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São Paulo - Brasil - 2022
- Essa planilha precisava estar pronta hoje de manhã, Nair. Será que preciso ser tão rigoroso? - Esbravejou o rapaz para a senhora. As portas do elevador se abriram me dando a visão dos dois e ambos arregalaram seus olhos ao perceberem que eu ouvia a discussão. - Senhor Alvorada. Voltou cedo da reunião com os associados. Precisa se algo?
- Sim - olhei para a mulher que antes levava a bronca e dei um breve aceno para a mesma fazendo-a sorrir. - Pare de gritar com as pessoas. Ninguém, suporta alguém gritando.
- Sim, senhor. Me desculpe - ele ajeitou a camisa e o paletó, depois fez sinal para a mulher ir. - Faça a planilha, Nair. Por favor.
Ela apenas sorriu de maneira agradecida em minha direção e saiu às pressas para retornar seus afazeres enquanto eu tomava meu caminho até minha mesa, ouvindo os pés do rapaz virem logo atrás.
Iniciei o computador para poder trabalhar e comecei a organizar toda a papelada em cima da mesa, tendo ajuda do assistente desesperado.
- Senhor, você viu a entrevista com sua irmã? Ela será uma ótima vereadora se vencer. - Assenti para ele tentando demonstrar minha empolgação falsa, Nathaniel também sorriu. - Está tudo bem?
- Sim e deixe que termino essa bagunça - Ele endireitou o corpo quando tomei os papéis de sua mão. - Diga a senhora Souza que não será necessário criar a planilha de vendas, eu já tenho tudo o que preciso.
- Mas senhor... - ergui a mão o impedindo de falar e fiz o mesmo gesto que ele fizera para a mulher quando lhe expulsou de perto de nós. Ele entendeu o recado sem questionar, saindo da sala para não precisar de outra reprovação.
Pude finalmente me sentar na cadeira para respirar um pouco. Abri dois botões da gola da camisa, podendo acariciar o amuleto em meu peito e pensar com clareza em meu fracasso. Por sorte, havia conseguido o negócio com os associados, porém para meu azar, havia gasto boa parte da energia em Outro encanto enganoso.
Observei as pessoas trabalharem pelo vidro do escritório, mesmo que meus olhos não estivessem naquele tempo e tudo ao meu redor me desse vontade de desistir.
- Ranon. - Disse a garota após dar duas batidas na porta de vidro aberta.
- Zora.
- Pela sua cara, parece que era mais um amuleto falso. - Disse a morena me fazendo assentir. - Me desculpe.
- Ao menos você os traz até mim. Esses mercenários são pagos para me decepcionar sem pistas. - Me ergui da cadeira para caminhar até a janela. Observar a avenida movimentada era meu mantra, minha calmaria. - Procuramos em cada pedra, cada cidade, estado e país. Não é possível...
Senti o conforto me alcançar quando a mulher trouxe sua mão para tocar meu ombro, não lhe havia percebido se aproximar. Depois de tantos anos de treino, eu havia perdido muito de minha habilidade em percepção por uma busca impossível. Estava me destruindo gradualmente, preso no tempo. Ela pressionou meu ombro por um longo tempo e suspirou.
- Acharemos alguma coisa dela - tentou me confortar. - Eu te prometo.
Ela sorriu para mim, colocou as mãos atrás das costas e se direcionou a saída para também trabalhar. Por mais que nosso foco fosse em buscar algo que nós mesmos não conhecíamos, ainda sim tínhamos que seguir fingindo com aquela vida. Como se fôssemos iguais aos que nos cercavam. Estávamos fingindo há mais de mil anos, tanto tempo sem nenhuma pista certa.
Sentei-me na cadeira novamente para iniciar meu dia, abri os arquivos no computador e a página dos jornais para manter-me situado nos ocorridos ao redor do mundo.
"Em Varsóvia, capital da Polônia, a jovem Regina Jan, de apenas vinte e três anos, foi dada como desaparecida na noite desta quinta-feira de sua universidade. Após uma brincadeira de mau gosto dos colegas, a garota foi vista saindo da casa onde acontecia uma festa da fraternidade e desapareceu. Todos os estudantes presentes no local foram interrogados e três são vistos como suspeitos principais".
A reportagem principal dos sites era sobre Regina, parecia que os casos de 'bullying' haviam ganhado a Internet de uma forma peculiar. Todos espalhavam notícias como aquela em suas redes sociais de maneira tão rápida que acaba lotando as capas de jornais no dia seguinte, isso quando não ocorria no mesmo instante. Crianças e jovens como Regina, sofriam sempre com alguma pessoa que lhes deixassem extremamente para baixo e às vezes levava ao extremo de si. Torci por Regina ao ler sobre sua vida, para que ela fosse mais forte que todos.
Sempre que via, reportagens como aquela, me recordava de épocas onde as pessoas não sabiam da existência daquele termo. Épocas tão antigas que uma ofensa poderia destruir uma nação ou criar uma alma ruim e vingativa, mas as formas de colocar alguém para baixo eram piores. Pessoas eram chicotadas nas costas para se lembrarem que eram apenas escravas dos reis, homens entregando suas vidas por um trono que jamais seria deles ou um nome melhor que sabiam nunca poder ter. Porém, naqueles dias conturbados, tudo o que tinham era esperança para se agarrar e era isso que eles faziam.
Fechei os olhos ao me lembrar de uma história, me forcei a não ir tão longe ao imaginá-la e nem em tentar igualar toda sua dor naquela situação. Por mais que o mundo tivesse evoluído, ainda tinham pessoas terríveis e Regina precisava ser mais forte para não sucumbir ao desespero ou ao ódio.
Fechei a janela da reportagem dispensando aqueles pensamentos e dei início a criação do próximo de meu projeto. Tinha que concentrar toda minha energia naquilo, pois me faria esquecer mais rápido.
Meus olhos pesaram por um momento e o amuleto em meu peito esquentou em contato com minha pele, fazendo-me arrancá-lo pela corrente o mais rápido que pude.
- Ranon, você leu a reportagem na Polônia? - Tornou Zora para dentro da sala, olhei-a de maneira confusa, pois nunca havia visto seus olhos brilharem daquela forma. Lembrei da história de Regina Jan e assenti para ela.
Zora pegou o controle em cima de minha mesa, apontou para o aparelho televisor e o ligou com um clique. Buscou rapidamente um canal de notícias que falasse alguma informação precisa e quando o encontrou, apontou para o objeto.
- Preste bem atenção - ela disse fazendo-me encarar a tela.
- Nessa última madrugada, Regina foi vista por dois estudantes da universidade, após voltarem por essa estrada. Em seus depoimentos, disseram que a garota estava no meio da estrada parecendo desnorteada e suja de sangue, mas que só entenderam a cena depois que já haviam passado do local. Quando voltaram, não encontraram mais ninguém na estrada além das velas e de alguns símbolos desenhados no chão com o que parece ser o sangue da própria garota. Os pais de Regina se preocuparam com o fato de sua filha estar sendo usada por alguma seita, mas não se tem mais informações sobre o caso.
Enquanto a repórter dava sua notícia, a câmera mostrava o local onde a suposta Regina havia sido vista. Zora parou a imagem quando ele focou no desenho do chão, pois uma enorme serpente engolindo sua própria cauda e os dois pontos como olhos bem em seu meio.
Corri meus olhos para o formato do pingente em minha mesa. A peça que antes carregava no pescoço, tinha o mesmo desenho da tela da televisão. A diferença era que a minha estava pela metade e a anos eu procurava seu outro pedaço, mas estava desenhado corretamente no chão daquela encruzilhada. Uma encruzilhada de fato.
Eu já havia tentado aquele tipo de magia e nunca consegui nada, mas um lampejo me veio ao pensar que diferente de mim, Regina tinha um corpo para entregar e era aquela a peça que faltava do meu colar. Ela precisaria de parte da ossada do morto que queria trazer, pois sem isso nunca conseguiria. Mas se a garota sabia aquela simbologia, era claro que havia trazido algo à tona e esse algo seria impossível, pois eu mesmo nunca consegui encontrar seus ossos.
- Talvez seja uma coincidência. - Falei e Zora assentiu.
Estávamos há tantos anos procurando aquilo que poderia ser apenas algo em nossa cabeça. Ela apontou para minha camisa suja de vermelho e eu abri o botão para observar melhor. Toquei a queimadura que o colar havia feito naquela região e nesse instante um vento forte abriu abruptamente a janela para espalhar toda a papelada da sala, erguer os cabelos ondulados da minha companheira e arrepiar cada parte de meu corpo.
Não tive a menor dúvida quando a voz invadiu minha cabeça.
"É pra hoje querida?... Que linguagem... estranha."
Havia um misto na voz. Era uma garota falando sem dúvidas, mas por trás era possível ouvir a outra mais madura repetir as palavras ao mesmo tempo, e tanto eu quanto Zora conhecíamos ela. Olhamos um para o outro naquele instante e chegamos a conclusão:
- Cloe.