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Coloco a testa na porta antes de pensar em tocar a campainha. São exatas onze horas da noite, um horário fora do permitido pelo meu pai mesmo que tenha a permissão da minha mãe. Os últimos momentos são preciosos, foi o que ela disse.
Toco a campainha desejando que seja a minha mãe a abrir a porta, mas ao invés disso dou de cara com a seriedade desmedida de Franco Untier.
- Onde estavas metido? - abre passagem para mim. Respiro fundo antes de entrar sabendo muito bem o que vem depois.
- Fui jogar basquete com os meus colegas de turma, um jogo entre turmas na verdade - tento explicar mesmo sabendo que não adianta, é inútil explicar alguma coisa para uma pessoas que já criou ideias absurdas na cabeça. - Avisei ontem e hoje de manhã.
- Nem devias estar nesse jogo, eles não são mais a tua equipa - cerro os punhos sem responder. Uma resposta fará com que a vontade de socar a cara dele aumente. - Contudo, tenho perfeita noção de que o jogo terminou uma da tarde - senta na poltrona dourada devagar e aponta para mim com a taça de vinho vazia. - Queres reformular a tua resposta?
- Nós vencemos o jogo e fomos celebrar. Avisei para a mãe que chegaria um pouco tarde...
Ele levanta em um pulo e naquele mesmo instante vejo o punho grande cerrado frente ao meu rosto. A agressividade parece estar a libertar as asas. Calo a boca e fico assim até ele voltar para o lugar em que estava.
- Não interessa o que a tua mãe diz, o homem da casa sou eu e é a mim que deves avisar quando vais chegar tarde, para além de que amanhã será a nossa viagem, não posso chegar tarde no aeroporto e de certeza não me darei a mordomia de atrasar porque alguém chega tarde em casa - arqueia uma sobrancelha, entrelaça os dedos, cruza as pernas e ergue uma sobrancelha. - Sou teu pai, portanto, enquanto estiveres debaixo do meu teto deves obedecer.
Aquele discurso não mudava por nada, sempre a mesma coisa. Ele estofa o peito e lembra que é meu pai cada vez que faço algo que vá contra o que ele pensa ser certo e olha que o que ele pensa ser certo nunca é, mas, infelizmente, ele tem toda a razão, o teto dele, as regras são dele.
- Sim, senhor - respondo antes de dar as costas para seguir até o meu quarto, mas sou interrompido por uma mão forte no meu braço.
- E fica avisado, se alguma menina aparecer grávida depois desta noite, será tua responsabilidade - concordo com um balançar de cabeça e sigo para o meu quarto.
Todos na minha família sabem que sou gay, quer dizer, todos menos o meu pai, então ele é o único que acha que me sinto atraído por mulheres e apesar de não dar importância para os comentários idiotas que ele faz sobre possíveis namoradas, o facto de ele desrespeitar todas as mulheres, incluindo a minha mãe, quem ele devia respeitar, afeta e muito.
- Vou dormir para não criar mais transtornos - dou as costas devagar ouvindo os resmungos baixos.
Entro no quarto sabendo bem como termina aquele roteiro. Ele vai para o quarto, faz um barulhão e aí começa a discussão. Sempre a mesma coisa.
Respiro fundo e procuro pelos headphones. Deito na cama contemplado o teto enquanto músicas dos Twenty One Pilots, Coldplay e OneRepublic entram com tudo meus ouvidos carregando a minha alma para um universo diferente onde tudo está a meu favor.
A porta do quarto abre e vejo a figura minúscula que alegra sempre os meus dias e torna as viagens mais suportáveis, com lágrimas nos olhos. Desligo a música somente para perceber o porquê dela estar assim.
- Anda cá.
Deixo os braços abertos esperando por ela, que corre no mesmo segundo e me abraça com força.
- O que é que foi? - aperto mais o abraço e dou um beijo na testa dela .
- Eles não param - as lágrimas desciam mais rápidos e os soluços já tomavam conta do quarto. - Eles não são um casal.
- Hey, fica aqui comigo, ok? - pergunto já abrindo espaço para ela na cama e ponho outros headphones na cabeça dela. - Dorme bem, monstrinho.
Cristine vira para o lado e canta Call me maybe baixinho. Ela ama a Carly Rae Jepsen e ama mexer nas minhas músicas, para evitar misturas, comprei um leitor para ela e fico com a playlist limpa.
Não acho que seja o problema, mas o jeito que discutem, o momento, as palavras que Franco usa, os gritos. Por vezes, nem a música consegue abafar os gritos e sair é a melhor opção.
" eu criei pessoas educadas, respeitadoras e livres. Deixa eles viverem..." " Para quê? Os meus filhos estão bem em casa, vivam aqui, sejam felizes aqui." " mas..." "mas nada, Calena, eles não têm liberdade estando debaixo do meu teto" " Então não te importas que eles sejam iguaizinhos ao Cairo". Um barulho forte de coisas a caírem soa mais alto do que devia e as minhas mãos começam a pinicar.
Por que somos sempre o maior motivo da discussão deles? Por que sou eu o maior problema da vida dela? Por que não posso simplesmente deixar de existir para ela estar bem?
- Tu não ajudas, tu só prejudicas - o reflexo no espelho diz em palavras bem audíveis. - Tu não ajudas...
E repetia vezes sem conta.
Sem perceber, já estou dançando por todo o quarto ao som de Counting Stars. A voz sai da minha boca, eu sei que sai, mas não consigo ouvir nem sei se as letras estão certas, apenas danço e canto do melhor jeito que sei, da melhor maneira que sei, sou um péssimo dançarino, mas não um cantor tão mau.
A minha voz é apenas uma voz. Nem tão grave e nem tão aguda, não tão imperfeita e longe da perfeita, mas a minha mãe sempre diz que é incrível, ela sempre diz que tudo o que preciso é saber dançar e terei os palcos de Irlanda nos meus pés. Ou teria se ficasse aqui.
Os meus pés ficam dormentes, os meus joelhos perdem a força sequer consigo ficar em pé, sequer consigo deixar o chão. Ele tem sido o meu melhor amigo de tantas vezes que me encolho aqui a procura de um mínimo refúgio, seguindo o ritmo melancólico de Stressed Out.
Volto para cama sem a menor vontade e dou as costas para uma Cristine encolhida na cama. Headphones são as coisas mais desconfortáveis na hora de dormir, mas são melhores para não ouvir a maior parte das coisas e focar na música, mesmo que por vezes seja impossível. Mesmo que por vezes tudo o que queremos é desaparecer sem olhar para trás, sem lembrar de nada.
Apenas desaparecer.