Capítulo 5 O encontro obscuro

Ordem da magia - 515 D.C

A última chibatada quase conseguiu arrancar um grito da minha garganta. Era possível sentir o líquido quente escorrer pelas minhas costas enquanto o sangue saía da minha boca em meio às tosses roucas que deixei escapar. A brisa fria acariciava as aberturas que ficaram cravadas em minha pele e mesmo que eu não pudesse vê-las, sabia que cada uma me seguiria pelo resto da vida.

Depois de um tempo, você se acostuma com cada marca.

Desde meus dez anos eu apanhava daquela mesma maneira, todas as vezes que impedia algum guarda de machucar qualquer outro dos meus ou quando deixava uma piada escapar na frente de homens temperamentais. O açoite era a forma de me dizer que eu havia errado e que era tão insignificante ao ponto de me marcarem para que sempre recordasse das audácias.

Ainda sim, eu preferi sentir tudo durante anos para que ninguém machucasse Zora, Élio ou qualquer um que cuidasse de mim.

Meu corpo tremia, era a adrenalina de sentir tantas vezes as cordas me acertarem sem que eu pudesse me mover.

Os escravos eram amarrados no pilar de madeira para que não caíssem quando estivesse no meio do açoite, no entanto eu e os guardas já estávamos tão acostumados com aquilo que eles já nem me levavam mais para a praça e eu simplesmente me ajoelhava para sentir as quarenta e oito chibatadas.

Daquela vez, me pareceram bem mais.

- Cloe! - A voz da garota veio até mim quando meus sentidos começaram a se tornar claros. Os guardas já não estavam mais ali e as pessoas me observavam com seus costumeiros olhos de incredulidade.

Ela se ajoelhou no chão para segurar meu rosto e limpar o suor da minha testa. Olhei fundo nos orbes escuros de Zora para poder ter certeza que não estava alucinando e a expressão de culpa dela me levaram a tentar sorrir.

- Ele tinha a mão pesada. - Brinquei e a mulher revirou seus olhos para mim. Suas mãos me auxiliaram a erguer do chão sujo de respingos do meu próprio sangue, enquanto ela tinha cuidado para não tocar nas feridas expostas.

- Você deveria parar de enfrentá-los. - A voz da mulher era autoritária e eu apenas dei de ombros da maneira mais dolorosa que consegui.

- Me desculpe, Zuh. - A voz infantil veio logo que consegui me manter em pé. Eu me apoiei no ombro do pequeno ainda tentando sorrir.

- Segure o cesto firme da próxima vez. Eles são terríveis.

- Élio, vá para o estábulo. Vou ajudar, Zuh com os outros.

Zora sempre autoritária fez o menino correr para se esconder dos guardas. Exatamente como fazia quando eu era pequeno e não queria que os guardas me forçassem a trabalhar. Pensar que aquelas chicotadas poderiam estar na criança e tê-lo matado me reconfortou, pois nenhum dos seguidores da ordem tinha piedade ou dó de qualquer escravo.

Sim, teriam o matado.

- Ele derrubou as maçãs - contei à mulher durante nossa caminhada. - Eu segurei o chicote no ar antes que o acertassem.

- Obrigada.

Sussurrou, ainda que sua voz fosse ríspida eu tinha certeza que era um alívio para ela saber que o menino não havia pago por um deslize tão pequeno.

Varsóvia - Polônia - 2022

- Regina - falei com um pouco de autoridade, me recordando da forma como Zora se dirigia a mim quando estava brava. - Você está aí?

Eu tentava trazer a consciência da garota de volta, pois não sabia qual forma de doação ela havia feito e implorava para que não tivesse destruído a própria alma. Porém, havia ficado mais de meia hora perambulando pelo quarto da jovem, falando comigo mesma sem obter uma resposta.

- Que ela só esteja me ignorando. - Sentei-me ao chão com as pernas cruzadas segurando um pequeno objeto intitulado estilete em minha mão e um medo me percorrendo cada fibra do corpo emprestado ao comparar os cortes em meu pulso com aquele objeto. - Se doer muito é meu, se doer pouco é dela.

Falei aos sussurros repetidamente. Respirei um pouco apertando o objeto afiado entre meus dedos me motivando a ir em frente. Observei o pulso parcialmente ferido e fechei os olhos após direcionar a lâmina em minha pele. Sem me dar tempo de desistir, enterrei na carne da menina sentindo a dor absurda me percorrer por completo.

O grito escapou dos meus lábios quando o estilete perfurou as sete camadas de pele e o sangue jovem começou a transbordar em volta do objeto. Cobri os olhos com ambas as mãos e balancei o corpo desesperadamente.

- É meu, é meu, é meu.

- Regina! - A voz da mãe da garota gritou ao lado de fora do quarto e eu olhei assustada para a lâmina ainda cravada em minha nova pele. - Minha filha está tudo bem?

Dei a respirada mais longa que poderia, ao me lembrar que era o que fazia quando era preciso ter coragem para me curar das chibatadas. Juntei toda a energia necessária para segurar o estilete e arrancá-lo da ferida, soltando outro grito exasperado.

- Regina, abra essa porta! - Gritou a mulher e eu olhei ao meu redor em busca de algo que pudesse estancar o sangramento. - Haskel! Venha aqui!

Peguei um tecido em cima de um amontoado de roupas e enrolei no pulso o mais forte que consegui. Não iria adiantar muita coisa, mas poderia me dar algum tempo para que eu despistar os pais da garota. Abri a porta do quarto para encontrar a mãe de Regina e sorrir de maneira brincalhona.

- Está tudo bem, eu só cai nessa bagunça. - Falei, mantive o braço cortado escondido para não deixá-las desesperada. A mulher tinha um olhar assustado e desconfiado ao mesmo tempo. - Eu preciso me organizar para não ocorrer uma vez mais.

Ela nada falou, tinha uma ruga na testa e os olhos semicerrados. Vasculhei brevemente a cabeça de minha casca para tentar dizer algo que pudesse fazer a mãe acreditar, porém tudo o que veio para mim, fora a ordem do meu cérebro para que minha mão erguesse e mostrasse o polegar a Ewa, mantendo o sorriso.

- Primeiro essa garota some, agora fica gritando feito louca - resmungou a mulher para o homem que subiu as escada, ela se afastou de mim para voltar aos seus afazeres.

- Seja paciente querida, não sabemos o que ela passou. - Disse o pai de Regina.

Fechei a porta deixando-os debaterem sobre a própria filha. Se eles soubessem o que ela passava todos os dias, seriam pais melhores. Talvez aquele fosse o motivo de ter me levado ao seu corpo, Regina tinha intenção de se matar, mas não queria desperdiçar algo. O que poderia ser?

Olhei para o sangue que já tinha manchado todo o tecido do corpo da jovem, só então percebi que eu estava sentindo o peso daquela perda. Se fosse uma simples possessão espiritual, eu não estaria daquela forma. Regina realmente havia trocado de lugar comigo, havia se matado.

Vi luzes invadirem o quarto pela janela e corri em sua direção para poder saber o que seria aquele brilho intenso. Havia outra criatura metálica no andar de baixo que cuspiu duas figuras muito familiares. Eu não sabia ao certo se era uma alucinação o que via ou se realmente eram os donos dos nomes que se passaram dentro de minha cabeça. Se fosse, um deles estava lá para me mandar de volta ao mundo dos mortos.

Corri meio cambaleante para a porta do quarto, abrindo-a novamente e seguindo o corredor com cerca até às escadas. A mãe de Regina já estava na porta para abri-la quando cheguei ao primeiro andar e tudo o que consegui fazer foi gritar.

- Não! - Mas já era tarde.

Os olhos azuis me penetraram de maneira assustada com a porta escancarada e algo me dizia que ele já sabia quem eu era. O brilho vermelho surgiu no canto superior de seu olho direito, logo em suas costas estava a mulher alta de pele bronze e cabelos com tranças grossas. Ambos juntos foi o que me alarmou.

O corpo de Regina não aguentou a perda de sangue e minhas pernas falharam, tudo o que consegui fazer antes de desmaiar foi dizer seu nome.

- Ranon.

Ouvi a voz de Ewa gritar e senti meu corpo ser embalado por alguém, mas a escuridão veio rápido e me levou dali.

                         

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