Capítulo 3 Guerra fria

Theo

Os dias que se seguiram foram solitários e de muita reflexão. Juliano não tentou nenhuma aproximação e quase não aparecia em casa, nas poucas vezes que o vi ele estava com uma aparência cansada e com grandes olheiras, mas não adiantava eu ficar me preocupando ou me culpando, afinal eu era a vítima daquela história. Pelo menos era o que eu achava até aquela tarde, quando minha irmã resolveu aparecer.

Bianca era minha sócia no Ateliê que montei com sua ajuda e de Juliano, onde eu e ela criamos modelos e peças de roupas únicas para boutiques independentes, além de lançar futuras tendências de moda para a comunidade LGBTQ+. No início tivemos muitas dificuldades no comércio Alemão, mas logo que nos familiarizamos com a língua, o lugar e o comércio, o ateliê decolou sendo sucesso não só aqui, mas também em outros países, inclusive do Brasil que foi de onde saímos sem perspectiva nenhuma.

Lembrar-me do Brasil fez meu coração se apertar em saudades, pois mesmo a sociedade sendo hipócrita e homofóbica, ainda foi o lugar onde nasci e cresci. Sair de São Paulo foi a decisão mais difícil da minha vida, mas eu precisava viver meu amor de forma livre, ser quem sou sem medo de morrer em cada esquina. Por isso eu pesquisei muito antes de decidir vir e montar esse negócio aqui e claro o trabalho de Juliano também contribuiu, já que ele havia recebido a proposta de trabalhar na filial alemã.

―Você tem mesmo certeza que ele está te traindo? ― ela me perguntou novamente depois de eu contar e mostrar tudo pra ela. Revirei os olhos e levantei da mesa buscando mais um pouco de café.

― Eu não brincaria com algo assim. Ele diz que não, mas como vou acreditar se tem tantos vídeos e fotos deles se divertindo?

― Mas eles não estão se beijando ou com algum contato mais íntimo. ― ela pontuou voltando a olhar as fotos e vídeos do tal Daniel.

― Me deixar em casa pra viajar e se divertir como um solteiro já é uma traição e...

― Mas você nunca quis acompanhá-lo Theo, sempre priorizou seu trabalho, sempre deu desculpas para não ir. Eu lembro bem das férias no Havaí que o Juliano planejou para te dar de aniversário e você negou. ― olhei para Bianca incrédulo, mas ainda sim ela continuou ― ele passou meses planejando hotel, voos, estadias, passeios, ele até alugou uma pequena ilha só pra vocês. Eu fiquei com tanta pena dele Theo, quando você disse que não ia, que o ateliê precisava de você, que não admitia ir em uma viagem paga totalmente por ele. Você o quebrou naquele dia e sabe disso.

Baixei meu olhar lembrando do quanto fui ingrato e cruel com o meu marido, sendo que nenhum dos infortúnios que eu estava passando eram desculpas para tamanha desfeita. Eu suspirei dando razão para minha irmã e admitindo que fui um verdadeiro monstro. Percebendo meu silêncio, minha irmã segurou em minha mão e voltou a falar com toda sua sabedoria.

― Vocês dois erraram muito Theo, erram em não se ouvir, em não se dar tempo, em não cederem, em não se respeitarem. Não foi só o Juliano que traiu. Você também o fez quando colocou seu trabalho e sua ambição acima do que vocês tem. Lembra de quando estávamos no colégio? Ninguém queria ser seu amigo porque descobriram que você gostava de meninos, mas o Juliano nunca quis saber nada disso. Quando você não aguentou o olhar de julgamento dos nossos pais e família, ele te defendeu e te trouxe para um país onde você pode gritar aos quatro cantos que ama e é casado com um homem. Eu não estou aqui para defender ninguém maninho, não estou aqui para dizer o que você está certo e ele errado, mas eu acho que está na hora de parar de ser imaturo e enfrentar seus problemas como o homem que você é. Converse com o Juliano, exponha suas mágoas e escute-o também, afinal eu tenho certeza que você não é o único magoado. Ainda existe muito amor aqui, falta só vocês decidirem vivê-lo.

Bianca terminou sua fala e me abraçou permitindo que eu chorasse em seu ombro e que deixasse a solidão que eu sentia livre para ir embora. Raramente eu e minha irmã tínhamos conversas profundas, mas ela sempre foi alguém que me apoiou em tudo, inclusive largou tudo para vir comigo. Aqui ela se estabeleceu, criou sua família e é muito feliz.

Suas palavras martelavam em minha cabeça e toda mágoa em meu peito se contorceu e apertou meu coração. Eu estava exausto, mas eu realmente deveria repensar minha relação com Juliano, pois mesmo depois de anos eu o amava feito louco, mas o orgulho era meu grande inimigo por isso eu limpei as lágrimas teimosas e a encarei.

― Eu quero sua felicidade meu irmão e as vezes precisamos perdoar para sermos felizes. ― ela disse enquanto acariciava meus cabelos ― Conversem, hum? Ou viagem, sei lá.

― Viajar? Com toda essa confusão? ― perguntei incrédulo ― Bianca eu não sei se você ouviu, mas eu estou em uma crise no relacionamento, não dá pra ficar viajando e fingindo que nada aconteceu.

― Mas eu não disse isso Theo. Eu acabei de ter uma ideia muito boa para você e o meu cunhado decidirem se e isso mesmo que vocês querem.

― Que ideia? ― perguntei curioso

― Que tal uma lua de mel?

― Você está louca irmã? ― me levantei atordoado com a ideia maluca de Bianca.

― Estou ajudando você a salvar seu casamento garoto. ― ela me olhou séria enquanto buscava suas coisas, caminhando para a porta. ― Juliano não é o único vilão aqui e você sabe disso. Ele tentou muito, se anulou muito e no final ele está saindo como alguém desonesto quando você mesmo provocou tudo. Eu não defendo traição, mas você está afirmando algo sem qualquer conversa, está o culpando porque sabe que tudo o que vocês estão passando agora também é culpa sua. ― Bianca se calou e respirou fundo andando de um lado para outro demonstrando nervosismo, mas nenhum pingo de arrependimento. Eu já chorava, pois sabia que ela estava certa em tudo. Era mais fácil jogar a culpa nele e fingir que eu fui um marido perfeito quando magoei Juliano por anos a fio. Talvez aquela ideia maluca não fosse tão ruim assim

🌙

Juliano

Antes

Morar em um país novo onde teremos que aprender uma língua nova e começar tudo do zero era algo que não estava nos meus planos. Eu sempre amei o Brasil e a vida que eu tinha lá, posso até dizer que sou patriota e amo tudo no meu país, menos a grande homofobia existente ali.

Mesmo sendo um país liberal, o Brasil ainda tem pensamentos muito preconceituosos relacionados ao envolvimento amoroso entre pessoas do mesmo gênero e isso estava matando o Theo.

Desde que o conheci, percebi que a nossa turma da escola o ignorava, outros alunos falavam dele pelas costas e chegaram até a bater nele por motivos desconhecidos por mim naquela época. Foi em um fim de tarde, quando eu estava saindo da escola, que acabei presenciando uma cena triste e que me dá náuseas até hoje.

Theo estava em uma sala com três garotos. Dois deles assistiam e filmavam enquanto o terceiro intimidava ele com palavras baixas, mas o que me deixou mais puto foi ver o garoto obrigando Theo a se ajoelhar enquanto ele baixava as calças.

Lembro que fui suspenso por quinze dias, mas consegui deixar o garoto com o braço e um dente quebrado. Os outros dois fugiram, mas quando a denúncia foi feita, com mais vídeos que os próprios idiotas deixaram para trás, os três foram expulsos do colégio.

E foi então que Theo me contou. Ele era gay.

Apenas por isso as pessoas não falavam consigo, não chegavam perto e isso me doeu o coração. Seus olhos estavam vermelhos, assim como a pontinha do seu nariz que não parava de escorrer. Seu rosto brilhava com as lágrimas e seu queixo tremelicou denunciando uma nova onda de choro.

Então eu o abracei.

O abracei forte, fazendo carinho em seu cabelo e deixando que suas lágrimas se perdessem na minha blusa que com o passar do tempo ficava molhada.

― Theo, eu jamais te julgaria. ― Seu corpo ainda tremia e ele ainda fungou baixinho. ― Eu jamais apontaria o dedo para você ou me afastaria de você.

― Eu não sabia Juliano, eu só tive medo... me desculpe.

― Eu entendo meu anjo... eu também já fui vítima de olhares acusadores, já ouvi palavras feias, mas eu procuro não deixar as pessoas pisarem em mim, busco força para não deixar que as pessoas tirem a minha paz. O amor não tem gênero Theo, o amor é amor, independente de quem você ame.

Seus olhos brilhantes pousaram sobre os meus e então eu senti de forma mais todas sensações boas que ele me causava. Eu não podia deixar para depois, então colei meus lábios nos seus. Ele se assustou e ofegou, mas logo me correspondeu aprofundando aquele selar e enroscando sua língua na minha. Não era um ato afoito ou desastrado, era um beijo doce, cheio de desejo, de um amor que ainda estava surgindo, mas que me tomaria rápido demais.

Depois daquele dia, Theo e eu não nos desgrudamos mais. Passamos a viver um romance bem escancarado, sempre sendo alvos de piadas e de advertências dos nossos professores, mas o amor era tão intenso que nada nem ninguém podia controlar a vontade dos nossos corpos.

Depois de anos de namoro, os pais de Theo, que viviam viajando e ignorando a existência dos filhos, descobriram que seu herdeiro tinha um relacionamento de longa data com outro homem e aquilo foi o fim, naquele dia eles quebraram o meu amor.

As palavras frias ditadas por eles, o jeito como a mão da sua mãe acertou o rosto do meu bebê foi a gota d'água para mim. Então eu tirei meu amor dali, apenas com a roupa do corpo e sua mochila com os materiais da faculdade.

Theo morou comigo e minha mãe por quase três anos e percebendo que ele novamente fracassou por ter um relacionamento homo afetivo, decidi aceitar uma proposta na empresa em que eu trabalhava. Viajamos para Alemanha em junho onde ele começou a abrir seu próprio negócio junto da irmã mais velha.

Durante meses ele se dedicou para o ateliê, chegando muito tarde e acordando muito cedo. Nosso relacionamento tinha dado uma esfriada e a cada problema Theo se fechava, se estressava e sempre sobrava para mim.

Bianca vendo nosso desgaste, me ajudou a planejar uma viagem ao Havaí. Comprei as passagens, fiz as reservas, aluguei uma pequena ilha por um dia e arrumei nossas malas, mas tudo o que eu menos esperava aconteceu naquele dia.

Ele olhou tudo e riu. Gargalhou até entender que aquilo tudo não era uma brincadeira, então ele sentiu raiva. Ficou vermelho com um bico enorme nos lábios antes de me machucar com suas palavras.

― Viajar? E o ateliê?

― Vai ficar com a Bibi. Nós organizamos tudo, vai ser quinze dias de férias no Havaí sem qualquer estresse ou compromisso a não ser o de estarmos juntinhos. ― Peguei sua mão e beijei enquanto ele me encarava.

― Eu não vou. ― ele disse tirando sua mão da minha.

― Como? ― Eu perguntei rezando para que eu tenha escutado errado.

― Juliano, você e a minha irmã estão loucos. O ateliê está em pleno funcionamento, ainda falta muito para que possamos ficar estáveis. Não vou deixar tudo para ir relaxar na praia.

― Poxa amor, você anda tão cansado. Eu fiz isso para que você ficasse mais feliz, mais tranquilo.

― Tranquilo? Como eu posso estar tranquilo se eu não tenho onde cair morto Juliano?

― Isso não tem nada a ver, Theo. Eu estou aqui por você, estamos construindo nossas coisas, nossos sonhos e...

― Não Juliano. Você está construindo as coisas, você está pagando por essa casa, por nossa comida, nossa vestimenta, nosso transporte e eu estou apenas trazendo mais e mais dívidas. É injusto que você não receba um olhar torto, uma palavra grosseira enquanto eu tenho que me virar para agradar todo mundo, para me transformar em alguém que eu detesto para realizar meu sonho.― Ele disse sem me dar a oportunidade de retrucar, mas a parte mais difícil para mim veio depois. ― Eu não quero essa viagem, não quero que você seja responsável pelas minhas despesas, ok? Me deixe em paz para trabalhar no meu negócio, por favor.

Eu não tive qualquer reação. Apenas fiquei o encarando, até que meus olhos não aguentavam mais segurar as lágrimas. Peguei meu casaco, a chave do carro e dei a tão sonhada paz para ele. Foi a primeira vez que saí de casa, eu só não esperava que isso se tornaria algo rotineiro no nosso casamento.

            
            

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