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Todos os olhares eram direcionados a Gale, que comia sentado sozinho à mesa no pavilhão de refeições.
O lugar ficava ao norte da cidade e era composto por grandes mesas e bancos enfileirados onde os protetores tinham suas refeições noturnas. Os aprendizes jantavam no acampamento, o que tornava o ambiente um pouco hostil ao seu ver. Poucos ali conheciam o garoto que mal conseguira encostar na sopa enquanto vigiado pelas sombras dos céus negros que não abrigavam nenhuma Luz.
Os soldados da Legião de Tarian haviam desaparecido após a batalha, o que era extremamente suspeito. Como um exército e um animal de metal gigante poderiam sumir com tanta facilidade sem deixar rastros?
A realidade ainda era difícil de aceitar. A cabeça do rapaz, que já estava confusa aquele dia, agora tinha sido virada do avesso. Os sentinelas possuem uma longevidade maior, por isso, são escolhidos a cada duas gerações de protetores no Santuário da Luz. Gale não deveria chegar assistir a uma consagração de Sentinela em sua vida por pertencer à classe de aprendizes que veio logo após o início do serviço de Kyria, Gaheris e Acalypha.
A tradição já havia sido quebrada quando Alastair foi consagrado devido à morte do antigo Filho do Inverno, alguns até achavam que a espada Yule era amaldiçoada, pois seus portadores nunca viviam por muito tempo.
Se o garoto não esperava assistir alguém tornar-se um Sentinela de Luxord, também não possuía esperanças de que viesse a ser escolhido como um.
As cinzas se dirigindo até seu antebraço criaram uma cena assustadora para ele. A dor fora pior ainda. Era como se um pedaço da essência de cada um que caíra naquele dia se instaurasse em seu corpo, queimando-o. O jovem, que não gostava de ser alvo dos olhos das outras pessoas, ou pelo menos, pensava dessa forma, agora tinha o foco de todo o Santuário da Luz em seus ombros.
Talvez ir ao pavilhão de refeições fosse uma forma de tentar fugir da realidade e se forçar a acreditar ser um simples Protetor comum, embora a marca queimasse em seu antebraço.
- O que está fazendo aqui, garoto? - Jörfann parou ao seu lado com tigela vazia em mãos e o resto de sopa que escorria de sua boca.
- Comendo, não vê? - respondeu ele irritado enquanto se virou para encarar o elfo da Lua.
- Você mal enconstou nessa porcaria.
- E você parece ter gostado da porcaria - retrucou apontando para o queixo que pingava.
- Não importa! Não deveria estar aqui. - O elfo tentou retomar o assunto inicial.
- E por que?
- Agora você é a autoridade máxima do Santuário da Luz, seu imbecil! - exclamou o ser de cabelos prateados, que logo encolheu-se ao ver a reação dos protetores próximos que ouviram sua insolência. - Não pode comer aqui.
- Por que não posso comer junto aos outros?
- Eu lá vou saber, é a tradição!
Gale resmungou algumas palavras inaudíveis e ficou em silêncio enquanto olhava para o desenho em seu antebraço. O pavilhão estava silencioso, fazendo com que o garoto somente ouvisse o crepitar das chamas presentes nas tochas espalhadas e a grande fogueira, qual fora acesa no centro do local para tentar iluminar o ambiente nem que fosse um pouco, já que não se podia ver nada acima nos céus.
- Por Luxord, está tão escuro que parece a maldita Dynion! - queixou-se um Protetor ao longe.
O barulho de passos atrás do jovem o fez acordar do transe. Quando se virou, pôde ver um sacerdote de cabelos curtos e grisalhos, que se curvou e disse:
- Os sentinelas o aguardam no Palácio da Luz Anunciadora. - Seu nariz vermelho e em formato de batata incomodava Gale de certa forma, parecia inchado.
- O-O que!? Por qual motivo precisariam de mim?
- "Autoridade máxima do Santuário da Luz, imbecil" - Jörfann repetiu a própria frase, depois a completou: - Seu imbecil.
Enquanto o sacerdote olhava horrorizado para o hud de pele cinzenta, que não parecia se importar nem um pouco, o garoto se levantou e se dirigiu para fora do lugar, deixando os olhares curiosos e amedrontados dos que ainda jantavam para trás.
- Espere! - falou o elfo elevando um pouco a voz para que o garoto lhe escutasse. - Não vai querer tomar isso? - E apontou para sopa fria na mesa.
- Pode ficar - proferiu calmamente, não se importando com o destino da antiga refeição.
Ele sorriu e esperou que os protetores parassem de o encarar antes de engolir a sopa com voracidade.
O castelo de Luxord era rodeado por um rio vivo, que se abria para liberar passagem a alguém permitido. Somente sacerdotes e alguns protetores eram capazes de adentrá-lo. Os sentinelas o usavam para os conselhos, onde decidiam os próximos passos de ação do Santuário da Luz em busca da paz e de alianças por Cylch. Os invasores mascarados tentaram invadir a construção de rocha anciã adornada com bronze das Montanhas Tempestuosas, mas foram engolidos pelo rio. Alguns corpos ainda boiavam nele.
Por dentro, era tomado por um grande salão iluminado pela Luz de estrelas que percorriam o teto vivo, encantado para se assemelhar ao céu noturno. Em volta do trono vazio construído com o mais brilhante bronze, existiam outros quatro tronos menores para o conselho dos sentinelas produzidos com o mesmo material, porém, estes possuiam uma aparência mais envelhecida e desgastada. Havia também espaço para outras cadeiras quais surgiam do chão de rocha anciã para convidados em reuniões especiais. Compondo as paredes do castelo, as estátutas dos sentinelas passados cobriam o local e, em seus pés, ficavam pequenos altares para os filhos da Luz prestarem seus respeitos. As imagens retratavam seres das mais diversas formas, apresentando diversas raças de sentinelas ao longo do tempo, como anões, elfos e até mesmo goblins.
- O Sentinela do Outono se faz presente - disse o sacerdote, que saiu com passos apressados e amedrontados após fazer sua reverência.
O antigo trono esperava Gale ao lado de Acalypha, sentada plenamente e de frente para Gaheris e Alastair.
- Parece que decidiu se juntar a nós, senhor Wintamer - disse ela, esboçando um sorriso simpático. - Venha, estávamos o esperando.
A Sentinela da Primavera tinha uma flor presa ao cabelo, provavelmente havia tirado da guarda de sua espada, de onde elas não paravam de crescer.
Ele sentou-se, envergonhado. Não pedira para ser Sentinela, principalmente durante uma crise de tamanha magnitude, e não confiava em si mesmo o suficiente para ser responsável por tantas vidas.
Vidas que dependiam de suas escolhas.
- Sinto muito pelas coisas terem de ser desse modo, meu irmão. Não temos muito tempo, então sua consagração oficial terá de esperar - falou a Filha da Primavera. - Porém, independente de tudo, você agora é um Sentinela de Luxord. Sua responsabilidade é lutar pela paz e manter o equilíbrio na terra.
Gaheris, o Sentinela do Verão, levantou-se e disse:
- A partir do momento em que foi escolhido pelas cinzas, você possui o dever irrenunciável de perpetuar a Luz por toda Cylch. Sua vida e espada irão se dedicar a isso, sua fé e sua força é o que mantém os outros de pé e permite que continuem lutando, então, se orgulhe desse dom, mas, não deixe que ele tire sua humildade. Esse é o juramento que fazes ao Pai das Estações.
O garoto demorou alguns instantes, paralisado, mas assentiu com a cabeça. O Sentinela de pele escura sentou-se novamente.
Assim o jovem garoto foi transformado oficialmente em um Sentinela, sem cerimônia, festa ou o grande juramento que os sacerdotes liam grandiosamente. Não havia tempo para formalidades.
- Agora que está aqui, podemos conversar sobre o nosso maior problema. - Alastair, o Sentinela do Inverno, levantou a mão esquerda solicitando a presença de um assistente, que trouxe cautelosamente um grande objeto embalado numa peça de tecido dourada e o estendeu para Gale enquanto se curvava. - A encontramos desta forma, quando voltamos da cerimônia, em cima de seu trono.
Ele abriu o embrulho com cuidado e viu a Espada da Transformação, Samhain, que havia sido destruída.
A arma de bronze das Montanhas Tempestuosas estava escurecida e coberta de rachaduras profundas, evidenciando os pedaços onde se partira. Era construído um padrão de ondas na lâmina que atravessavam as feridas, parecendo rajadas de vento nos céus durante o crepúsculo. As ondas pareciam se mover, carregando magia com elas.
O cabo de couro de boi vermelho tinha a mesma marca do antebraço do garoto desenhada nela e o pomo contava com o entalhe de uma folha em prata. A guarda se curvava para cima e na base da lâmina, havia uma falha que formava um bico, perfeito para quebrar outras espadas. O jovem Sentinela dirigiu a atenção ao gume, onde os escritos em ouro rúnico se encontravam.
O Outono está ferido,
E o equilíbrio, destruído.
- O que houve com o Outono? - perguntou ele, surpreso e confuso.
- Não sabemos - contou Gaheris, agora com as tranças soltas sobre os ombros, que tentava inutilmente encontrar uma posição confortável para se sentar. As chamas da clareira no salão iluminavam seu rosto cansado e deixavam visíveis os fios esbranquiçados em sua barba. - Aparentemente o filho de Luxord se reforjou sozinho. - Terminou o lofidiano. Era visivelmente o mais abalado, Gale julgou por ter sido ele quem destruíra a espada de Kyria, causando a quebra no equilíbrio.
- Tentamos usar o chifre de unicórnio para reparar suas feridas, porém, não adiantou. Suas rachaduras permanecem - Acalypha falou, sentida.
- Há uma forma de consertá-lo? - perguntou Gale.
Os campeões do Senhor da Luz se entreolharam.
- O sacerdote Osellnif contou-nos a respeito de uma profecia, que se iniciava com os versos agora gravados do gume de Samhain, mas não temos nada documentado ou conhecimento sobre os próximos dizeres - começou Alastair. - O ancião nos disse que se era esperada uma traição desde a construção do Santuário, onde um antigo sacerdote previu a destruição de uma das espadas, mas, a profecia foi esquecida com o passar das eras.
Gale encarou novamente a lâmina de bronze escurecida e, por um instante, a sentiu falar consigo. Ele levantou a cabeça para os outros sentinelas e disse:
- Acham que os encapuzados irão voltar?
- Protetores foram mandados para fora e analisar a situação, estamos cercados pelos Devotos da Fumaça - disse Gaheris apertando os punhos. Ao seu lado, Litha vibrou correspondendo ao sentimento do Sentinela do Verão.
- D-Devotos da Fumaça? - perguntou o garoto.
Jörfann havia falado sobre eles, como se já tivesse os encontrado antes. Aparentemente, as suspeitas do elfo estavam corretas.
- São seres que abrem mão de sua essência em nome dos Senhores das Trevas, Gallag e Wintanag. Se trata de um culto religioso, antigas ameaças aos sentinelas que enfrentamos desde antes da construção do Santuário da Luz, o plano deles é conseguir tirar os dois mestres do escuro de seu banimento eterno e destruir a nossa terra.
- Não só eles, mas os homens de Dynion também estavam presentes no ataque. Enfrentei o líder do clã Starrock no Vale da Ascensão. - Completou o Sentinela do Inverno enquanto tentava limpar com um pano sujo seu elmo.
Starrock
Era o clã de Alabaster, o menino que levantou Samhain contra o Sentinela do Verão. O líder da família era seu pai, o enorme Guiltry, o Arrasador. Gale finalmente entendera o motivo do peitoral de Alastair ter ficado tão danificado, pelas canções, o homem era um oponente inabalável.
- Pensei que Dynion ficasse afastada pelo mar, como poderiam ter chegado até aqui? - questionou inocentemente o garoto. - Digo, eles não teriam forças para nos atacar.
- Teriam com a ajuda dos cultistas - falou a Sentinela da Primavera, ríspida. - Principalmente com o conhecimento de um dos nossos.
- Está falando de Alabaster, não está? O filho de Guiltry. - O garoto inclinou-se um pouco para frente na cadeira.
- Então esse é o nome do pequeno desgraçado!? - Gaheris levantou-se do trono enfurecido. - Irei matá-lo com minhas próprias mãos e depois incinerarei os restos daquele traidor maldito! - Da bainha de sua espada, era possível enxergar o brilho vermelho e o vapor escapando por suas brechas, transmitindo a ira da arma que tentava se inflamar.
- Acalme-se, irmão. Temos preocupações mais urgentes - disse Acalypha transbordando calma. Enquanto Alastair encolheu-se levemente de medo do homem de pele escura, a mulher parecia possuir o controle da razão no recinto. - Como iremos nos defender do próximo ataque?
O Filho do Verão se conteve. Respirou fundo e sentou-se novamente em seu trono.
- A única entrada que os nossos adversários conhecem é pela muralha, podemos defender o território - disse ele.
- Com nosso número reduzido? - O Filho do Inverno não parecia muito confiante no plano baseado em força.
- Sim, desta vez lutaremos juntos e iremos restringir o avanço dos monstros. - O Sentinela do Verão era um lofidiano, criado na arte do combate desde antes de vir para o Santuário, se houvesse alguém na sala capaz de elaborar um plano, era ele. - Não iremos nos dobrar contra essa pífia escuridão que tenta nos amedrontar.
Acalypha estava de pernas e braços cruzados, ponderando cautelosamente as possibilidades.
- Os Devotos da Fumaça possuem mais forças do que nós, mas, acho que se estivermos juntos no mesmo campo de batalha, talvez haja uma chance. - Ela se virou para o garoto. - O que acha, senhor Wintamer?
Gale engoliu em seco, ainda estava processando o fato que havia se tornado um Sentinela após um ataque ao Santuário. Agora estava ouvindo a autoridade máxima dos filhos da Luz formar um plano para lutar em menor número e pedir sua opinião.
- Acho que devemos empurrá-los para o meio da cidade dos protetores, as ruas são estreitas e possuem muitas ramificações, eles ficarão perdidos. Talvez o foco da luta possa ser na via principal, há espaço o suficiente para formarem uma boa parede de escudos e subjugá-los - falou o garoto, sem tomar muito tempo para pensar.
- Está sugerindo que dividamos nossas forças já escassas? - perguntou a Sentinela da Primavera.
- Pode funcionar, os atraímos para a cidade e então o cercamos. - Gaheris coçava a barba. Uma mania que se fazia presente quando estava nervoso.
- Trazendo a luta para um ambiente em que possuímos vantagem, podemos prendê-los no grande labirinto de ruas. - Completou o raciocínio.
- E então nossa vitória será inevitável - disse Acalypha.
Alastair, que estava calado, manifestou-se:
- Gostaria que fosse tão simples, meus companheiros. Vocês se esqueceram do detalhe mais importante: Não estamos em um ambiente onde possuímos vantagem. O equilíbrio foi destruído e a fúria da terra agora cai sobre nós, não há luta fácil se não podemos prever o que virá a seguir. Um terremoto? Ou talvez uma chuva de pedras flamejantes?
O Sentinela do Inverno, embora um grande guerreiro, possuía dificuldades em se comunicar e geralmente era mais agressivo ou sarcástico do que desejava. Por isso, manifestava-se pouco nos conselhos.
- Precisamos curar Samhain - disse Acalypha. - É nossa única chance.
- Não temos tempo, mal sabemos onde encontrá-lo! - rebateu Gaheris, nervoso.
- Somos os Sentinelas de Luxord. Nossa prioridade deveria ser restaurar o equilíbrio, é o que juramos fazer.
Gale se incluía nisso.
- Quem deveríamos encontrar? - perguntou o garoto, que se sentiu envergonhado de incluir-se no conjunto, mesmo sendo o correto a se fazer.
- Dizem que a Luz de Luxord poderia restaurar a força do Outono, mas há poucas suposições de onde seu corpo possa estar repousando. Nada concreto - falou Alastair, que finalmente desistiu de tentar limpar o elmo. - Os sacerdotes podem ter algum lugar em mente, mas não confiamos neles.
- Poderíamos tentar ir a seu encontro - insistiu a Sentinela da Primavera.
- Não podemos deixar o Santuário desprotegido, Acalypha! - Gaheris não cedeu.
- Mas sem o poder de Samhain, não conseguiremos defendê-lo por muito tempo! - rebateu.
Eu vou.
Os três silenciaram-se e encararam o Sentinela do Outono, que se encolheu.
- O que disse, garoto? - o lofidiano semicerrou os olhos e perguntou com uma voz soturna, amedrontadora o suficiente para fazer o jovem tremer suas pernas e sua voz.
- Somente uma pessoa precisa sair do Santuário, posso atravessar as linhas inimigas escondido enquanto eles tentam atacar. Meus braços não seriam de grande ajuda na linha de frente do combate, mas, posso pelo menos tentar restaurar o equilíbrio e trazer a Luz para nós mais uma vez!
- É loucura. - Determinou Gaheris. - Não estamos em posição de perder mais nenhum guerreiro, muito menos uma das quatro espadas sagradas.
- Que está quebrada - complementou Alastair. Talvez tenha soado em um tom de deboche mais do que deveria.
- Você não está me ajudando, pardal. - o Filho do Verão se irritou. A cara furiosa do lofidiano de tranças longas era algo que aterrorizaria até o próprio Luxord.
- Talvez não tenhamos escolhas a não ser resistir aos ataques para que Gale possa restaurar o poder do Outono - disse a Filha da Primavera, tentando voltar a atenção ao assunto original.
- E por quanto tempo resistiremos? - perguntou o Sentinela do Inverno.
- Pelo tempo que for necessário - finalizou.
O Filho do Outono estava em seu novo quarto no Templo de Samhain, a oeste da cidade dos protetores.
O desconforto dele era inefável ao olhar para as adagas nas paredes, para os objetos largados no chão e até para sua nova cama, que até o dia anterior pertenciam a Kyria. Gale refletia sobre as histórias das coisas que ali eram guardadas pela antiga Sentinela do Outono quando ouviu três batidas levemente mais fortes do que deveriam em sua porta. O garoto a abriu e não encontrou ninguém aos arredores.
- Aqui embaixo, seu filhote de chibrum!
Era Polliko, o anão. O sujeito estava com a cara completamente suja e no bigode uma pequena chama começava a se alimentar, quando ele apagou com a ponta de seus dedos. Seu semblante carregava uma expressão exausta, como se tivesse trabalhado por uma semana sem descanso para fazer suas necessidades.
- Senhor Polliko! O que faz aqui em uma hora dessas? Deveria estar descansando.
- Ora! Cale essa boca e tome logo de uma vez. - O anão ergueu um saco misterioso, qual o garoto aceitou.
- O que seria isso? - questionou o jovem, curioso.
- Aquele lofidiano sem vergonha me mandou trabalhar nisto para você, porque aparentemente um idiota quer tentar se matar!
Gale abriu o saco e viu o conteúdo que se escondia ali dentro: Uma malha de dragão negro, muito leve, que lhe preenchia até o final dos braços e das pernas, que poderia aguentar qualquer mudança climática sem prejudicar seu corpo, botas de couro montês, perfeitas para escalada, um grande saiote da cor preta e um peitoral feito com o couro de um lobo branco e gravuras com tinta escura como os céus daquela noite. Também havia uma bainha nova para Samhain, ideal para guardá-la nas costas, como ele preferia.
- Gaheris mandou fazer isso para mim?
- As pancadas na cabeça de hoje mais cedo te deixaram surdo? - Polliko estava impaciente e cansado, não lhe restava muito humor para os dramas daquele jovem. - Não podia te mandar para uma jornada sem um equipamento adequado, porque se você morresse os desgraçados botariam a culpa mim! Nada disso, a minha parte eu fiz!
O jovem não pôde evitar sorrir, era a primeira vez que recebera um presente tão valioso e esforçado. O anão poderia dizer o que quisesse, ele sabia que o mestre de forja tinha se empenhado até o limite, e um pouco mais além, para poder construir algo tão bem feito e em pouco tempo.
- Muito obrigado, supremo senhor mestre de forja.
- Não me agradeça, pois se você destruir a minha criação...
- Bolas de montês, eu sei.
Dessa vez, o anão sorriu.
- Eu até te mandaria não morrer, mas vai ser impossível enquanto você lutar com essa sua mão errada - disse ele, virando-se para ir embora -, mas não morra tão rápido.
O garoto voltou-se para dentro e vestiu o traje que Polliko havia confeccionado e que lhe cabia perfeitamente. A malha de dragão era fina e se ajustava à medida do corpo, tornando-se uma espécie de nova pele.
Gale sentiu os pés perderem a firmeza.
Até o início daquele dia ele ainda era um aprendiz próximo da graduação, agora, era o Sentinela do Outono. Mal tinha experiência em combates de verdade e em algumas poucas horas iria partir em uma missão, sozinho, com a vida de milhares de filhos da Luz nas mãos. Todos dependiam de seu sucesso e por isso tinha medo de falhar, não poderia perder um segundo em vão.
Eu não consigo.
Seus olhos tremiam de estresse ao rodear o quarto quando a viu, Samhain.
Ele se virou para um espelho no canto da parede, que aparentava estar meio empoeirado, e viu o cabelo desajeitado que lhe caía sob os olhos. Teve uma ideia. O jovem prendeu os cabelos em um rabo de cavalo e apanhou uma adaga largada no chão, provavelmente era de Kyria, então começou a cortar seus fios nas laterais da cabeça, assim como a antiga Sentinela.
A única pessoa capaz de realizar uma missão tão ambiciosa seria a Filha do Outono, então Gale sentiu que esse simples gesto lhe traria um pouco mais de forças e que a essência da Sentinela o assistiria junto das estrelas.
- O que pensa que está fazendo? - indagou Acalypha, encostada à porta.
O garoto se assustou, deu um grito e caiu do minúsculo banco em que estava sentado.
- Cuidado! Quer se ferir antes mesmo de pisar fora daqui? - Continuou ela enquanto o ajudava a se levantar. A Sentinela abriu um sorriso ao ver o que o rapaz tentava fazer, sabia exatamente o significado daquilo. - Sente-se, eu te ajudo com isso.
Os dois conversavam descontraidamente enquanto a mulher deslizava de maneira delicada a lâmina da adaga pela cabeça dele. Seus dedos eram macios e seu toque, gentil, como o carinho de uma mãe.
A mãe de Gale continuava a viver na pequena vila de sua infância, e sua falta era sentida por ele nesses momentos, afinal, havia muitos anos desde que partira e nenhum dos dois lados recebeu qualquer notícia desde então. Tinha certeza de que ela poderia lhe dizer uma dúzia de palavras e retirar todo o peso que sentia de suas costas.
- Como a senhora faz para encarar?
- Não me chame de senhora, não sou tão velha assim! - Ela riu. - O que quer dizer com isso?
- A culpa depois da batalha.
A Sentinela o estudou em silêncio enquanto um ramo novo crescia na espada florida da Primavera, Ostara.
- Se refere a tirar a vida de alguém? - Acalypha questionou cautelosa.
- Também, mas penso principalmente naqueles que não pude salvar - disse ele cabisbaixo. Abaixou a cabeça levemente e recebeu uma bronca de Acalypha, que quase arrancou sua orelha fora com tal ato.
- Há alguma pessoa que gostaria de ter salvado? - perguntou a mulher.
- Não pude salvar meu amigo, Geralt, e também não pude ajudar Kyria.
- Kyria!?
- Sim, eu a deixei para tentar dar suporte aos aprendizes no acampamento e acabei sendo inútil. Talvez, se tivesse permanecido lá...
- Francamente! - ela o interrompeu. - Já conheci guerreiros egoístas e arrogantes, mas você é um achado único. "Talvez"? O que poderia um aprendiz fazer para salvar a Filha do Outono? - A Sentinela da Primavera continuou, enfurecida. - Pare de tentar apresentar-se como o herói sagrado que precisa salvar cada alma nesta terra, as pessoas morrem e existem momentos em que não podemos fazer nada. Sinta-se com sorte de ter sobrevivido para poder lutar outro dia.
Gale permaneceu calado, sua voz havia se perdido.
- Ou melhor, complete a missão para honrar o sacrifício dela, afinal, quem deve carregar o legado é você. - Ela completou.
- Não sei se sou capaz. Voluntariei-me sem pensar nas consequências. - A voz do rapaz estava trêmula
- Pare de se vitimar, meu jovem, sabe que é nossa única esperança. Gaheris não permitiria que fosse se não confiasse em você. Todos nós confiamos. - A paciência da Sentinela havia se esgotado.
O jovem ficou um tempo em silêncio, aproveitando o ranger da porta que se movia brevemente com o vento frio que fazia no auge daquela noite escura.
- Não entendo o motivo de tanta confiança em mim.
- Estávamos todos de olho em você há um tempo, talvez um ano ou dois. Queríamos que fosse o próximo Embaixador - disse ela em um tom mais calmo, tentando recompor-se. Sabia que descontar a raiva no garoto tão inseguro não iria ajudar.
- Em mim? Espere. O que é um Embaixador? - O garoto virou a cabeça para encará-la, então a mulher lhe deu um cascudo para que ficasse quieto.
- Esqueça isso, agora você é um Sentinela - falou Acalypha, dando um suspiro. - E sim, você era muito bom em combate e deixava todos os oponentes confusos com a sua mão trocada. Gaheris era o que mais possuía interesses em você.
- Gaheris!? Pensei que me odiasse - espantou-se genuinamente
- Muito pelo contrário, garoto. Ele é o que mais acredita na sua capacidade. - A Sentinela abriu um sorriso.
O Sentinela do Verão, aos olhos de Gale, era o mais bruto, fiel e poderoso Sentinela, porém, o lofidiano se preocupava com o bem-estar dos aprendizes e o futuro do Santuário, assistindo sua evolução ao longe. Por esse motivo quis verificar se o garoto estava bem e o incentivou a levantar-se e continuar lutando de manhã, mesmo sendo nada sutil com as palavras.
Kyria o havia chamado pelo nome, em combate. Mais cedo, não percebeu que o Filho do Inverno usara seu nome de família. Agora fazia sentido.
- O problema nisso é que não consigo enxergar a razão de acreditarem tanto em mim, nunca fui nada especial. Todos da minha classe de aprendizes eram nobres possuíam os melhores equipamentos, além de implicarem comigo por conta do meu jeito de lutar.
Wintamer era filho de um casal de fazendeiros em Masnach, vila agrícola de Niwloedd, e desde que chegara ao Santuário da Luz, era humilhado pelos outros aprendizes que eram nobres filhos de regiões mais afortunadas. A forma que havia encontrado de lutar contra isso e se sobressair durante os treinos foi aprender a empunhar a espada com sua mão esquerda, o que era muito mais difícil para ele, mas também levava o oponente a cometer erros quando enfrentasse um espadachim tão incomum.
Não funcionou. Os jovens mais abastados se enfureciam ao perder para a espada velha e surrada do garoto por conta de seu jeito confuso de lutar, levando-o a ser chamado de "Aberração da Mão Invertida".
- Está brincando? Depois daquele espetáculo no Vale da Ascensão é um pouco difícil não acreditar no escolhido. Alastair acredita que foi o próprio Luxord quem te selecionou, então se não consegue acreditar em si mesmo, faça pelas pessoas com quem ainda se importa aqui dentro.
A vela que iluminava os dois estava quase morrendo. O Filho do Outono podia ver a cor dos cabelos de Acalypha mudarem através do espelho sujo.
- As cinzas me escolheram... - O garoto olhou para seu antebraço direito e viu a marca gravada nele.
- Mais do que isso. Você é o escolhido para levantar a grande Samhain, aquela que é capaz de enfrentar centenas e inspirar milhares. Não sou capaz de entender seu nervosismo grotesco. Enquanto estiver ao lado daquela espada, estará seguro.
O jovem sentiu-se revigorado, uma expressão determinada tomou conta de seu rosto. Ele apertou o punho direito e pôde sentir a marca pulsar, como se falasse com ele. Estava lhe encorajando a lutar.
Era isso o que faria. Gale iria lutar até salvar os filhos da Luz, nada antes disso era aceitável para ele.
- Depois que acabar com isso... - referia-se ao corte nos cabelos. - Estará pronto para sua jornada?
- Creio que nunca estarei pronto, na verdade. Mas preciso estar, só irei resolver mais um último assunto.
Aprontou-se: Tirou os fios recém-cortados dos ombros, botou Samhain nas costas, dentro da bainha, e apanhou a mala, que continha um cantil, ração para alguns dias, corda, um conjunto básico de equipamentos para preparar comida e um frasco com água do rio Loskjs, que Jörfann lhe dera para emergências.
Por fim, o jovem encarou o colar de Geralt. Decidiu amarrá-lo no pulso esquerdo, para que uma parte do amigo empunhasse a espada junto dele de agora em diante.
O Sentinela do Outono partiu em direção ao acampamento dos aprendizes, pois precisava despedir-se de alguém.
- Lenora - sussurrou ele na entrada de sua tenda.
A garota dormia profundamente em sua cama. As outras duas estavam vazias, pertenciam às amigas dela que agora jaziam no antebraço de Gale.
- Lenora! - Tentou mais uma vez, com medo de acordar os outros aprendizes nas tendas ao redor.
A garota roncava enquanto estava abraçada a um travesseiro de palha. Era impossível acordá-la de tão longe. O jovem encarou o antebraço e disse:
- Vocês me permitiriam entrar na sua tenda? É importante. - Depois de proferir tais palavras em voz alta, sentiu-se estúpido por estar falando com a marca da transformação, mas ela respondeu. O Filho do Outono poderia entrar. - Com licença.
Ele se aproximou da cama e deitou os joelhos no chão. O rapaz pôde ver o rosto da garota que até julgaria doce, se não fosse a boca aberta de onde escorria a saliva em excesso e o ronco que a fazia parecer um filhote de urso.
- Ei, acorde! - Então a tocou gentilmente, para tentar fazê-la despertar. Sem sucesso. - Qual o seu problema!? Parece um animal hibernando! - Gale balançou o corpo da menina com força, até que ela acordou.
Lenora abriu os olhos lentamente. Então berrou.
- Espere, sou eu! - exclamou o garoto enquanto tentava desviar do travesseiro que ela arremessou. - Fique quieta, não podem saber que estou aqui!
- MAS O QUE DIABOS VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI, SEU VERME!?
- Vim te ver!
- PARE DE MENTIR! E O QUE VOCÊ FEZ COM O CABELO?
- Não gostou?
- QUE ROUPAS SÃO ESSAS?
- Meu traje de Sentinela! Agora fique quieta!
- NÃO ME MANDE FICAR QUIETA, SEU IDIOTA!
O rapaz estava desesperado enquanto pedia por silêncio, mas Lenora não parecia querer colaborar.
- Preciso partir!
A garota parou.
- O que? Mas por...
- É nossa única chance. Irei procurar o Senhor da Luz.
A menina largou o pente que havia preparado para jogar em Gale, agora procurava palavras que pudessem se encaixar e formar uma frase que representasse o que sentia.
- Mas irá sozinho? Não, vou junto! - disse ela, saindo da cama.
- Não! Você não pode! - exclamou o Sentinela.
- Pare de ser idiota, é claro que eu posso! - A coisa que Lenora mais odiava na vida era ser contrariada. Nunca perdera uma única discussão, afinal, sempre vencia por cansaço.
- Preciso de todos que puderem lutar aqui, prometo que voltarei rápido, mas para isso, preciso que vocês aguentem até lá.
- Como pode ter tanta certeza que vamos resistir? - Depois do fracasso na luta de manhã, ninguém estava confiante o suficiente de que a vitória chegaria aos filhos da Luz. Por esse motivo sua missão era mais do que importante, era necessária.
- Acalypha me prometeu - disse ele para tranquilizá-la
- A Sentinela da Primavera!? Conheceu ela? - Lenora achava Acalypha lindíssima e seu sonho era se tornar uma Protetora para poder trocar uma única palavra com a mesma.
- Claro, também sou um Sentinela agora. - Ela havia se esquecido disso.
A garota estava determinada a vencer.
- Então iremos aguentar!
- Obrigado. - Foi o agradecimento mais sincero que já reproduzira, enquanto tentava encorajar a amiga, na verdade, era Gale quem buscava ser encorajado, e Lenora sempre conseguia fazer isso.
Então ela o abraçou e enterrou o rosto em seu peito, como era de costume. Os dois permaneceram por um bom tempo dessa forma até que se lembrou de algo.
- Espere! Tome. - Estendeu a bainha para ele. - Dente de Dragão estava comigo.
O jovem balançou a cabeça em negação.
- Quero que fique com ela, vai precisar de uma boa companheira para lutar. E essa nunca falhou comigo.
- Tem certeza?
- Pode apostar! Ficarei bem com Samhain, mas preciso te deixar sob a responsabilidade de alguém em quem confio. Com certeza Dente de Dragão é a melhor escolha. - Então abriu um largo sorriso.
A espada era um presente dado por Geralt, tinha sido forjado pelo próprio ferreiro da família Bellux a pedido do garoto.
Conforme foram crescendo, a velha arma de Gale estava quase se quebrando e não era mais adequada para as atividades dos aprendizes. O companheiro então mentiu para o pai em uma carta, onde solicitava que o ferreiro confeccionasse a melhor lâmina da vida dele. Quando a espada lhe foi entregue, no mesmo momento ele virou-se e a largou nas mãos do jovem de Masnach.
O Sentinela amava aquele pedaço de metal. Ela simbolizava toda a amizade que tinha com Geralt.
-Vou te deixar orgulhoso! - falou Lenora. - Que a Luz de Luxord brilhe mais forte sobre você, irmão. - Tentou esboçar um sorriso confiante enquanto ele ia embora, mas a garota não queria que partisse.
Gale chegou até a muralha, onde os portões ficavam. Gaheris e Alastair o esperavam lá.
- Agora parece um Sentinela de verdade - disse o Filho do Verão, olhando para o rapaz pronto para sair em sua jornada. Litha estava em suas mãos, não vendo a hora de ser usada em combate.
- Obrigado. - Envergonhou-se. Será que deveria ter tratado aquilo como um elogio?
Alastair segurou a risada, então se recompôs.
- Sabe que foi arriscado ir até lá, não sabe? - Os sentinelas não tinham como saber se havia outros traidores dentro do Santuário. Mesmo Lenora não sendo uma, ir até o acampamento poderia revelar a missão secreta do Filho do Outono e tudo seria em vão.
- Ele sabe - disse Gaheris -, mas precisava fazer isso, certo?
O garoto assentiu.
- Faria o mesmo, jovem. Ainda que estejamos sob ataque, não podemos nos dar o luxo de perder a confiança em nossos companheiros. Ter alguém que te motive a voltar para casa também é muito útil. - Completou o grande homem de armadura vermelha.
- Enfim - disse o Filho do Inverno. - Nossas suspeitas apontam que um ótimo lugar para começar seria a capital de Tarian, que fica ao norte daqui. Não deve demorar mais de dois dias até que chegue lá, mas você precisará encontrar uma forma alternativa de entrar, porque seria muito arriscado passar pelos portões e os guardas.
- Você deve caminhar nas sombras. O Outono em suas costas já chama atenção demais enquanto afeta as ondas espirituais ao redor. Não abra brechas para falhas - aconselhava o Sentinela de pele escura.
- Você deverá encontrar Helena, é a nossa Embaixadora. Será fácil de reconhecê-la, ela possui uma Pedra do Outono.
- Pedra do Outono? - Gale nunca tinha ouvido falar de algo assim.
- Fique tranquilo, é impossível confundir. - Alastair estava preocupado com a chuva que começara a cair, seria horrível lutar em um terreno molhado. De qualquer forma, agradeceu por não ser um tornado de fogo. - Ela pode ter alguma pista de onde Luxord está adormecido.
- Vamos abrir o portão o suficiente para que somente você passe, depois disso, estará sozinho. Preparado? - Os olhos de Gaheris transmitiam confiança.
Estava pronto.
- Lamento não ter tempo para treiná-lo, ainda está muito cru. As circunstâncias não permitem que possamos lhe ensinar direito sobre o combate ou a espiritualidade do Santuário, você tem muitas coisas a aprender, Pequeno Sentinela.
- Não se preocupe, quando retornar nós todos teremos tempo para treinar juntos!
Um pequeno sorriso brotou no canto dos lábios do grande homem de armadura vermelha. Aquele rapaz era corajoso, bom e astuto. Iria ficar bem.
- Resista e incandesça, Filho do Outono.
Então o Filho do Outono partiu.