/0/5665/coverbig.jpg?v=8af5e17ca6c99957a96ecd5753e22cab)
Luca Ander
- Luca, por que não cresces e te tornas um homem? - Handel começa a gritar assim que fecha a porta, com um estrondo causado pela força exagerada que ele usou.
- De novo essa história? Pensei que já tinhas ultrapassado isso - deito no sofá fechando os olhos para ao menos perceber de onde vem tanta falsidade.
Há dias atrás não passava de um adolescente imaturo, que não pensa nas consequências dos próprios atos e que jamais será capaz de alcançar grandes feitos. Hoje, há umas horas atrás, era um menino bem comportado, que obedece as regras e estuda tudo perfeitamente, tem notas excelentíssimas e uma responsabilidade de invejar e agora preciso me tornar um homem maduro. É difícil entender quando a informação é contraditória.
- Levanta e olha para mim quando falo contigo, menino idiota e insolente - ele atira uma almofada contra mim e suspiro sentando.
A figura de filho perfeito não passa de uma farsa e pensar que uma pessoa pode encaixar em tais padrões de perfeição é doentio.
- Handel, eu já disse que não preciso ouvir o que tens para dizer, o retrato que vocês dois pintaram de mim já está perfeito - sorri deixando evidente o escárnio.
- É pai para ti, já disse várias vezes que é pai - grita levantando a mão para mim e foi assim que percebi que faltava muito pouco para apanhar uma surra das grandes.
O meu pai aproveita todas as oportunidades que pode para transformar o momento em humilhação tudo porque não quero ser ele. E a minha mãe concorda com cada estupidez porque foi criada debaixo de um regime em que mulheres não têm voz. Se ela soubesse que está a perder o único filho por causa disso.
- Luca Ander, queres mesmo provocar, não queres? Apanhar umas pode mudar isso - ele coloca as mãos na cintura e abana o cinto.
- Estás à vontade, estarei no meu quarto ansioso para receber uma surra - dou as costas e subo as escadas indo para o meu quarto. Ele não sairia da sala agora e nem entraria no meu quarto para dar mais um show. Disso tenho a certeza.
Não tenho medo dele, não mais. Passei a maior parte da minha vida oprimido e por isso perdi tanta coisa, estou decidido a não deixar ele me afetar, a participar de cada briguinha fútil que ele queira começar. Libertação, é assim que se diz.
- Luca Ander, enquanto estiveres sob o meu teto, é a minha música que danças...
- A tua música é muito ruim de se ouvir, ensurdece - grito de volta como resposta.
- Luca...
Desço as escadas mais rápido do que subi e prendo os meus olhos nos dele.
- Luca o quê? Eu não fui malcriado em nenhum momento, sorri abertamente para todos, sorri até quando fizeram aquele showzinho insuportável para ver qual filho é melhor - odeio sair com eles por aquilo. Tem sempre alguma coisa imaginária para me tornar menos apreciável. . - Fui educado, e se por alguma razão, por miníma que seja, tenha feito algo errado foi tudo porque vocês mereceram.
- Nós merecemos ser desrespeitados por darmos a tua vida? Merecemos ser desrespeitados por alimentar-te? - a minha mãe toma a frente com os braços cruzados na direção do peito.
- Em nenhum momento pedi para ser vosso filho, e se a minha vida faz tanta diferença para vocês dois, porquê que não a levam? Para poderem atirar isso na minha cara todos os dias? Dispenso.
Dou as costas mais uma vez e respiro fundo. Não vou engolir tudo o que eles falam, não faz sentido magoar a minha cabeça e o meu coração frágil com palavras desnecessárias.
Entro no quarto e deito na minha cama com os olhos fixos no teto em que dediquei todo o meu tempo. Amo desenhar, mas não sou tão bom e amo cores, por isso ele é a representação perfeita de mim. O desenho em si é perfeito.
Uma obra de arte feita com todo o coração e que traz satisfação e conforto quando olho para ela. Fecho os olhos e tento dormir. Segundos depois volto a abrir os olhos e começo a jogar a bolinha saltitona contra o teto.
Ouço o meu celular tocar e estico o meu braço para o tirar de cima da banca e ver quem é o querido que está a ligar para mim. O nome da Markie está escrito em ponto grande na tela por cima de uma fotografia a preto e branco que fui obrigado a pôr no fundo de contato dela.
- Fala, Markie - respondi ao levar o celular para a orelha.
" Queres ir dar uma volta antes do jogo de amanhã?
Vamos para o Bob, tenho preguiça de ficar em casa."
- Não achas que ficar em casa até a hora do jogo é mais confortável? - pergunto mesmo sabendo a resposta. - Quero mesmo saber de onde veio essa vontade repentina de sair de casa mais cedo. Os teus pais não estão em casa?
" Não, eles não estão, tiveram um trabalho de última hora,
a Amália foi dispensada mais cedo, não quero incomodar
e nem ficar sozinha."
- Não vai dar, vou levar o Nahin para conhecer algumas partes da cidade e só depois vou para o jogo.
"Nahin? Quem é esse Nahin? Na escola não tem
ninguém com esse nome ou pelo menos ninguém que eu conheça."
- O filho dos novos vizinhos, prometi mostrar a cidade para ele e sossega, macaquinho, tu não conheces todo mundo.
"Luca, Luca, é um novo pretendente? E eu não conheço todo mundo
apenas porque não quero, seria um excesso de pessoas injustificável"
Ouço os risinhos de Markie e reviro os olhos com aquilo. Ela fica cismada sempre que conheço alguém novo, mesmo que não tenha nada com a pessoa.
- Não, ele é apenas um rapaz que eu conheci ontem a noite e disse que mostraria a cidade
" Podemos ver isso depois e o leva para o campo. Ele é bonito?"
- Não é uma má ideia, vou fazer isso e sim ele até que é bonito.
" Pronto. Basta achares bonito que eu faço o resto."
- Cala a boca, sua maluca. Agora tchau porque tenho mais coisa para fazer.
" Me trata com respeito, serzinho. E leva algo para comer
porque sei bem que o meu estômago estará vazio"
- Ainda nem chegou o dia, como é que sabes que terás fome? Dorme, Markie, dorme.
" Sim, sei disso porque a comida e eu somos amigas inseparáveis"
- Dinheiro não cai de árvores, anjinho - balanço a cabeça para os lados mesmo que ela não seja capaz de ver.
" Está bom, mas isso é um sim"
- Tchau, Markie
" Até depois, Luca, e não esquece de levar o Nahin"
A Markie é a única que sabe que sou gay, já vi pessoas na escola a serem maltratadas por este motivo, então ficar calado era uma vantagem. Um modo de não terminar as aulas com passe direto para as urgências.
Levanto da cama em um pulo com uma vontade imensa de sair de casa. Troco de roupa e desço as escadas calmamente deixando que o tênis faça o seu barulho inexistente de sempre.
- Para onde vais? - ouço a voz da minha mãe quando a minha mão já estava na maçaneta.
- Boa noite, mãe - cumprimentei mesmo sem esperar que ela cumprimente de volta. - Vou sair, preciso esvaziar a minha cabeça.
- O teu pai ordenou que não saÍsses de casa e para não conversares com os novos vizinhos. Eles não são uma boa influência - mais uma das quinhentas besteiras que o meu pai pensa vinte quatro sobre vinte quatro horas. Respiro fundo e fecho os olhos.
- Ele não manda nas pessoas com quem falo, a vida é minha, os pés são meus e a boca também é minha.
- Mas, quem sustenta essa tua vida somos nós, não são as pessoas da rua, por isso obedece, Luca - ela aparece perto da porta, no lugar em que eu estava, com uma colher de pau na mão e um semblante de poucos amigos.
- Obedeço quem tenta fazer de mim um fantoche vivo? Obedeço quem não aceita a metade que conhece de mim? Mas, o que é que vocês querem? Que eu seja dependente das vossas ideias? - pergunto sem conseguir entender. Toda a minha vida foi assim, obedecia acima de tudo, mas ouvir e não falar não me fez mais feliz.
- Luca, eu sou a tua mãe, mereço respeito - ela levanta a colher e tranca a cara.
- Merecias respeito - falei baixinho. - Agora só mereces que eu te trate como a esposa do homem que sustenta a casa onde moro. Tomaste partido de todas as decisões dele, mesmo que fossem as piores coisas que poderiam acontecer comigo, deixaste que eu ficasse sozinho quando eu mais precisei de ti. Não podes cobrar agora.
- Luca, vem cá...
Dou as costas e sigo para a casa sendo recebido pela brisa fresca da noite e pelo céu escuro ainda brilhante. Sento nos degraus do alpendre e fico ali a observar aquele que sempre sabia dos meus sentimentos, e que me conforta sempre que preciso. O céu.
Perdi muito tempo da minha infância a olhar para ele, era o meu suporte, o amparador das minhas lágrimas. Um amigo que sei sempre onde está e que me abraça calorosamente com o seu azul. Me dá rumo mesmo que não saiba para onde vou, como agora.