse meu olhar para esse tipo de momento só se revelam quando me sinto enganada: ornar um piquenique com firulas, panos e o caramba todo vai fugir da normalidade, vai fugir de como eu e Petter sempre fizemos, estaremos mentindo para nós, e se tem uma coisa que eu mais odeio é mentiras.
O clima que se forma se torna ainda mais denso. Ela do outro lado da ilha, olhando fixamente como quem diz "Você é realmente cabeça dura.", e eu aqui em paralelo, controlando a língua para não perguntar o que foi aquela briga sem pé e nem cabeça que tiveram ontem e que eu sei porque escutei tudo escondida na escada.
Quem nos olha de fora se pergunta por qual motivo iniciei esse climão tão repentino, mas tia Ana sabe que não pode retrucar por causa do desabafo de ontem, pelo que vem sentindo desde que pegou nossa guarda, e eu também sei que tudo o que faço tem um motivo plausível, não invento as coisas e nem dou vez às vozes da minha cabeça. Trabalho com fatos, e quero descobri-los mais do que tudo.
Dá para ver estampada na testa dela as palavras "Difícil de lidar.", e quando esperava algum tipo de sermão sobre como tratar as pessoas que só querem ajudar, ela simplesmente respira fundo, serve um pouco de chá e diz enquanto dá um gole rápido para não queimar os lábios com a fumacinha quente que sai de dentro da xícara pequena e transparente:
-Eu... tô organizando uma reunião de vizinhos aqui em casa, com os vizinhos e... você sabe, né? A mesma coisa que sua mãe fazia. Acho que não posso fazer diferente e nem feio. É uma forma de retribuir também, pela ajuda que nos deram esses últimos tempos. Acho que vai ser esse fim de semana.
Engulo em seco, na verdade, esperava ter começado a segunda rodada de discussões depois de Martin, eu queria muito que ela respondesse tal qual a Martin, eu teria as perguntas certas, mas tia Ana mudou de assunto de uma forma tão aleatória que me sinto uma completa babaca brigalhona. Envergonhada, apenas meneio a cabeça afirmando.
Novamente estamos caladas, ela com a xícara de chá quase acabando e eu fitando o chão:
-Vou fazer o café da manhã pra vocês não saírem com a barriga roncando até o lanche no Parque.
-Deixa que eu faço. A senhora fez muito ontem à noite, aliás... – respiro fundo antes de dizer o que vem pela frente. -...tem feito muito ultimamente. Pode deixar que eu faço algo pro Petter. Eu como na escola. – apesar de me contradizer, novamente sou pega pelo sentimento da gratidão, pois por mais que eu saiba o momento de agir contra mentiras, também sei agir em momentos em que uma briga não deve ser cultivada.
-Ok, então... bom passeio e lanche pra vocês. Não demorem muito, e... qualquer coisa, podem me ligar. – finaliza ela, pondo-se a andar em direção ao seu quarto, com mais uma rodada de xícara de chá e, possivelmente, um sono pesado até a hora que voltarmos.
Não demorou muito até que Petter acordasse. Rapidamente coloquei tudo o que peguei da geladeira diretamente na mochila, vai ser surpresa, mesmo que não seja o piquenique mais bem organizado da Terra, mas Petter gosta de como sempre fizemos, e é isso o que importa.
Por dispensar tia Ana de maneira sutil – ou pelo menos tentei ser – automaticamente fiquei responsável por ajeitar as coisas de Petter, o que não é muito difícil, já que tia Ana sempre deixa tudo separado para a manhã seguinte, apenas o observo para que não o falte nada. São nessas pequenas horas que percebo minha maioridade chegando cada vez mais depressa, antes faltava tanto, e agora está tão perto. É o que dizem: depois dos quinze, a vida passa voando. E se não dizem, eu estou falando agora, porque é a mais pura verdade.
Olhando para Petter e o ajudando a vestir a camisa, pentear os cabelos e escovar os dentinhos, a ficha cai de que daqui a pouco eu serei responsável por ele, pois está nos meus planos recorrer à sua guarda, e acredito que, se eu me mostrar responsável e adulta, ninguém irá contra essa vontade, creio que não. Pensando nisso, me vem a ideia de passar o final de semana com Susan, uma vez que ela é expert em ajeitar currículos, ainda que eu tenha zero experiência e nunca tenha trabalhado, sei que ela pode dar um jeito.
-Vamos, Lia. A gente perdeu muito tempo. Vamos! – alerta Petter, me despertando dos planos futuros em que eu me vejo a responsável legal de uma criança. Tento não pensar muito no que vem pela frente, não com tanta intensidade para que isso não se torne um susto, atendo aos pedidos de Petter e juntos saímos correndo em direção à sua escola.
Todo dia é a mesma coisa: Petter é sempre tão ansioso pelas aulas que não se aguenta e fala pelos cotovelos, e isso encurta nosso caminho até sua escola. Ele fala como vai apresentar os trabalhos e como dará um jeito de introduzir seus dinossauros nos assuntos que forem ministrados em sala de aula. Eu finjo escutar e entender, o poder que um menear de cabeça tem é impressionante.
Chegando em frente à sua escola, me despeço dando um beijo em sua testa, o abraço e inclino a coluna sinuosamente para olhá-lo nos olhos, enquanto o ouço dizer:
-Nada de se atrasar hoje ou furar, hein.
Eu rio, atrapalho os seus fios loiros e respondo:
-Não vou, juro. – cruzo os dedos do meio e indicador em sinal de promessa.
Petter dá um sorriso gigantesco e sai correndo em direção à porta dupla da entrada do estabelecimento. Eu permaneço parada até vê-lo totalmente à vista de alguma professora responsável, esta que o acolhe com um abraço e o leva à sua sala.
Num suspiro demorado, procuro meus fones dentro da minha mochila. Escondido debaixo de tanta comida que trouxe, consigo achar e fazer deles meus aliados até que eu sente na cadeira e ninguém me perturbe.
Algumas quadras depois do colégio de Petter já consigo enxergar o gramado que enfeita a frente da minha, e até distante já consigo avistar um grupinho virando o rosto para me ver. É claro, ainda é só o segundo dia de aula, a notícia ainda vai se espalhar, até lá tem muita poeira para rolar.
Reviro os olhos, acoplo bem os fones nos ouvidos e coloco o som de Message in a Bottle, de The Police, até o último volume e corto o gramado mais rápido que consigo.
Com as mãos nos bolsos da minha calça jeans azul clara e o capuz cobrindo meus cabelos, passo tão rápido pela porta da entrada da escola que quando Susan puxa a corda do fone do ouvido direito, sou obrigada a voltar uns passos de ré, quase cambaleante:
-Ei, diminui esse volume! Quer ficar surda, é? Eu tô falando com você. – repreende Susan, cruzando os braços em insatisfação, no entanto, suas sardinhas saltitantes pelas bochechas e os cabelos ruivos presos num cuidadoso rabo de cavalo impedem que eu a veja com a raiva que ela realmente gostaria de transmitir.
-Se continuar me recepcionando assim, vai ter que arranjar grana pra comprar outro fone pra mim. – brinco, guardando os fones dentro da mochila e andando lado a lado com Susan que, segurando nas duas alças de sua mochila posta, olha para mim de esguelha, dando de ver apenas um risco dos seus olhos cintilantes esverdeados. -O que foi? – pergunto, incomodada com essa atenção estranha.
-Tô arranjando um jeito de perguntar como é que você tá. – Susan sorri e eu também.
-Eu tô bem, na verdade... – por um instante um filete de lembrança sobre Kurt e Jack passam de relance pela minha mente, absolutamente do nada6. Como pude esquecer? Quero dizer, corremos perigo ao virmos para escola a pé, jurei a mim mesma que pelo menos Petter pegaria uma carona com a tia Ana.
-Na verdade...??? – Susan me desperta estalando duas vezes os dedos, como se me tirasse de um transe. Engulo em seco, creio que tenha sido um episódio isolado, certamente não voltará a acontecer e nem os verei novamente. Tentando disfarçar, completo minha frase:
-Eu tô mais saudável do que nunca. Eu ia dizer que tô bem, mas bem, beeem, você sabe que eu não tô. – digo, sem baixar o tom de voz para não parecer miserável.
Susan me abraça de lado e diz:
- E é por isso que eu e o Natan existimos.
Sorrio.
-E qual o primeiro sacrifício do dia? – pergunto, bocejando.
-Adivinha, adivinha. – Susan se vira de frente para mim, ordenando que eu faça uma parada repentina para apreciar sua atuação barata. Ela limpa a garganta, põe uma mão no peito, enquanto a outra está erguida como se segurasse um cálice imaginário em que só ela enxerga e recita em simultâneo: -"Ser ou não ser, eis a questão."
Ela desmancha a posição corporal, torna a caminhar ao meu lado.
Eu finjo chorar de desânimo e respondo:
-Ah, não! A Abigail Shakespeare, não.
-Sim, a velha Abigail, sim. Mas pensa pelo lado bom, esse é o nosso último ano a escutando falar da paixão encubada por um carinha morto. Eu não aguento mais Romeu e Julieta. Todo mundo sabe que os dois foram burros pra caramba e houve uma falha de comunicação enorme. Parecia que ninguém sabia falar. Boca pra quê?! Mandar um fofoqueiro pra alertar pra quê, né?! Grrr, que saco! Afinal, quem que queria ser? Ser o quê? É sério, Romieta e Julieu tem que acabar. – resmunga Susan.
-Tá, mas você sabe que isso aí que você tentou imitar é Hamlet, né? – pergunto, contendo o riso ao ver Susan recalcular e perceber que inverteu os papéis:
-É tudo do mesmo carinha, não é mesmo? Então, pronto!
-Continua chamando o Bardo do Avon só de "carinha" na frente dela pra ver se você não começa o ano com menos cinco pontos e desmancha a energia positiva dela de vez.
-Deus não te ouça, amiga.
Enquanto andávamos, nem percebemos que chegamos rápido na sala.
Ao entrarmos, nossa primeira visão é de uma senhorinha macilenta, com seu casaquinho azul marinho cobrindo uma blusa larga branca, que combina com sua calça de pano leve e solto amarelo queimado.
A aula ainda não começou, mas ela já está um tanto animada apresentando um pouco de como será a planilha de ensino, que – com certeza – contém muito William Shakespeare.
Assim que passamos pela porta, ela vira sua atenção para nós, ajeita seus óculos retangulares tão antiquados quanto ela e diz:
-Pois bem, aos poucos os pupilos chegam e deixam a sala completa. Sejam bem-vindas, muito bem vindas! – Abigail tem uma voz tão calma e paciente que é impossível não assemelhar sua figura à de uma hippie, só falta que ela apareça nas aulas com uma faixa que envolva toda sua franjinha e se amarre em um nó sobre seus cabelos prateados num corte Chanel na altura do queixo.
Susan se comprime um pouco e dá um bom dia apático, talvez por ter falado tão mal de uma simpática senhorinha good vibes que só quer amar Shakespeare e nada mais.
Nós duas passamos dando um sorriso amarelo e nos dispersamos. Primeiramente procuro Megan e sua trupe com os olhos, e logo as encontro, sentadas nas primeiras cadeiras, as três, uma atrás da outra. Megan, ao me ver, revira os olhos e se concentra nas unhas que cerra em formato quadrado.
Devolvo a mesma cara feia e me sento no lugar de sempre, enquanto Susan procura seu lugar ao lado de um novato que a espera com um sorriso fechado.
Eu agradeço em silêncio por não ter ninguém ao meu lado, embora seja uma mesa dupla, a turma se fechou e este lugar continua sem ocupante, e talvez permaneça assim até que o ano termine. Gostaria de chamar Susan para fazer companhia, mas a droga do mapa de sala não permite e, convenhamos, eu e Susan somos figurinhas carimbadas dos professores, conhecidas como as maiores conversadeiras da escola. Não acho, mas não quero discutir com professor algum. Sigamos o baile.
Enquanto repouso minha mochila com cuidado na cadeira vazia ao meu lado, a professora Abigail une as palmas das mãos enrugadas numa só batida que chama nossa atenção para ela enquanto diz:
-Muito bem, muito bem! – Abigail também é conhecida por duplicar tudo o que fala, às vezes dizemos que ela é a Gaga de Ohio. Lady Gaga que se cuide. -Estejamos todos nós aconchegados no laço fino e poderoso que nos une: a literatura! – a professora pega seu pincel azul e escreve seu nome e sua função no quadro, enquanto traduz na maior potência sonora que consegue, e não é tanto assim. -Eu tenho nome e sobrenome, mas podem me chamar apenas de Abigail, não sou lá tão pensadora literária que faça com que meu outro nome seja de importância extrema. Pois bem, pois bem, como a maioria aqui já é veterano, devem recordar de que passamos por toda a linha de raciocínio, e a essa altura do campeonato já devem saber que a literatura é nada mais que o pensamento das pessoas de um determinado período histórico, não é?
-É. – todos os alunos confirmam ao mesmo tempo, o mesmo coro cansado e arrastado dos primeiros tempos de aula.
-Então, certamente daremos continuidade a isso, é claro, é claro, esse é o meu papel. No entanto, hoje iniciaremos com as boas vindas aos novatos com algo mais aprofundado, na mesma medida que se torna uma acolhida aconchegante, afinal, toda boa conversa nos leva ao significado da vida, como já dizia Jack London: "A verdadeira função do homem é viver, e não existir."
Ao escutar a palavra "vida", juro que esperava por um burburinho de pessoas que tentariam avisar com os olhos arregalados à professora sobre a tragédia que tirou a vida dos meus pais e que tentasse mudar de assunto, como na aula de biologia, entretanto, não vejo nada disso, nem um resfôlego sequer. Nada! Não sei se porque pensam que Abigail, mais do que ninguém, pode me confortar dando algum tipo de explicação literária ao que aconteceu, ao que eu sinto e como devo sentir, ou se apenas foram rápidos para esquecer e, finalmente, me deixarão em paz quanto à inconveniência. Eu realmente não sei, só sei que estou gostando da forma como as coisas, pouco a pouco – ou até rápido demais – estão voltando ao que sempre foi.
Estou olhando e prestando atenção em cada palavra que sai da boca da professora Abigail, mas não consigo assimilar nada de tanto sono que sinto pela noite mal dormida que tive. Com meu caderno aberto com a intenção de tentar copiar algo que é dito, olho para Susan sem pretensão alguma, mas acabo cruzando olhares com ela e a vejo festejando e balbuciando em silêncio alguma frase que diz que pela primeira vez em três anos de Ensino Médio, professora Abigail não citou Skakespeare como embalo principal de seus pensamentos. Susan festeja fechando a mão esquerda em punho e direcionando o braço para cima e para baixo consecutivas vezes, claro, bem escondida para que a senhorinha bondosa e hippie não veja.
Abigail, por sua vez, paralisa no meio da sala após o término de sua frase, tem o olhar avulso e, como num disparo repentino que assusta ao aluno que estava próximo dela, ela se lembra de algo que a faz muito feliz e faz questão de expor:
-O que nos torna a falar sobre a questão do ser ou não ser. É claro! Não poderia faltar. – Abigail dá uma risadinha rouca, volta para sua mesinha, pega um livro e folheia até achar o conteúdo que complemente sua linha de raciocínio.
Eu olho de esguelha novamente para Susan, e a vejo lamentando em silêncio, tendo sido enganada quanto ao repertório de Abigail. Falaremos de Shakespeare, sim!
Comprimindo os lábios para que eu não dê risada das caras e bocas tristonhas que Susan sabe fazer tão bem desde quando era criança, torno a direcionar meu olhar para meu caderno em branco e tamborilo os dois gumes da minha caneta azul na carteira de madeira.
Olhando para tudo ao meu redor; para as caras de sono; para Susan fingindo chorar com o conteúdo repetitivo; para Abigail trocando de página tão devagar que parece que o mundo está em câmera lenta, começo a perceber que talvez o universo esteja tramando algo para me favorecer, quero dizer, a noite de ontem foi péssima, o que eu tinha de dúvidas em relação à minha tia só aumentou, e o pior é que nem posso perguntar tão diretamente, porque tenho medo do que pode ser dito, mas agora, parando para analisar a vida, de acordo com a professora Abigail, começo a sentir na pele a tal frase que diz "Um dia após o outro.", e é isso, não tem um significado exato, é só vivendo que se sabe, e mesmo que eu não tenha mil motivos para saltitar por aí, estou aderindo a este modo de vida.
Rompendo o enorme silêncio que mergulha e transforma nossa sala numa turma de mortos vivos – talvez porque falar sobre a vida nos deixe assim –, três batidas de permissão para entrar são feitos no MDF da porta, prontamente Abigail se vira e diz tão educadamente mesmo sem saber de quem se trata:
-Entre, entre, fique à vontade!
A porta se abre, e pela fresta que aumenta de tamanho vemos o diretor Williams com a mão grudada na maçaneta, tomando cada vez mais liberdade até estar completamente dentro de sala e anunciar:
-Bom dia, professora! Bom dia, turma! – cumprimenta o diretor, recebendo um singelo sorriso de Abigail e uma onda morna rastejante da turma que responde no mesmo ânimo baixo de sempre. Williams dá prosseguimento, sem muito rodeio. -Professora, vim aqui dar permissão para dois rapazes entrarem e participarem da sua aula. Eles são novatos, perderam a aula de ontem e ainda estão se familiarizando com a escola. Chegaram cedo, mas estavam perdidos.
-Com toda certeza, com toda certeza. Sem pensar duas vezes, diretor. – diz Abigail, já em posição ereta para prestigiar os novatos.
Toda a turma espera com atenção os dois novos alunos finalmente aparecerem assim que Williams dá espaço para que entrem.
Um a um eles vêm. O primeiro entra como se fosse o dono do mundo, como um olhar esverdeado avantajado com olheiras levemente avermelhadas e seu andar confiante, enquanto a barra de seu moletom cinza cobre suas duas mãos que estão enterradas em seus bolsos frontais da calça jeans com rasgos nos joelhos, o que, provavelmente, é estilo. Ele perceptivelmente vem mascando um chiclete, e quando olha para Diana sentada logo na primeira cadeira, faz questão de pentear seus fios dourados e curtos para trás, numa tentativa de charminho que, com certeza, o quarteto do cio amou. Ele estaciona ao lado da professora que, por ser tão miúda, se admira da altura do rapaz e o lança um sorriso meigo. Pobre, Abigail, mal ela sabe.
O segundo já vem mais contraído, todavia não perde a postura arrogante que se iguala ao primeiro. Sem remexer nos cabelos pretos, e nem dar piscadelas para ninguém, ele apenas relaxa os braços estendidos às silhuetas do corpo cuja blusa branca de algodão sem estampa nenhuma é embrulhada pelo casaco jeans preto, tal como sua calça preta também do mesmo tecido desta. Seu rosto é sério, talvez um pouco envergonhado por estar em frente a uma sala inteira esperando ser designado a algum lugar. Os dois estão lado a lado.
É possível escutar o burburinho de algumas meninas que se entreolham, e o assunto nós já sabemos qual é, sobretudo Megan que, ao dispensar o loiro, crava os olhos no moreno sério, que sequer a olha de volta. Ela rapidamente muda o semblante, tenta parecer a mais sensual possível, toma uma mecha de cabelo da nuca e começa a enrolá-lo com o dedo indicador, sempre muito sugestiva, mas ele não a nota.
-É, então, pessoal, quero que acolham os novos alunos como se fizessem parte dessa família há bastante tempo. – diz Williams, que de repente parece muito apressado, jogando toda a responsabilidade posterior para Abigail quando finaliza: -Professora, agora é com a senhora. – ele dá um aceno rápido para a turma e sai, fechando a porta com cuidado.
Por alguns segundos a sala imerge num silêncio absoluto, até que Abigail se toque do que tem que fazer:
-Ah, pois bem, pois bem. Precisam de lugares, não é? Vamos dar um jeito nisso... – Abigail verifica horizontalmente, percebendo que há algumas cadeiras vagas.
Mentalmente rezo consecutivas vezes para que ela não perceba que o lugar ao meu lado está preenchido apenas pela minha mochila.
-Você... – ela toca suavemente no braço do rapaz loiro, que a olha de cima para baixo, por conta de sua altura e espera que ela ordene. -...pode se sentar ali ao lado daquele rapaz.
Assim que Abigail olha para o outro lado da sala, me alivio em parte. O loiro anda sorridente até o lugar que fora-lhe mandado, se senta ao lado de seu novo colega de carteira e, ao sem querer cruzar olhares comigo, não esconde a felicidade macabra de quem quer dizer "Ora, ora, ora, se não é o destino.". Me arrepio toda, olho para qualquer lugar que não sejam aqueles olhos vidrados e arregalados. Engulo em seco e volto encarar a minha carteira, numa tentativa impossível de não ser notada.
-Agora, vejamos um outro lugar pra você, meu jovem. – Abigail, que não é dona da melhor visão do mundo, ainda que seja usuária de óculos, passa a visão pela sala inteira, de lá para cá, até que uma voz estronda pela classe, uma voz que eu achei que nunca mais ouviria na vida, e agora se faz em alto e bom timbre pela sala silenciosa:
-Com licença, ali tem um lugar, ó. É só aquela moça retirar a mochila que tem um lugar pro meu amigo sentar. – eu tremo dos pés à cabeça, mas me contenho até às minhas forças me permitirem, não posso inventar de passar mal agora, não agora.
-Ah, perfeito, perfeito! Vá lá, rapaz. Se acomode. Fique à vontade.
Megan se vira para trás e, ao ver que seria ao meu lado, ela intervém:
-Ou pode ser aqui do meu lado. A Chris pode vazar lá pra trás e dar lugar a ele, sem problemas nenhum.
-Ué, posso? – protesta Chris, tão devagar para captar as situações que nem percebeu o flerte escancarado de Megan, esta que, por sua vez, direciona seu olhar ameaçador na mesma hora para Chris, que trata de entender do que se trata em milésimos e apenas balança a cabeça em concordância.
-Viu, só?! Vem, pode se sentar, vou adorar mostrar a escola todinha pra você.
Percebendo o chaveco completamente descarado, a sala inteira emite um "Uuuuuh!" seguido de risadinhas maliciosas, afinal, já estamos todos acostumados com as paqueras constantes de Megan.
A professora Abigail, por sua vez, até dá uma risadinha no início, mas ao perceber que Megan pode estar constrangendo o novato na frente da sala inteira, disfarça os gracejos nos lábios, pigarreia e retoma a postura séria:
-Ora, Megan, não... não é necessário. É melhor que ele sente perto da Lia, assim ninguém precisa se incomodar. Lia, por favor, retire sua mochila do assento e dê espaço ao colega.
Ao perceber que perdeu, Megan não se dá por vencida, por ora se contenta com um olhar semicerrado a ele, que até acha graça das investidas da garota, mas ainda nada fala, apenas caminha na minha direção, me olha, me reconhece, mas se mostra indiferente. Apenas se senta ao meu lado, ereto com as costas grudadas na cadeira, enquanto eu me comprimo, fazendo de tudo para que nada meu toque algo dele, não quero que perceba que estou tremendo mais do que vara verde.
-Rapazes, quero que sejam muito bem vindos! Me chamo Abigail e serei a professora de literatura de vocês. Gostariam de se apresentar?
No mesmo instante o loiro toma a palavra, e fala com tanta precisão e confiança que parece que nunca na vida tivera vergonha de algo:
-É um prazer, professora Abigail! Meu nome é Jackson, mas pode me chamar de Jack. – ele fala e masca o chiclete ao mesmo tempo, pulsando as têmporas a cada mastigada.
-E você? Gostaria de nos dizer o seu nome? – pergunta Abigail, se dirigindo ao que está ao meu lado, ao que ele responde apenas o necessário, curto e grosso, sem nenhuma outra colocação como seu amigo:
-Taylor.
-Ah, pois bem, Taylor e Jack, sintam-se acolhidos. Se nos permitirem, nós estávamos falando sobre...
Abigail se põe a falar, mas tudo o que consigo ouvir são meus próprios pensamentos, os meus maiores anseios, a maior besteira que já fiz na vida. A professora põe-se a falar e falar, mas estou tão desesperada que tudo o que vejo é sua boca balançar, porém, sem voz alguma. Estou perdida demais na piscina de aflição que se forma dentro do meu estômago quando vi os dois entrando pela sala, os mesmos rostos que eu temi tanto reencontrar.
Engolindo em seco, cruza uma mão na outra, numa tentativa fracassada de buscar autossustento, mas estou nervosa demais para isso.
Ao olhar para o lado, Jack não retira os olhos de mim. Ele, ao contrário de mim, parece tão contente como quando finalmente encontramos uma música que procurávamos por anos, e a música sou, e nem precisou de tanto tempo para me achar, apenas um novo dia, a merda de um novo dia que eu achei que uma hora iria me favorecer.
Em forma de provocação, ele tamborila os dedos no ar e me manda um sarcástico tchauzinho acompanhado de um sorriso psicodélico. Meu Deus, ele me causa muitas sensações ruins.
Taylor, ao perceber que Jack está com jogos psicológicos, apenas dá um quase imperceptível riso pelas narinas, recompõe-se e finge prestar atenção ao que Abigail fala.
Eu, mais do que nunca, sinto meu coração fibrilar, me encolho para mais perto da parede, me mantenho calada, mas só Deus sabe o quanto estou apavorada.
Jack e Taylor, como esquecer esses nomes? Eu não esqueci, e, pelo visto, eles também não me esqueceram desde quando livrei a cara de Kurt e peguei a culpa todinha para mim.
Olhando para frente em avulso, me pergunto mentalmente: "e agora?"