/0/5901/coverbig.jpg?v=1ebf584d64e97cb290e0a30af7af7415)
CAPÍTULO 4
Sara morou nas ruas durante a gravidez e precisou aprender como sobreviver sozinha. Passou fome e foi humilhada em portas de restaurantes, comia restos de comida que encontrava no lixo, mas nunca se rendeu, nunca abaixou a cabeça.
Finalmente conseguira fugir do inferno, qualquer coisa, qualquer situação ou realidade seria melhor que aquilo.
Descobriu que estava grávida e fugir daquele monstro nunca pareceu tão necessário como naquele momento. Não tinha mais esperanças para si. A última tentativa de fuga havia sido há poucos dias e o castigo fora tão pior que por um momento ela quase pensou em desistir.
Anthony tentara quebrar uma de suas pernas. Disse, rindo enquanto a chutava e pensava em como faria aquilo, que, se ela tentasse fugir novamente, seria ainda mais difícil sem o auxílio de uma das pernas.
Não conseguiu, entretanto, pensar em uma maneira de realizar o que queria. Seria preciso mais que sua força física para fazê-lo, não tinha mais o vigor de outrora, estava velho e ele se contentou em machucá-la como pudesse.
No dia seguinte, quase manca, com marcas roxas espalhadas pelo corpo, mas nunca no rosto, ela descobriu a gravidez. Não tinha conhecimentos, não recebeu instruções quando pequena e a educação sexual que lhe fora dada fora por via do padrasto, que a fazia de brinquedo, que se satisfazia com seu corpo, que a tomava e batia e xingava e repetia, todos os dias, conforme lhe desse vontade.
Victoria que a alertou sobre a possibilidade de uma gravidez e Sara a princípio não acreditou.
Sua mãe, em todos aqueles anos de abuso, poucas vezes lhe dirigiu a palavra. Se por ódio ou por vergonha, Sara não saberia dizer, e nunca tentou uma reaproximação. Victoria era sua mãe, ela ainda a amava, mas nunca a ajudou. Eram parceiras de cativeiro, compartilhavam o sangue e o algoz e era só.
Um filho não deixa de amar a mãe na primeira vez que é castigado. Ou na segunda. Ou na décima, nem quase dez anos depois. Sara a amava, embora não quisesse, embora tivesse tentado vezes sem conta, após implorar por socorro, por ajuda, por compaixão, ainda a amava.
Aquela foi a primeira vez que sua mãe ajudou. Disse que poderia distrair os seguranças que vigiavam a casa e os distraiu pelo tempo que Sara precisou para praticamente se arrastar, rangendo os dentes pela dor que sentia pelo corpo, até conseguir fugir do seu cativeiro.
Vagou sem rumo pelas ruas, as lágrimas escorrendo pelo rosto, o frio cortante que castigava a cidade, o corpo desprotegido, quase descoberto. Tentou traçar uma rota diferente das que seguiu das outras vezes, mas não conseguia pensar.
Subiu e desceu ruas por bairros desconhecidos, recebendo olhares desconfiados. Sabia que seria uma questão de tempo até que notassem sua ausência, precisava estar longe quando isso acontecesse.
Uma senhorinha já de idade em um Mustang antigo azul-bebê quase caindo aos pedaços parou no acostamento da avenida em que ela seguia, sem saber se seguia para o norte ou para sul. Aquela fora a primeira ajuda verdadeira, o primeiro ato de compaixão que Sara recebeu em toda sua vida.
A mulher percebeu o quanto ela estava machucada, percebeu sua determinação em seguir em frente ignorando a dor do próprio corpo e lhe estendeu a mão, sem perguntas, sem questionamentos, sem segundas ou terceiras intenções.
Ela se chamava Marta e, enquanto Sara manteve-se calada no banco do passageiro, tremendo de frio e de medo, ela falou. Contou sobre toda sua vida, sobre seu marido falecido, sobre seu único filho, os dois filhos de coração e suas esperanças de conhecer os netos antes de morrer. Talvez, quem sabe, ela dizia rindo, talvez conhecer os bisnetos.
Sara não relaxou, mesmo quando saíam da cidade, o mais longe que já chegara do seu cativeiro. A mulher conversou, sozinha, contando histórias e rindo pelas quatro horas que levaram para chegar em Dublin.
Sara não soube como agradecer. Nunca antes recebeu ajuda, nunca antes alguém a olhou com compaixão, nem o pai, nem a mãe, ou os seguranças que a cercavam, ou os médicos que a atendiam vez ou outra, quando as agressões de Anthony ultrapassavam os limites.
Fora uma desconhecida que lhe mostrara que o mundo poderia ser diferente daquilo que vivera até ali.
Uma desconhecida que abrira seus olhos, que lhe mostrara que existem, sim, pessoas boas no mundo. E que há esperanças. Não para ela, mas para a vida que carregava em seu ventre.
Engraçado, pensou, como alguém que se sente sem vida pode gerar uma.
A mulher a deixou no centro da cidade, um olhar de quem compreendia o que ela sentia, mas Sara duvidava muito disso. Disse, sem palavras, apenas com o olhar, que aquele não era o fim. Que ela tivesse fé, que lutasse, dias melhores viriam.
- Venha me visitar quando quiser - disse, entregando-lhe um cartãozinho, após insistir para que passasse alguns dias na sua casa, enquanto se recuperava de sua feridas, enquanto não tinha para onde ir. Mas Sara rejeitou a ajuda. - Você não me disse seu nome, menina, mas você sabe o meu. Me procure se precisar de ajuda. Estou aqui por você. Não desista. Nunca.
Era uma mulher, a ajudou, parecia uma boa pessoa, tinha olhos amorosos, mas ela não arriscaria mais. Não confiaria mais. Se sobrevivesse, se não fosse encontrada, aquela seria sua vida dali em diante.
Sobreviver. Sozinha. Não mais confiar.
Sara ainda mancava, um mês após ter a perna direita chutada e os vergões roxos da barra de ferro ainda estavam marcadas sobre sua pele.
Não fez exames ou consultas pré-natais porque tinha medo de ser encontrada. Sabia que Anthony jamais desistiria de encontrá-la e se daquela vez ele o fizesse, não teria mais escapatória. Ele não permitiria que conseguisse ir tão longe uma segunda vez. Ela preferia morrer a permitir que aquilo acontecesse.
No segundo mês nas ruas, Sara encontrou um pequeno posto de saúde em suas andanças e, após pensar muito, resolveu entrar. Perguntou, sem meios termos ou enrolação, o que seria preciso para que pudesse dar início ao pré-natal. Uma mocinha morena, de cabelos encaracolados, expressão caridosa e cansada respondeu, também sem meios termos.
- Além dos seus documentos, nada.
Ela não tinha pertences além de uma pequena bolsa, uma muda de roupa e as roupas do corpo. Não pensara em pegar nenhum documento, imaginou que aquilo não seria preciso. Esqueceu-se de que estava grávida e que aquele bebê algum dia nasceria.
Triste, ela abaixou os ombros e saiu do local, agradecendo baixinho pela informação. A mulher a chamou uma vez, mas ela seguiu em frente. Não tinha seus documentos consigo e tampouco poderia informar seu nome. Sabia que o bebê precisaria de remédios e de acompanhamento profissional, mas ela não poderia arriscar.
Ficariam bem, mãe e bebê, não importa o que acontecesse no dia seguinte ou no depois dele.
A mulher a chamou novamente e com algumas passadas a alcançou. Ela era bonita, parecia ter por volta dos trinta anos e parecia uma boa pessoa. Seu nome era Martina e ela compreendeu a situação daquela menina desconfiada e maltrapilha, sem nunca ter perguntado sobre seu passado.
Martina foi e é um anjo na vida de Sara. Ela sabia que a menina provavelmente estava fugindo, se de traficantes ou da própria família ela não saberia dizer, mas era óbvio que precisava de ajuda. Naquele dia, Sara não realizou os exames que precisava, mas voltou para as ruas, sua casa, com a bolsa cheia de remédios e vitaminas.
Todos os meses ela voltava e Martina a entregava novos remédios. Sara não confiava nela. Ela era mulher, era bondosa, mas também existem mulheres más no mundo, sua própria mãe era prova viva daquilo. Sara confiou nela, com o tempo, porque ela não parecia ser boa, ela era. Roubava remédios e a entregava todos os meses, sem questionamentos além de como ia a sua saúde e a do bebê.
Pouco antes de dar a luz, Martina conseguiu convencer Sara a fazer um ultrassom. Só as duas, uma salinha do postinho desabitada e duas clandestinas durante a noite. Martina tinha as chaves do lugar, ela que fechava e abria tudo todos os dias, então era fácil entrar ali sem levantar suspeitas.
Descobriram o sexo do bebê e choraram juntas. Uma menina. Martina sorria porque sempre desejou ter filhos, uma menina então, seria um sonho. Um dia ela seria mãe e a sua filha seria a sua réplica, sua xerox e com o bebê ela poria em prática todo o discurso feminista que aprendeu apenas depois de adulta, mas que deve ser ensinado as meninas quando ainda pequenas..
Sara chorava, triste. Uma menina, meu Deus! Como ela criaria uma menina nas ruas, refém dos perigos dos que não têm onde morar, refém do destino e com a terrível possibilidade de sofrer como ela sofreu?
Foi naquele dia, aos quase nove meses de gravidez, que começou a caçada por empregos ou bicos. Bateu de porta em porta, oferecendo faxinas, serviços de babá, qualquer coisa que precisassem, mas quem contrataria uma mulher, quase nem isso, ainda uma menina, suja dos pés a cabeça e prestes a dar a luz?
Não conseguiu nada, embora procurasse todos os dias. A única opção que sobrava era vender seu corpo, o que estava fora dos seus limites. Como venderia algo que não tem? Como seria capaz de me sujeitar novamente? Ser usada, incapaz de lutar, violada por estranhos por alguns trocados?
Amava a sua filha, mas não cogitou, nem por um segundo, nem em pensamento vender-se a quem quer ou por quanto fosse.
Martina, o anjo da guarda que o destino lhe enviara, mesmo que tardiamente, a ajudou. Ela não tinha muito, mas o que tinha tentou dividir com aquela menina. Sara não aceitou dinheiro, não aceitou nada sem que antes fizesse por merecer.
Trabalhou como diarista na casa de Martina apenas depois de muita insistência, mesmo que soubesse que a amiga não precisasse de uma diarista e que talvez não tivesse como ajudá-la daquela maneira por muito mais tempo.
Dormia em um colchãozinho fino na cozinha, sempre alerta, porque o marido de Martina era gentil, compreensivo e parecia ser uma boa pessoa, mas ainda assim era um homem. E, no reino dos animais e dos que são diariamente rebaixados, não há animal mais perigoso que esse.
Sara conseguira juntar dinheiro suficiente para alugar um pequeno quartinho ao lado do apartamento da amiga. Poucos dias depois, aos quase nove meses de gravidez, Helena veio ao mundo.
Em um apartamento que por pouco não poderia ser considerado um lar, Sara, Martina, seus poucos conhecimentos de medicina e a crença em um deus que Sara não mais acreditava, mas Martina sim, nasceu uma coisinha minúscula, pequena de tudo e loirinha como a mãe.
Sara chorou ao ver seu rostinho, lindo mesmo todo enrugadinho e sujo do sangue que ainda vertia por suas pernas, desenfreado. Martina se assustou com a quantidade de sangue. Mesmo ela, com seu pequeno conhecimento e o pouco que lera sobre obstetrícia nos últimos meses, sabia que aquilo não era normal.
Sara também sabia, mas não se importou. Tinha nos seus braços o seu mundo, a razão pela qual vivia, pela qual ainda respirava, ainda lutava por uma vida melhor, dias melhores, sem dores, sem traumas.
Sorriu ouvindo o chorinho alto e anasalado da sua pequena, sorriu mesmo sentindo dores, mesmo quando expeliu a placenta e um novo jorro de sangue escorreu por suas pernas.
- Precisamos ir para um hospital - Martina repetia, uma vez, duas, dez, mas Sara não lhe deu ouvidos.
Não entraria em um hospital. Não colocaria tudo a perder naquele momento. Não colocaria a vida da sua filha em perigo. Helena estava bem, respirava sem dificuldade, parecia não ter problemas de saúde e para ela isso era tudo que importava.
A negligência com sua própria saúde não lhe importou muito naquele momento, nem pelos dias que se seguiram em que quase, por muito pouco, morreu. A negligência com sua própria saúde talvez tenha lhe tirado as chances de ter outro filho, Martina lhe advertiu, mas ela não se importou com isso naquele momento e nem agora, vendo sua filha saudável aos sete meses, feliz e amada.
Não precisava de mais nada na vida além da certeza de que ela estaria bem. E lutaria, dia após dia, para dar-lhe apenas o melhor.