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CAPÍTULO 3
Sara tremia. Agarrava-se ao cinto, apertando-o ao ponto das juntas dos seus dedos ficarem brancas. Por sorte, sua casa não ficava muito distante do bar ou ela tinha certeza que entraria em pânico.
Mal respirava, os olhos fixos no para-brisa, sem de fato vê-lo. Naquele horário havia poucos carros transitando pelas ruas, o que tornava o caminho ainda mais curto e também contribuía para que sua mente entrasse em pânico, criando situações.
Sara não conhecia aquele homem. Ele a ajudou, duas vezes aliás, mas isso era tudo. Neill não disse uma única palavra após chamá-la de mentirosa e ela não sabia se isso era bom ou ruim, tê-lo ao seu lado, calado, por tanto tempo. O silêncio que os oprimia só era quebrado pelo barulho suave do ar-condicionado e pelo ruído da respiração dela.
Neill parecia ser uma boa pessoa. Tentou levá-la para o hospital quando desmaiou, parecia preocupado com seu bem-estar, ofereceu carona para casa e, ao que tudo indicava, a salvara de um possível sequestro ou coisa pior. Parecia um bom homem, mas ela não poderia afirmar isso com certeza tendo-o conhecido a menos de vinte e quatro horas.
Pessoas nem sempre são apenas boas ou ruins. Homens nem sempre são maus, nem sempre são monstros. Sara não sabia dizer se Anthony sempre fora um monstro, se já abusara de alguma outra criança, se já era um agressor de mulheres e crianças antes de surgir na vida da sua mãe. Ele foi bom nos primeiros anos. Foi um bom pai, no início. A mimava, chamava-a de princesinha, gostava de levá-la para o trabalho e não se importava de brincar de boneca com ela por horas seguidas, sem nunca reclamar. Ela o amou, talvez mais até que a sua própria mãe.
Agora ela sabe que há maldade no mundo. Sabe que os monstros aterrorizantes dos livros que lia quando pequena são reais. Eles existem e infelizmente na maioria das vezes os conhecemos de perto. Às vezes os chamamos por pai, tio, primo ou padrasto. São monstros da vida real que se camuflam e inserem-se no dia a dia de suas vítimas.
Eles roubam a sua alma e a sua vida, até que o que resta não passe de uma casca vazia, sem brilho, sem cor, apenas uma casca. Sara sabe como é sentir-se vazia por dentro, oca. Não tem sonhos ou esperanças de um futuro melhor para si mesma; o tempo de sonhar, de imaginar e ter esperanças ficou no passado, lá atrás, no dia em que foi violada pela primeira vez.
Se acordava pela manhã e encarava um dia por vez, se saía de casa e lutava todos os dias, procurando emprego ou bico que rendesse qualquer mixaria, não fazia por si mesma. Não tinha forças para lutar por si mesma. Havia dias em que acordava e rezava em pensamento por um dia em que não mais acordaria, um dia em que todo sofrimento iria embora e ela poderia finalmente ter paz. Mas ela seguia em frente, ignorava suas próprias dores e traumas, levantava cedo e saía à luta.
Encarava um bar lotado de homens, em sua maioria homens ignorantes e sujos por dentro, e não se importava. Tremia por dentro, temia qualquer aproximação ou toque, sentia o coração disparar apenas ao ouvir uma piadinha de conotação sexual, mas sempre erguia o queixo. Por dentro ruía, desmoronava e tentava a todo custo não permitir suas feridas e dores internas a desmotivarem.
Agora sabia que também havia pessoas boas no mundo. Conhecera algumas delas, poucas, mas significativas pessoas que fizeram a diferença na sua vida. Pessoas de bem que a ajuSaram, sem nem ao menos conhecê-la e por isso ela seria grata pelo resto da sua vida. Há poucos meses atrás ela não passava de uma mendiga.
Helena nunca sofreria como ela sofreu, disso tinha certeza, nem que fosse preciso dar a sua vida por isso. Essa era a sua única esperança, uma vida diferente, uma vida melhor, sem tristezas como tivera, para a sua filha.
Suspirou com alívio ao finalmente chegarem ao seu destino e apontou na direção do prédio de dez andares caindo aos pedaços em que morava. Não tinha vergonha de morar naquele muquifo. Tinha vergonha de muitas coisas na sua vida, principalmente do seu passado, mas não daquilo.
Aquele era o seu lugar no mundo. Pagava pelo pequeno apartamento com muito esforço, é claro que passava por alguns perrengues morando ali, mas ao final do dia, não importava o quão cansada ou infeliz estivesse, era grata por ter um lugar para onde voltar. Ter um teto sobre sua cabeça, onde criar sua filha com segurança e amor, isso não tinha preço.
Neill estacionou o carro no meio-fio, em frente ao prédio e Sara desafivelou o cinto rapidamente. Esticou a mão para abrir a porta e parou o movimento no ar, notando o quanto seria indelicado apenas dar as costas a alguém que só a ajuSara até ali.
Respirou fundo uma vez e virou-se para ele. Neill a observava, intrigado.
- O-obrigada - gaguejou e limpou a garganta rapidamente. Respirou fundo mais uma vez e repetiu, sentindo os nervos relaxando aos poucos ao notar que ele não faria nada para machucá-la. - Obrigada pela carona.
Não esperou por uma resposta e desceu do carro rapidamente. Quase fechava a porta quando sentiu falta de sua bolsa. Procurou-a sobre o banco, nervosa, querendo abrigar-se no seu refúgio logo. Neill inclinou-se um pouco, sem tirar o cinto e resgatou a bolsa dela do piso do veículo.
- Quando precisar - respondeu ele, esticando a bolsa para ela. Sara a pegou com a mão trêmula.
- Você é muito gentil - Neill estreitou os olhos com o elogio e os desviou para analisar o prédio dela. Voltou a fitá-la e sua expressão parecia ainda mais intrigada. Ela puxou as mangas do suéter, tentando esconder-se do olhar dele.
- Vá - ele disse. - Olho você daqui.
Ela pensou em dizer que aquilo não era necessário, que ele não precisava observá-la entrar no prédio, mas desistiu. Não o conhecia a fundo, mas já notara o quanto ele poderia ser teimoso.
Agradeceu baixinho mais uma vez e fechou a porta do carro. Seguiu a passos rápidos até a portaria desabitada e imunda, pensando no quanto aquela noite fora estranha, para dizer o mínimo. Abriu a porta e olhou para trás, por sobre o ombro.
Neill ainda a observava, sério. Acenou uma vez antes de ligar o carro. Sara respondeu ao aceno com um sorriso mínimo e entrou no prédio, fechando a porta atrás de si, sem olhar para trás. Esperou ouvir quando ele fosse embora, enquanto subia as escadas, mas não ouviu nada.
Subiu um degrau por vez, daquela vez sem amaldiçoar o elevador que não funcionava e aguçou os ouvidos. Ao chegar ao quinto andar, retirou a chave da bolsa e abriu a porta. Ignorou o cheiro de mofo que provinha das paredes, o barulho do encanamento que invadia o apartamento e seguiu até a janela que dava vista para a rua.
Neill ainda estava lá. Fitava as janelas como se a procurasse. No momento que ela colocou a cabeça na janela, ele a olhou. Sara não havia ligado as luzes e ficou impressionada com a percepção daquele homem.
Ele parecia querer uma confirmação de que chegara ao seu apartamento. Sara não conseguiu reprimir o sorriso ao sentir-se protegida daquela forma. Quando acenou para ele, daquela vez o sorriso que tinha nos lábios era sincero, não forçado.
Neill a fitou por mais alguns segundos e, pouco tempo depois, deu partida no carro e foi embora.
Sara ainda sorria quando voltou a fechar a janela. Ainda sorria quando abriu a porta do único quarto do apartamento e encontrou Helena e Martina dormindo na sua cama de solteiro.
O quarto não possuía muitos móveis além da cama e um pequeno criado mudo, onde ela guardava as roupinhas e coisinhas da bebê.
Sara chamou a mais velha baixinho, sem querer acordar a menina. Martina acordou aos poucos, olhando em volta como se estivesse se perguntando onde estava.
- Oi - Sara sussurrou. - Acabei de chegar.
- Que horas são? - Martina tinha a voz rouca de sono e bocejou, cobrindo a boca com uma das mãos. Ajeitou o bebê na cama e afastou-se vagarosamente, levantando-se em seguida.
- Quase cinco horas.
- Nossa, isso tudo? Não percebi quando dormi - disse calçando as sandálias e apontando para a porta do quarto.
Sara cobriu Helena com uma mantinha, beijando sua cabecinha e a cercou com almofadas. Andou silenciosamente até a porta e a fechou com cuidado, seguindo a amiga até a sala.
Murille sentou-se na única cadeira que havia na sala e observou Sara com os olhos cozidos e vermelhos pelo sono interrompido.
- Então, como foi? - perguntou reprimindo um bocejo.
- Consegui o emprego - anunciou sorrindo e Martina arregalou os olhos, cobrindo a boca com as mãos.
- Mas isso é ótimo! Não acredito que você conseguiu, Sara! Isso é maravilhoso! - exclamou baixinho, levantando-se para abraçar a amiga.
- Eu sei - Sara concordou, rindo. Há tempos que não recebia uma notícia boa assim e estava muito feliz.
- Vamos, sente-se aqui. Você deve estar cansada - Martina forçou-a a sentar-se na cadeira que ocupava anteriormente e parou na sua frente, fitando-a com entusiasmo. - Agora, conte tudo, quero saber todos os detalhes.
Sara ainda sorria e obedeceu. Narrou os acontecimentos da noite, um por um. Porém, deixou de fora a parte em que passou mal e recebeu ajuda de um estranho. Estranho esse que lhe dera carona para casa e que parecia se importar com ela.
Deixou de fora o fato de que havia conhecido alguém. Alguém que ela ainda não saberia dizer se gostava ou não, mas que insistia em povoar seus pensamentos.
Sara não queria que Martina fantasiasse demais, não queria que ela imaginasse coisas onde não haviam, pintando todo o ocorrido com um pincel multicor e brilhoso. Ela tendia a romantizar as coisas e Sara sabia que não era bem assim. Precisava, tinha a necessidade de encarar e viver a vida de frente, de maneira que ela não fugisse da realidade. Não queria imaginar coisas onde não haviam, já fazia aquilo sozinha, não precisava da ajuda de Martina para isso.
Preparou um café enquanto descrevia Steve, seu chefe, e todas as meninas do bar. Pintou todo um cenário, descreveu o bar, os clientes maltrapilhos e os engravatados, descreveu até as bebidas que eram vendidas ali e como o cheiro forte delas a deixava enjoada. Falou o quanto pôde, tentando relembrar detalhes insignificantes, fugindo do que realmente acontecera e daquele homem que, por mais que ela tentasse, não saía da sua cabeça.
Martina deu-se por satisfeita quando Sara começou a narrar até a fragilidade dos copos de procedência duvidosa.
- Obrigada por ter ficado de babá e desculpe se atrapalhei sua noite - abriu a porta enquanto Martina procurava por sua bolsa.
- Sabe que não me importo de ficar de babá e agora parece que é o que serei todas as noites - riu, mas quando viu que Sara parecia prestes a desculpar-se novamente, levantou uma das mãos, interrompendo-a. - Nem comece, já disse que não me importo. Não tenho nada para fazer e você sabe o quanto eu amo aquela pequena.
- Eu sei - Sara suspirou. - É que às vezes acho que estou abusando demais da sua amizade e...
- Você precisa entender uma coisa, Sara - Martina a interrompeu, aproximando-se e pegando suas mãos. - Você não está mais sozinha. Você precisa pagar pelo apartamento, para isso tem que trabalhar e Helena não pode ficar sozinha. Eu não trabalho, não tenho ocupações além da minha casa e marido e tenho todas as noites livres enquanto ele trabalha. Mas, mais que isso, mais do que não ter outras ocupações, eu quero ajudar você e amo a sua filha como se fosse minha. E também amo você - sorriu e revirou os olhos. - Não tanto quanto amo a sua filha, mas amo.
Sara riu, os olhos marejados. Beijou as mãos da amiga e a puxou para um abraço, fechando os olhos.
- Obrigada - sussurrou e Martina a abraçou apertado. Sara não precisava listar os motivos pelos quais era grata, Martina conhecia todos eles.
Despediram-se pouco tempo depois e Sara fechou a porta, trancando-a em seguida. Conferiu as janelas e seguiu até o banheiro. Enquanto sentia a água morna escorrer por suas costas, levando consigo todo seu cansaço, ela pensou em como era sortuda por ter Murille em sua vida.
Não demorou muito no banho. Já vestida, apagou a luz da cozinha, que também iluminava a sala de estar e seguiu até o quarto. Não acendeu a luz para não acordar a bebê.
Deitou-se ao seu lado com cuidado, sem fazer movimentos bruscos e, quando estava confortável, puxou a menina para o próprio peito. Helena, ao ser movimentada, abriu parcialmente os olhinhos azuis e fitou a mãe.
Sara ajeitou-a sobre o peito, alisando seus cabelinhos loiros e ralos. Sorriu para ela, que devolveu um meio sorriso sonolento e banguela e encostou a cabecinha em seu peito. Sara esperou para ter certeza de que dormia e sorriu quando a ouviu ressonar baixinho.
Sentiu o corpo finalmente relaxar. Aquele dia foi cheio de surpresas. Primeiro, conseguiu um emprego. Finalmente poderia respirar um pouco aliviada com a certeza de que no final do mês todas as contas seriam pagas.
E, então, havia ele. Neill.
Ainda não sabia definir como se sentia em relação a ele, sentia-se vulnerável e protegida ao mesmo tempo e isso apenas a deixava confusa.
Visualizou seu rosto em pensamento, seus traços fortes, a beleza quase impossível do seu rosto e o quanto ele ficava bonito naquele terno. Bocejou uma vez e fechou os olhos.
Perguntou-se inconscientemente se o veria de novo algum dia e antes que pudesse pensar se realmente desejava que aquilo acontecesse ou não, dormiu.