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No escuro e pequeno quarto iluminado somente pela fraca chama de uma vela usada, Gale acordou. Os pensamentos eram confusos em sua cabeça quando tentou abrir os olhos com dificuldade e se adequar à iluminação ambiente, ou à falta dela. Não se lembrava de muitas coisas, borrões e lampejos surgiam em sua mente e eram levados pela tempestade de suas memórias.
Pôs-se a sentar na cama que logo percebera não ser sua.
Não sentia tanta dor, mas percebeu que o punho esquerdo estava enfaixado e suas costelas também. O pé ainda latejava como se sentisse uma ferida inexistente. A cabeça doeu com o esforço.
- Ei, não se esforce tanto, garoto - disse a voz de alguém adentrando o quarto com outra vela que, dessa vez, acabara de ser acesa. Um indivíduo pálido, com os longos cabelos prateados e grandes orelhas em forma de seta se aproximou, a Luz da chama destacava seus olhos de cor dourada. Era Jörfann, um elfo da Lua.
Com a vitória dos primeiros sentinelas e suas espadas forjadas com a alma dos quatro filhos de Luxord, o Senhor da Luz partiu para um lugar desconhecido pelo mundo humano a fim de recuperar sua essência perdida, pois, para tal feito fora necessária quase toda a energia de vida do grande Pai das Estações. Após sua partida, os hud pacíficos que precisavam de um refúgio para viver foram acolhidos na terra de Cylch, gerando as várias espécies que habitavam o grande continente. Nas eras passadas, mais tipos e gêneros andavam sobre o solo, perdendo-se com o passar das Estações. Até aquele momento, o Santuário abrigava tanto protetores quanto aprendizes, havendo na história alguns casos de sentinelas não-humanos.
Gale conhecia pouco o Protetor Jörfann, tudo o que sabia era sobre o lugar de onde tinha vindo: O Vale da Lua. Um complexo de pedras lisas e do cinza mais escuro que era cortado por um rio de águas límpidas e fluídas capazes de curar qualquer ferida que pulse em um corpo ainda com vida. Os elfos de lá cultuavam o grande espelho que brilhava no alto dos céus. Suas peles eram cinzentas e os cabelos brancos, como o do filho da Luz à sua frente, que agora estava sentado examinando seus ferimentos com as mãos.
- Ai! - exclamou o garoto com dor.
- Dói quando encosto aqui? - perguntou o elfo enquanto tocava de forma displiscente suas costelas. - E aqui? - Apertou o pé direito do jovem de cabelos longos que, neste momento, mais pareciam um ninho de aves mal construído e sujo. Ele urrou de dor, arrancando do curandeiro uma breve risada.
- Mil perdões, estou há pelo menos umas sessenta voltas fazendo a mesma coisa e nunca perde a graça! - Então não conseguiu se segurar. Caiu na gargalhada até se contorcer.
Gale, impaciente, não estava com humor para piadas, principalmente as quais eram construídas em torno de seus ossos feridos.
Depois do aperto em seu pé, os fatos pareceram se encaixar melhor, conectando-se e resolvendo o terrível enigma do que havia ocorrido antes de acordar naquele lugar. Lembrou-se da Arena das Estrelas, o túnel onde fora acertado na cabeça, o beco da cidade, a luta contra o bárbaro e a chegada do Touro Armadurado, do quanto fora inútil ao correr para ajudar o acampamento onde morava.
Lembrou-se de Kyria.
- Quanto tempo eu passei desacordado? A Sentinela já se recuperou? Onde está Geralt? Por que é você quem cuida de mim? Qual a situação do Santuário? - o garoto falava tão rápido que qualquer outra pessoa não entenderia ao menos três palavras, mas por sua sorte, quem o tratava era um elfo da Lua muito bom em linguística.
Sua cabeça latejou novamente e ele gemeu, pousando as pontas de seus dedos sobre as laterais da face.
- Acalme-se, soldado. Você ainda não está bem o suficiente para bombardear a si mesmo com tantas questões - disse o elfo cinzento enquanto virava a vela usada para derramar a cera que derretia em seu topo.
- Me responda, por favor - suplicou o humano enquanto observava a cera da vela cair em cima do prato que a trouxera e se solidificar. - Preciso das respostas.
- E eu preciso de um trabalho novo. - O ser de cabelos prateados coçou a testa. - Será que seria um bom marinheiro?
- Acho que vou morrer - resmungou Gale enquanto o peito doía
- Confesso que é uma ideia tentadora, jovem. - Jörfann pousou a mão direita sobre o fino queixo. - Eu poderia usar o resto do seu remédio para fazer um chá de ervas. Seria muito mais interesante - disse enquanto expressava uma genuína satisfação em seu rosto.
- É dessa maneira que você trata os seus pacientes? - perguntou o aprendiz.
- Graças a Luxord que não possuo muitos. Pelo menos, não possuía até hoje. - Ele cuidava dos que haviam se ferido na batalha da invasão com ajuda de outros curandeiros, mas foi requisitado para tratar de Gale pessoalmente. Era o melhor naquele serviço em todo o Santuário da Luz e, até o dia anterior, mal haviam feridos por lá. - Pela Luz de Cylch, cuidar de humanos é pior do que ordenhar uma vaca voadora.
- Apenas me responda, senhor Jörfann - pediu o garoto.
O elfo o encarou com cautela.
- Você dormiu por algumas poucas horas. Descobrimos que fomos atacados por fanáticos ligados aos Senhores das Trevas, eles se auto-denominam "Devotos da Fumaça". Agora estamos trabalhando para reconstruir o que de essencial fora perdido e armando defesas para podermos ter um chance de lutar contra esses doidos de nome esquisito.
- O que? Eles planejam retornar?-perguntou Gale, incrédulo.
- Mas é lógico que eles irão voltar, afinal, não vieram para cá fazer uma viagem em família. Estão atrás de alguma coisa qual ainda não sabemos. Navegamos no completo breu enquanto os desgraçados tiverem essa vantagem.
- Mas... - O rapaz pensou na pergunta que iria fazer. - Onde estão Geralt e Lenora? - Precisava ver os amigos. Depois do que tinha vivido, tudo o que Gale desejava era a companhia deles.
- A menina está bem, uma das melhores recrutas que já tive. Agora ela foi até os estábulos para ajudar a reconstruir a cerca dos unicórnios. - O elfo começou a falar. - Já o outro, não mora mais em nossa terra. Machado nas costas. Sinto muito.
O aprendiz sentiu o coração parar de bater por um instante.
A vontade de chorar era grande. Poderia ter se despedido melhor dele, talvez até lutado ao seu lado. Entretanto, todas as suposições o deprimiam ainda mais ao pensar em centenas de maneiras para ter procedido perto do irmão de criação que evitariam a dor que sentia no momento.
- E a Sentinela do Outono?
Jörfann abaixou a cabeça, deixando os longos cabelos prateados esconderem os olhos e a pele cinzenta, suspirou forte com um ar de decepção e sinalizou negativamente.
Com um rápido tratamento de ervas misturado ao pouco que tinha das águas do Loskjs, o rio do Vale da Lua, o elfo cinzento permitiu que o jovem fosse ajudar os outros filhos da Luz com os preparativos contra o próximo ataque e reparar o que fosse preciso.
Ao sair da enfermaria, o garoto se deparou com um céu escuro e nuvens cor de ferro. Ainda não era noite, mas o Sol parecia ter sumido. Ao longe do Santuário podia se enxergar uma grande tempestade com trovões enlouquecidos que repetidamente atingiam o solo. Virando-se para o sul, um tornado devastava as plantações de Masnach, terra natal de Gale. No oeste, grandes massas de fumaça subiam aos céus escuros, aparentava ser um grande incêndio.
As Estações serviam para manter o equilíbrio da natureza e o controle das ondas espirituais, sendo cada uma cuidada por um filho de Luxord. O Sentinela e a espada respectiva da Estação ganhavam mais poder e influência durante tal período de tempo. Estavam no final do Outono e Samhain havia sido quebrada, o que desencadeou uma sequência de desastres naturais por toda Cylch. O Santuário da Luz ainda não sofrera nada por causa do feitiço em sua volta, pensou Gale, enquanto tentava encontrar um ponto no horizonte que não estivesse sendo devastado.
Ele seguiu pela via principal do Santuário significativamente danificada em alguns pontos até chegar à imagem do Senhor da Luz, que parecia o encarar. Os olhos de pedra penetravam profundamente seu espírito e, pela primeira vez, o garoto pôde ver a tristeza no rosto da figura.
O aprendiz atravessou até o oeste da cidade, onde foi parar na forja do palácio escondido pelas brumas. Lá encontrou Lenora carregando sacos de carvão de um lado para o outro, abastecendo o máximo de fornalhas possíveis.
A forja do Santuário da Luz se tratava de um grande complexo com cento e cinquenta repartições que ficavam aquecidas durante o ano inteiro, sendo apagadas somente no festival da esperança, no Inverno. Os ferreiros eram os responsáveis por fazer as armas, armaduras, escudos e quaisquer outras coisas que os filhos da Luz precisassem, tratando-se de verdadeiros mestres artesãos. Cada fornalha era capaz de abrigar dois mestres de uma vez, por isso, um par de bigornas ficava em frente a cada uma.
Com a batalha anterior e uma nova eminente, todos estavam sendo extremamente requisitados. Lâminas precisavam de um fio novo, espadas reforjadas, escudos desamassados e o que mais fosse possível em pouco tempo.
A expressão da garota era determinada, ela despejava toda a alma no serviço que executava, mas, no fundo de seus olhos, Gale podia enxergar a tristeza em seu interior.
Já deve saber sobre Geralt.
Quando o viu, largou os sacos de carvão e correu para abraçá-lo. A garota enterrou a cara suja e suada em seu peito enfaixado por baixo das vestes rasgadas e começou a chorar. Ele apenas retribuiu o gesto em silêncio. Não sabia como lidar com a situação.
Enquanto a acolhia em seus braços, O jovem percebeu que ela havia recolhido Dente de Dragão, que agora repousava na grande bainha em sua cintura. Não pôde deixar de esboçar um pequeno sorriso, afinal, Lenora resgatara não só ele, como também seu maior tesouro.
- Que droga, seu idiota - disse a menina de cabelo trançado enquanto se afastava. - Foi tão tudo tão rápido. Você caiu no chão e então... - Abaixou o rosto e tentou falar, mas não conseguia expelir as palavras para fora de sua garganta.
- Fiquei muito assustado também, posso garantir - respondeu Gale para tranquilizá-la, mas estava sendo sincero. O que sentiu enquanto lutava era a maior representação do puro medo que já vira, como se o temor se tornasse uma entidade física e estivesse presente em cada um dos homens mascarados.
Lenora o encarou com os olhos vermelhos, o garoto sabia que não estavam daquele jeito por conta da fumaça e do calor dentro da forja. Ela tirou do bolso da calça rasgada um colar que possuía uma insígnia em forma de escudo com uma estrela entalhada no centro.
Era o brasão da família Bellux. Pertencia a Geralt.
- Ele me mandou entregar a você antes de ser acolhido pelas estrelas - disse ela, estendendo o objeto para Gale, que o aceitou e ficou encarando pensativo para o escudo pequeno agora repousado em sua mão.
- Você estava com ele no momento da passagem? - Olhou para ela, preocupado. No fundo, não sabia se era capaz de assistir a vida se desprendendo lentamente do corpo de um amigo sem poder fazer nada.
- Sim, ele aguentou até umas duas horas atrás. Nem mesmo as águas de Jörfann foram capazes de ajudá-lo, então fiquei com ele até o fim. - Estava extremamente deprimida, porém Gale conhecia sua força.
- Perdeu mais alguém que conhecia? - O rapaz não tinha dimensão do estrago causado pela batalha, o Santuário era grande demais.
- Minhas companheiras de tenda, Sarah e Anne. Também estavam na Arena conosco.
De fato, Lenora falava muito sobre as duas amigas para ele, embora não chegasse a conhecer nenhuma delas.
- Sinto muito. - Tentou demonstrar empatia.
- Não sinta, se não fosse por você, também teria sido pega - respondeu a garota, que não conseguiu se mover na hora do ataque.
- Talvez poderia as ter salvo também.
- Não dá para salvar todos, Gale, você parece uma criança - exclamou ela, irritada.
O garoto tinha o péssimo hábito de não reconhecer seus feitos, sempre considerava que poderia ter feito mais e isso enfurecia a jovem aprendiz completamente. Não podia ter feito nada contra o ataque, ele lutou por sua vida e salvou muitos ali. Se não tivesse lhe puxado pela mão, Lenora estaria morta. Havia salvo vidas, então por que era tão difícil de aceitar?
Vindo de fora do complexo, Polliko entrou na forja gritando:
- Se não vão fazer nada, saiam daqui, seus imundos! - Era um anão. Sua cabeça era quase careca e achatada, contando com cabelos brancos apenas dos lados, quais estavam completamente ouriçados. O nariz era tão grande que parecia uma batata em cima do grande bigode, tão volumoso, que descia até perto do umbigo. - Estão me atrapalhando, humanos preguiçosos!
- Perdão, viemos para ajudar - respondeu o aprendiz.
- Não é o que estão fazendo parados aí. Acha que só porque é alto pode prejudicar o meu trabalho? Pense bem na sua resposta! - Polliko apontou o grande martelo de prata desgastado pelo uso.
- Voltando ao serviço, senhor mestre de forja! - Lenora se recompôs. Parecia determinada e forte novamente. Apanhou os sacos de carvão e saiu correndo para alimentar as fornalhas.
O anão olhou Gale da cabeça aos pés de olhos semicerrados e cuspiu no chão. Cruzou os braços e disse:
- Você é o Wintamer, não é mesmo? - perguntou enquanto desviava os olhos e se virava para sair andando.
- Como o senhor sabe o meu nome? - O rapaz se surpreendeu e permaneceu estático.
- Estão havendo muitos burburinhos pelo Santuário sobre um garoto idiota o suficiente para tentar abrir caminho pela Arena das Estrelas. O mais impressionante da história é que deu certo! - Polliko se virou para trás e o viu parado onde a conversa tivera início. - Mexa essa sua carcaça imprestável e vamos logo, garoto!
Ele não questionou. Saiu apressado para tentar acompanhar os passos da pequena criatura.
- Sabe, eu não consigo compreender o porquê diabos o núcleo da Arena não foi ativado. Em vez de vocês terem lutado para abrir caminho no túnel, deveriam estar agradecendo por não terem sido mandados direto para o estômago de um verme marinho! - O anão se referia ao mecanismo mágico da grande arena de luta que, por algum motivo, não despertou com a chegada dos mascarados que portavam armas ali dentro.
- Não podemos acreditar que foi um milagre do Senhor da Luz? - O jovem se abaixou um pouco para perguntar, mas não o suficiente para que o mestre de forja percebesse.
Ele riu.
- Nem você acredita nisso, garoto - disse com desdém, sem olhar para o menino enquanto passavam pelas fornalhas.
Gale tentou responder, mas Polliko estava certo. Os dois continuaram por um bom tempo andando sem trocarem mais palavras. O garoto suava com o calor de dentro da forja com todas as fornalhas soltando ar quente e fumaça ao mesmo tempo enquanto o anão andava despreocupado, arrancando pelos do nariz e julgando o trabalho dos outros ferreiros, sendo mais rigoroso com os humanos.
- Para onde estamos indo? - O aprendiz decidiu questionar para não se sentir tão desconfortável enquanto caminhava ao lado daquele estranho ser.
- Preciso consertar a armadura de Alastair. Francamente, aquele idiota não tem o mínimo de respeito com minhas criações. Era tão difícil não a danificar UMA VEZ? - Polliko parecia extremamente frustrado.
Pelo que conseguia se lembrar, Alastair era um dos quatro campeões do Santuário, o Sentinela do Inverno, responsável por carregar a espada Yule. O conhecia porque este era apenas alguns anos mais velho, então por algum tempo conviveram como aprendizes juntos.
Os dois chegaram até uma porta de madeira pequena em que o jovem aprendiz precisaria se abaixar se quisesse passar com os dizeres "NÃO ENTRE, SEU PORCO" entalhados com algo semelhante a um machado. Gale supôs que era a forja pessoal de Polliko. Ao entrar, ele se deparou com a grande sala do anão, com uma fornalha própria que era muito maior do que as que haviam do lado de fora e uma bigorna onde o peitoral branco o estava esperando.
Polliko pôs a viseira de proteção e passou um líquido viscoso pelas rachaduras da peça. Então jogou a peça completa dentro da fornalha acessa com um sorriso sádico no rosto.
- Não conte para ele que eu fiz isso. - Então riu e sentou-se em um banco ao lado de onde as chamas crepitavam e aqueciam a armadura. - Aquela espada é sua, não é?
- A Dente de Dragão? Sim - respondeu Gale, mesmo não tendo certeza se falavam da mesma arma.
- É uma bela arma, mesmo tendo um nome horrível. - Cruzou os braços e se aconchegou melhor no banco. - O nome precisa ser amedrontador aos inimigos, como "Contadora de Cadáveres". Esse é um bom nome!
- Não acho que um filho da Luz deveria possuir uma arma com esse nome - o garoto respondeu. Gostava muito do nome de sua espada.
- Bobagem! Pergunte a qualquer ferreiro decente e ele irá responder-lhe a mesma coisa. - Polliko alisava o bigode gigantesco com suas mãos desnecessariamente grandes e calejadas devido aos anos de serviço. - Acho que já deve estar bom - disse o anão enquanto se levantava e abria a fornalha para tirar o valioso item de seu interior.
Polliko ergueu o peitoral do Sentinela do Inverno com uma grande pinça e o depositou em cima da bigorna. Enquanto martelava o metal aquecido que o garoto não reconhecera, faíscas azuis eram geradas pelo contato de seu instrumento de artesão ao pedaço incandescente que era modelado novamente.
- Por que me trouxe até aqui, senhor? - perguntou o jovem, desconfortável.
O anão interrompeu o movimento que estava fazendo e disse:
- Porque quis olhar de perto o desgraçado que luta com a mão errada e dizem ter salvado tantas vidas usando uma espada mal feita. - Polliko tirou a viseira para encará-lo. - E também precisava de alguém que levasse esse pedaço velho de sarcandill até os estábulos. - Completou indiferente.
Gale ficou paralisado, não sabia o que responder. Passou alguns minutos em silêncio enquanto o mestre de forja terminava de reparar a peça de sarcandill, um metal raro do norte, proveniente da terra dos Ursos da Geada.
- Mas... - Tentara responder, porém não encontrou nada que lhe servisse. - Você tinha dito que era uma boa espada!
- Até parece! - Então riu descontroladamente. - Não possui nem um nome razoável. É um desperdício de ferro tariano!
O jovem encarou aquele anão com cautela. Não se sentia um herói como Polliko dizia, simplesmente fez o que era preciso e, a única diferença para os inúmeros outros filhos da Luz era, que ele havia sobrevivido. Queria ter salvado mais pessoas.
- Leve essa desgraça para Alastair nos estábulos. E diga que da próxima vez o faço mastigar as bolas de um montês - disse o anão jogando o peitoral pesado em cima do jovem machucado, que gemeu de dor e quase caiu no chão.
Gale se agachou e saiu pela porta da sala pessoal do mestre de forja. Os estábulos não ficavam longe dali, então achava que conseguiria aguentar o peso do item sem problemas. Lenora já havia ido embora.
Nos estábulos eram criados os grandes cavalos do Santuário da Luz e unicórnios, cujo líquido gerado pelo chifre era capaz de consertar rachaduras em qualquer metal. Provavelmente era o que Polliko havia usado na armadura e o tempo na fornalha fora apenas para reforçar o equipamento.
Fazia frio nas ruas da cidade, o que nunca acontecera no Santuário da Luz. O feitiço de proteção também fora afetado com a quebra do equilíbrio, logo os filhos da Luz ficariam a mercê da natureza enfurecida.
Alastair estava do lado de fora do lugar limpando as asas de um pégaso negro.
Ele possuía olhos prateados, a pele era branca como leite, chegando até a assustar pelo modo como suas veias ficavam expostas, e seus cabelos louros não eram cortados desde sua consagração como Sentinela há uns bons meses. O homem trajava roupas simples, como um camponês. O que o denunciava era Yule, que repousava na bainha em sua cintura.
- Ah, você tem algo para mim, não é mesmo? - disse o Sentinela, simpático.
- S-Sim, senhor - respondeu Gale, entregando o peitoral com dificuldades, mas sem demonstrar fraqueza ao homem em sua frente.
- Polliko não disse nada?
Lembrou-se da ameaça relacionada às bolas de um montês.
- Não.
- Tudo bem, então. Muito obrigado, senhor Wintamer.
Então voltou a escovar o animal, dando a deixa para o aprendiz se afastar.
O Sentinela estava visivelmente desconfortável, abalado. Por mais que tivesse de permanecer forte e confiante para os filhos da Luz devido a posição, estava apreensivo como todos os outros no Santuário e com medo do que estava por vir. O corte rápido na conversa com o jovem e o trabalho de cuidar de seu pégaso afastado dos outros, era a forma que encontrava de não desestabilizar seu povo e ser assombrado pelos próprios demônios sozinho. Afinal, era irmão de guerra de Kyria e nem estava próximo quando a Filha do Outono tombou, deveria doer tanto quanto a morte de Geralt em Gale.
Começou a nevar.
Durante o resto do dia, ou as próximas horas antes da escuridão completa, pois, não era possível enxergar o Sol, o garoto passara ajudando em diversas partes do Santuário da Luz: Transportou caixotes com armamentos, ajudou a remendar casas às pressas, até voltou para a forja e auxiliou Polliko na montagem de um escudo novo para Hêner.
Com a chegada da noite, todos os filhos da Luz se dirigiram para o Vale da Ascensão, ao norte do Monte da Alvorada, onde ocorriam a maioria dos festivais religiosos e os ritos funerários daqueles que habitam o Santuário. O Vale era aberto, com gigantescas estruturas de pedra súbita, ocupando um espaço grande o suficiente para que todos acompanhassem as cerimônias.
Quando os filhos da Luz morriam, eles eram deitados em camas de carvalho branco e queimados sobre piras individuais, incendiadas para que as suas cinzas ascendessem aos céus. De frente para o local onde as piras eram acesas, havia uma grande imagem benevolente de Luxord olhando para seus seguidores, para que se despedissem antes de se tornarem parte magia de Cylch.
Muitas vidas se perderam na batalha, sendo elas humanas, élficas ou de qualquer outra raça que habitasse o Santuário da Luz.
O Vale estava cheio. As piras já haviam sido montadas e cada corpo possuía a própria mortalha, que havia sido confeccionada pelos próprios defuntos ainda enquanto aprendizes. Eram estimulados a fazerem isso para serem queimados envoltos no que mais os simbolizasse.
Havia mortalhas lindas, inclusive a de Geralt que contava com o brasão de sua família em dourado e bordas azuis. Gale odiava a sua, pois, era péssimo em artesanato e não compactuava com a ideia de abraçar a morte tão facilmente que o resto do Santuário pregava.
Um sacerdote, especializado em oratória, tomou a palavra na frente dos filhos da Luz. O manto branco, com desenhos em dourado, arrastava-se pelo gramado, que estava morrendo devido ao novo clima do Vale da Ascensão, enquanto caminhava para perto da tocha que estava preparada especialmente para ele. Alguns protetores foram encarregados de acender as piras, então o sacerdote levava sua tocha até eles para dividir suas chamas com os homens que libertariam os corpos dos que caíram.
Cada indivíduo carregava uma vela próxima ao peito, estas eram acesas a partir de um Protetor que tomava parte das chamas da tocha do sacerdote para si e dividia com os outros. Passadas ao mais próximo, logo todas as velas estariam sendo consumidas pelo fogo da vida, iluminando todo o Vale, depois eram presas a lanternas flutuantes confeccionadas com seda de chibrum e jogadas ao vento, para que uma parte dos que permaneciam na terra acompanhasse as cinzas dos mortos até as estrelas.
Gale não prestava atenção ao discurso. Era muito entediante e sentimental. Enquanto filho da Luz, respeitava os sacerdotes, mas enquanto guerreiro os achava um estorvo. Realmente eram. Todos passavam os dias interferindo nas ações dos sentinelas, limitando-as, e apoiavam secretamente o antigo governo de Killiand, o ditador que usava o nome de Luxord para justificar seus atos de terror.
Não era momento para discursos falsos com palavras bonitas inventadas por pessoas que haviam se escondido desde o princípio do ataque. Gale escutara alguns filhos da Luz conversando durante o dia, esses desconfiavam que os sacerdotes tivessem algum tipo de relação com o mesmo, embora não pudessem afirmar nada concreto.
As palavras eram de mentira. Os corpos, não.
O jovem Gale havia sido transformado em um Protetor sem cerimônia, pois não havia tempo e nem adversário. Não concordava com a decisão, não era justo. Tornou-se um Protetor porque não foi o aprendiz que morrera. Não conquistara seu título, entretanto, ninguém se importava para suas convicções. Ele foi escolhido para acender as piras dos aprendizes mortos, e assim o fez com muita dificuldade e o choro preso na garganta. A última mortalha a queimar foi a do seu melhor amigo.
Enquanto as cinzas subiam aos céus escuros e sem estrelas, os elfos começaram a cantar seus lamentos passados através das gerações.
Todos soltaram suas lanternas aos céus, que iluminaram a noite fria e solitária dos filhos da Luz. O espírito de todos que estavam ali tinha sido destruído naquela manhã, assim como a espada do Outono. Uma parte de cada indivíduo ali presente era queimada junto aos que agora eram libertados do sofrimento de estar vivo a partir das chamas.
Então os três sentinelas surgiram completamente vestidos em suas armaduras e carregam as espadas junto ao corpo. Gaheris, o Sentinela do Verão, vinha na frente trazendo Kyria nos braços. Ela estava vestida em uma túnica branca como a nuvem mais pura, seu rosto estava pleno. O brilho das chamas espalhadas pelo Vale realçava ainda mais os cabelos alaranjados e o fino rosto.
Alastair vestia o peitoral de sarcandill branco, acompanhado pelo complemento da armadura de mesma cor e usava um elmo em forma de pardal, com asas entalhadas nas laterais, que não permitia enxergar seu rosto com clareza. Talvez essa fosse a intenção. Yule expelia ar frio de dentro da bainha, gerando um pouco de fumaça ao seu redor.
Gaheris deixava a capa longa arrastar-se enquanto Litha repousava na cintura. O aço lofidiano de sua armadura brilhava em tons dissonantes de vermelho, parecendo emanar magia de si. Seu rosto não demonstrava expressão alguma enquanto trazia a Sentinela do Outono através do Vale.
Então Gale viu Acalypha, a Sentinela da Primavera. Ela usava um vestido esmeralda por baixo da armadura leve, forjada com as rochas do Vale da Lua, e carregava Ostara, a espada da Primavera, em mãos. A arma era de lâmina muito fina e alongada, tendo a guarda composta por um arranjo de flores que deveriam ser encantadas. Seu rosto era delicado e solene, já seus cabelos, estavam compostos por uma trança que rodeava a cabeça e depois caía solto até o meio das costas. Suas mechas pareciam mudar de cor enquanto andava: Transitava do amarelo, para branco, então verde e assim recomeçava o ciclo.
Os três passaram entre todos os filhos da Luz amontoados no Vale que iam abrindo espaço e curvando-se conforme eles caminhavam e, o espírito que já estava ferido, agora fora estraçalhado com a cena. Muitos que ainda tentavam lutar contra as lágrimas, foram vencidos pelas mesmas, que começaram a cair.
Os anões que conheciam a canção se juntaram aos elfos com as vozes graves a cantar.
Gaheris pousou Kyria sobre uma pira maior no centro e se ajoelhou, apoiando-se com as mãos nas madeiras secas que, voluntariamente, incendiaram-se. O homem de pele escura voltou pelo caminho e parou ao lado de seus companheiros enquanto via o corpo da Sentinela do Outono queimar.
Suas cinzas voavam em espiral aos céus, brincando por entre as lanternas flutuantes quando uma rajada de vento as empurrou para longe. Seu trajeto foi redirecionado, agora voando por entre os ali presentes. O redemoinho de cinzas rodava em volta dos filhos da Luz, pairando por cima de suas cabeças em um padrão aleatório como se procurasse algo desesperadamente.
Até que o encontraram.
Os restos mortais da Sentinela e dos outros que foram cremados agora se encontravam em uma espiral concentrada que descia até o antebraço direito de Gale, alojando-se nele por completo em um esquema de linhas e curvas misteriosas. O processo era incrivelmente dolorido e ele não se aguentou em pé enquanto todos assistiam a cena maravilhados, confusos, horrorizados. As lanternas se reuniram em um grande círculo sob as cabeças deles ao passo em que o garoto urrava com a dor da pele sendo queimada pela substância do espírito de cada um que caíra naquele dia.
Ele se levantou, tonto e confuso, quando avistou o padrão que havia sido formado pelos restos de seus irmãos perdeu a cor. Era a marca da transformação, o que legitimava alguém como o portador de Samhain. A Lâmina do Outono. A espada de Kyria. Ao assistirem a cena, incrédulos, os sentinelas foram os primeiros a deitar os joelhos no chão úmido de lágrimas. Curvaram-se diante do jovem de cabelos bagunçados, sendo acompanhados por cada um que estava no Vale da Ascensão naquela noite.
Que todos saúdam o Filho do Outono.