Ofegante alerto o motorista do ônibus com batidas incessantes na porta que se abre deixando-me entrar, ele encara meu rosto machucado, mas permanece em silêncio. Abaixo a cabeça para esconder minha face, porém recebo olhares de todos os passageiros.
Desta vez consegui fugir de mais uma surra, espero que quando retornar ele esteja mais calmo. Deveria tê-lo avisado que ficaria até mais tarde na casa de Victor, mas meu celular descarregou, impossibilitando-me de falar com ele.
Passo pela catraca com o coração acelerado e me recomponho para não chamar atenção.
Apanho o aparelho celular e disco o número do meu amigo, mas com as mãos trêmulas desisto no mesmo instante. Encaro meus dedos cortados e não consigo evitar a agonia causada por esse sofrimento e me pergunto repetidas vezes, por que sempre volto para aquele homem?
Me sento no último banco e coloco as duas mãos sobre a cabeça pensando em alguma forma de apagar os vestígios do passado; suspiro, na esperança de convencer a minha mente que agora estou em segurança, debruço sobre a janela e observo tudo ao meu redor, um pouco mais calma.
O vento assopra as folhas verdes das árvores, espalhando-as pelo chão. O cheiro da chuva é inerente, criando um clima agradável, noto diversas pessoas correrem a procura de proteção da chuva que se aproxima.
Ergo a cabeça e encaro o céu negro formado pelas nuvens e um arrepio percorre minha espinha ao sentir as primeiras gotículas de água adentrar pela janelinha do ônibus. Fecho meus olhos cansados e lanço um longo suspiro, imaginando as gotas atingirem meu rosto, posso sentir o frescor.
O momento nostálgico, desperta coisas que estavam enterradas em minhas lembranças. Coloco minha mão sobre o rosto, como um reflexo ao sentir mais uma vez o ardume percorrer pela pele. Lágrimas se formam em meus olhos, mas enxugo-as com a palma da mão. Luto para que elas se mantenham no lugar, a dor no peito é grande ao saber que quando cruzar a porta do meu apartamento tudo voltará a acontecer.
Desde o momento que disse o grande sonhado "sim" minha vida mudou por completo, criei uma barreira dentro da minha mente para não desapontar quem eu mais amo nessa vida, mas o que fazer quando alguém que você se importa tanto, lhe machuca além da sua carne?
Penso no que eu possa ter feito de errado para receber tantos maus tratos, e mais uma vez me questiono o motivo que me liga a este homem. Infelizmente sei da resposta, ainda amo o Leonardo, mesmo depois de tudo o que ele me fez. Às vezes me pergunto se a culpada disso tudo sou eu.
Enterro minhas angústias no profundo do meu coração, sei que amo meu marido e faria tudo por ele, mas as vezes penso até quando conseguirei suportar o seu comportamento instável.
Ouço de muitas pessoas que estou em um relacionamento abusivo, mas sinceramente, não consigo admitir isso. Mentalizo todos os dias que isso é uma fase, mas as vezes é difícil manter o controle o tempo todo, quando menos espero me pego chorando baixinho no banheiro, antes de voltar para a cama e tentar dormir, forçando minha cabeça a esquecer os problemas por meio o sono.
Infelizmente acabei me tornando viciada por ele, criando em minha mente grande dependência desse homem que prometeu diante do altar me proteger e zelar por nosso amor, mas agora é tarde para pensar em tudo isso, sou fraca demais para deixar tudo para trás e recomeçar.
Estes dias com clima chuvoso tem me feito retornar ao passado com frequência, fecho meus olhos lembrando-me vividamente da primeira pancada recebida, as cenas invadem minha cabeça como um filme que acaba de ser rebobinado.
22 de fevereiro de 2015 - Segunda-feira à tarde
O vento forte assopra as portas abertas, batendo-as sem aviso prévio. Acordo assustada e observo a escuridão na sala, viro a cabeça e encontro Leonardo dormindo na poltrona ao lado e levanto decidida a trancar tudo antes da tempestade chegar.
Entro nos quartos e fecho as janelas, admiro por alguns instantes as primeiras gotas tocarem o vidro, a chuva é algo que sempre me fascinou porque acredito que ela renova tudo o que toca.
Caminho para a sala e noto que meu marido ainda está adormecido, cruzo o corredor que liga da cozinha ao banheiro e decido tomar um banho, atravesso a porta sanfonada do banheiro, ligo uma música em meu celular e tiro as roupas. Fecho meus olhos e mergulho na água quente, o vapor invade o ambiente trazendo uma sensação de aconchego. Acredito que esse seja o melhor cômodo da casa.
A sinfonia de Beethoven ecoa pelos azulejos, me fazendo refletir sobre a prova que realizei para cursar medicina veterinária na USP, sinto um frio na barriga só de imaginar a conversa que preciso iniciar com Léo, ele que nunca foi fã dos meus estudos e não tenho muita certeza se ele irá me apoiar, principalmente porque escondi a realização da prova.
O barulho do telefone faz com que eu desperte de meus devaneios, me fazendo esquecer por um instante do que me aflige, estendo meu braço e desligo a música ao ouvir a voz do meu marido, presto atenção ao som abafado da conversa, mas não consigo entender muita coisa.
A ligação é finalizada, e Leonardo entra no banheiro sem aviso prévio.
- Sua vadia mentirosa! - Ouço ele dizer com os olhos saltados. - Achou que poderia esconder algo assim? - Grita desligando o chuveiro e por reflexo me encolho no canto da parede.
- Eu posso explicar... - Me justifico, mas ele agarra meu cabelo.
- Não quero explicações de uma puta mentirosa! Queria tanto ir para faculdade que me enganou. - Ele me arrasta para fora do banheiro e o frio crava em minha pele nua.
- Por favor, meu amor, não faz isso.... Vamos conversar! - Imploro com lágrimas nos olhos.
- Você vai aprender a nunca mais me desrespeitar assim. - Ele grita enquanto bate minha cabeça no piso azulejado e minha visão fica embaçada. Leonardo ainda desfere vários tapas no meu rosto até me fazer perder a consciência.
Volto a realidade ao sentir o ônibus parar, seco as lágrimas que brotaram no meu rosto, desço do ônibus e caminho até a frente do condomínio do meu amigo Victor. As gotas grossas de chuva atingem meu rosto encharcando-me em segundos, ao sentir a chuva tocar minha pele me sinto viva mais uma vez.
Passo pelo portão e o segurança previamente conhecido me avisa que Victor e Rafa não chegaram, mas me entrega a chave reserva para subir. Preciso permanecer aqui até que as coisas se acalmem entre Leonardo e eu, sei que ele virá me buscar e irei ceder, mas nesse instante preciso ficar aqui.
Ao entrar no elevador, começo a relembrar o passado mais uma vez. Um mês após a primeira bofetada, Leonardo recebeu uma proposta no banco de São Paulo e aceitou sem perguntar. Quando descobri, ele me disse que poderia fazer o curso, desde que fosse apenas um hobby, essa era a oportunidade perfeita para eu cursar o que quisesse, enquanto ele trabalhava e concordei me sentindo aliviada por poder estudar.
Depois de alguns dias minha avó faleceu e ele me convenceu a vender a casa em que cresci, localizada em Curitiba, para comprar um apartamento em Pinheiros onde era o polo do banco, quando vi, já estava com os papéis assinados, com a casa vendida e em um avião para São Paulo com a ideia de mudança de vida, mas não foi bem isso que aconteceu.
Os estudos sempre foram minha vida antes de conhecê-lo e quando começamos a nos envolver no ensino médio ele não aceitava meus sonhos, porém apesar de sua relutância eu decidi me matricular na universidade assim que conclui a escola, mas fiz isso sem que ele soubesse e isso me trouxe consequências indesejáveis.
Desperto dos meus pensamentos ao chegar no andar do meu amigo. Encaro o corredor vazio e ouço as árvores baterem nas janelas, enunciando a tempestade que está lá fora. O conforto deveria surgir ao pensar que agora estou quente e segura, mas por quanto tempo permanecerei assim?
Me aproximo da porta 205, procuro refúgio sempre quando sinto que as coisas saíram do controle.
Com as mãos trêmulas, destranco a porta e giro a maçaneta, encaro o cômodo silencioso e suspiro aliviada por estar aqui. Caminho até a cozinha já conhecida e abro a geladeira, apanho uma garrafa d'água e dou um grande gole, recuperando minhas energias. Finalmente já descansada, pego meu celular e disco o número de Victor.
- Oi, Vick. - Digo com um tom desanimado, por mais que queira não mostrar meu estado, ele aparece inconscientemente.
- Oi, Sa, pela voz já sei que fugiu mais uma vez daquele maníaco.... - Victor suspira e continua. - Aquele desgraçado não tem jeito.... Já falamos mil vezes para você denunciar ele Sá! Mas não importa o que o Rafa e eu te dissemos, você não quer colocar esse maldito atrás das grades. - Ele suspira. - Já chegou em nossa casa?
- Você me conhece como ninguém hein? Afinal são mais de dez anos de amizade, não é mesmo? - Sorrio, esquecendo por um segundo o que me abala. - Sim, estou aqui. - Suspiro profundamente e sinto um alívio por ter amigos com quem posso contar.
- Toma um banho no quarto de hóspedes e abre o guarda roupa, deixei algumas roupas suas dobradas e passadas lá, estou terminando uma sessão de fotos e daqui uma hora nós iremos te levar para sair, precisamos comemorar a sua viagem! Você por acaso conversou com o troglodita sobre o intercâmbio?
- Ainda estou resolvendo esse detalhe. -Suspiro. - Eu estou muito cansada para sair, mas podemos pedir uma pizza e assistirmos um filme, assim eu esqueço o meu desastre amoroso.
- Calma, donzela, logo estaremos aí para resgatá-la, com pizza e doces, agora deixa essa tristeza de lado e vamos começar a pensar na sua viagem, amiga! Ela será fantástica e quem sabe você não encontra seu verdadeiro príncipe encantado, se o Rafa não fosse meu, eu até que dividia com você. -Victor tenta brincar para me distrair
- Muito obrigada pela generosidade. - Digo rindo. - Mas aceito apenas a pizza e os doces.
- Pode deixar, logo estaremos aí, agora vou desligar para terminar a sessão de fotos. Ah e nem pense em desistir de viajar por causa do Leonardo hein! Poucos possuem a oportunidade de viajar para o exterior com tudo pago.
- Eu vou para estudar, não para me divertir, Vick, a USP me ofereceu a oportunidade de ir para o Canadá por um semestre para realizar pesquisas e, além disso, verei se nesses seis meses consigo um estágio por lá, assim ganho mais experiência. - Digo otimista.
- E por acaso você não consegue estudar e se divertir? Lembre-se que tem 22 anos e não 60 e precisa aproveitar a vida ao lado dos seus melhores amigos aqui, você é um mulherão e se esconde atrás dos livros, com seus olhos azuis conquista todo mundo, e esse corpo de modelo então, amiga, você é uma amazona, pena que se vê como uma mera mortal.
- Victor, as coisas não são tão simples como você diz, eu tenho muitas responsabilidades.
- Todos nós temos responsabilidades, e não é por isso que temos que esquecer de viver, mas vamos ajustando essas coisas com o tempo, afinal sempre estarei ao seu lado, logo mais conseguirei fazer você cortar esse cabelão moreno, mas enfim, isso são coisas que vão mudando com o tempo, não é? Tchau gata, até daqui a pouco. - Com a empolgação de sempre ele desliga o telefone antes de falar qualquer coisa para contrariá-lo, mas Vick está certo, preciso relaxar um pouco as vezes.
Entro no banheiro e começo a tirar minhas roupas, mas cesso ao ver meu reflexo diante do espelho. Observo os pequenos hematomas espalhados pelo meu corpo e o sangue causado das feridas mais cedo. Um sentimento de vergonha me atinge em cheio, coloco a mão sobre a boca me esforçando para não sucumbir. Às vezes me sinto tão impotente que não acredito que isso chegará ao final feliz.
Nada que eu faço acaba com a sensação vazia que carrego comigo, penso como pude chegar a esse ponto. Deveria ter terminado desde o primeiro golpe, mas ele sempre soube como mexer comigo. Fecho os olhos e me entrego à ducha quente limpando meu corpo do sangue seco.
As gotas d'água tocam meu rosto, deslizo minhas mãos sobre meu corpo acariciando os hematomas dados de presente por Leonardo, e agradeço baixinho por permanecer viva mais um dia.
Ouço o barulho da minha cabeça sendo arrastada pelo chão, enquanto o rosto do Léo expressa prazer, grito para ele parar, mas ele continua a me bater, começo a perder o ar e sinto que estou prestes a morrer.
Abro meus olhos, voltando-me para o presente, passo a mão na cabeça e sinto o ardume em meu couro cabeludo. O desespero me apanha e, sem perceber, as lágrimas já estão escorrendo pela minha face se misturando com a água do chuveiro. Desabo no chão em posição fetal.
Inspiro e expiro profundamente, para manter a lucidez, levanto-me do chão, saio do box e me enrolo na toalha, observo a janela do quarto e o céu já está limpo e o sol brilha novamente, como se não houvesse caído uma gota d'água. Essa é uma das características de São Paulo, as quatro estações do ano no mesmo dia. Apanho uma calça moletom, junto com uma blusa de frio vermelha, para esconder meus machucados, visto a roupa e faço um coque simples.
- Sa? - Ouço a voz de Vick vindo do corredor e logo saio do quarto, dou de cara com meus dois melhores amigos que formam o casal mais fofo de todos os tempos.
- Por que está vestida assim? - Rafael arqueia as sobrancelhas, encarando-me desconfiado.
- Estou com frio, só isso. - Minto para não o preocupar.
- Está uns vinte e oito graus com sensação térmica de trinta e dois, quer enganar quem, Safira? - Rafa diz com a voz irritada, e se aproxima, ele segura meus braços, e fico brava ao ser pega de surpresa, ele levanta a manga da blusa, deixando à mostra meus hematomas. - Aquele desgraçado te bateu mais uma vez, quando é que você vai aprender? Vou mostrar a ele uma lição!
- Não acredito, Sa, você prometeu que o denunciaria da última vez. Será que não entende que ele vai acabar te matando? Estamos do seu lado, mas não posso te ver se matando aos poucos, sabe que você tem a lei Maria da Penha ao seu favor, não é? - Vick se aproxima com os olhos cheios d'água, mas eu me afasto.
- Safira, mais de duzentas mulheres são vítimas de feminicídio por mês no país, você quer cair nesses números? O Leonardo é perigoso e cada dia que passa você entrega mais poderes a ele. - Rafael diz com os braços cruzados demonstrando irritação.
- Foi só uma vez está bem, e foi minha culpa, agora se não quiserem que eu saia por aquela porta vamos mudar de assunto! - Digo com a voz firme, mas por dentro me sinto despedaçada por ser tão idiota. - Como chegaram tão rápido? - Mudo de assunto bruscamente, e Victor percebe que não é hora de continuar essa conversa.
- Não te contei? - Victor começa a dizer, limpando as lágrimas que se formaram por minha causa. - O dinheiro que recebi da última sessão de fotos foi a entrada para meu carro lindo. Agora chega de ônibus! Meu trabalho como modelo está rendendo, meu empresário diz que minha "cor" albina se destaca na câmera e todos ficam encantados comigo, acredita que o sem noção acha que é minha "cor", como ele denomina, é que faz o meu sucesso, e ainda fala como se eu fosse uma atração turística exótica. - Vick revira os olhos ao colocar a pizza sobre a bancada, me aproximo e agarro seu pescoço, dando um abraço apertado e um beijo em seu rosto.
- Você faz sucesso pela sua simpatia e seu jeito meigo de ser, ele tem sorte de querer trabalhar com ele. - Sorrio e vejo os olhos do meu amigo lacrimejarem.
- Você veio aqui para te animarmos e é você que me coloca para cima, Sa, você não existe, minha amiga.
- A Safira está certa, meu amor, você é um homem único. - Rafa lança um sorriso e me concentro para manter o foco nessa conversa, sei que no fundo eles pensam que sou fraca, mas o que fazer quando amamos alguém?
- Esse é o meu homem! Mas, chega de melancolia por aqui, quero falar da sua viagem! Já sabe onde vai ficar? Que dia você vai? - Victor diz com sorriso no rosto.
- Já está tudo acertado com a faculdade, minha passagem está em mãos, vou ficar em um pequeno apartamento estudantil com outros brasileiros, acredito que será uma aventura, porque ninguém se conhece.
- Nossa que fantástico, quero diversas fotos, imagina se você encontra um brasileiro lá e se apaixona? - Vick diz sorridente.
- Victor, eu sou casada! Mesmo com os problemas, ainda tenho um marido. - Explodo de raiva.
- Ok, mas isso é muito relativo, hoje você está, amanhã pode não estar, e vamos combinar, seu marido é um completo babaca, você nutre um relacionamento abusivo e não percebe, deveria deixá-lo logo de uma vez. - Ele fala me servindo um pedaço de pizza.
- Me deixa em paz, Victor, você só diz isso porque nunca gostou do Léo, desde a escola implicava com o nosso namoro.
Caminho até o sofá e me jogo com o prato nas mãos.
- Ele só quer te proteger, Safira, isso se chama preocupação, e se pensarmos bem, esse cara sempre foi uma pedra no sapato, com seu ciúme possessivo e sua paranoia, lembro do dia em que te cumprimentei e ele quis cair na briga. - O Rafa fala sério.
- Viu, até o Rafa concorda comigo. Quantas vezes você dormiu aqui em casa para não ficar sozinha? Ou pior, para que ele não te batesse? - Victor diz com nojo em seu olhar. - Aquele troglodita deveria estar atrás das grades isso sim, e o pior é que quando ele souber da viagem ficará furioso, tenho até medo do que pode acontecer.
- Ele vai me apoiar. - Suspiro sem acreditar em minhas próprias palavras.
- Isso é o que você quer acreditar, ele só pensa nele mesmo, o Victor está certo, ele não prioriza suas necessidades, se abalar o mundo dele, as coisas mudam de figura e creio que você merece muito mais. - Rafa diz ao sentar ao meu lado argumentando muito bem.
Suspiro com ar de derrota.
- Dois contra um, não vale. - Termino de comer a pizza.
- A verdade dói, não é? Mas enfim, vou me calar, vamos comer uma pizza enquanto assistimos ao filme, hoje vou te dar um desconto. - Victor pisca para mim e coloca meu filme preferido de comédia, "As branquelas". Deitada no sofá, com os olhos pesados, encaro a tela da TV, o barulho do filme se distancia aos poucos e sem notar mergulho em um sono profundo.
Desperto, de repente, e olho o ambiente ao redor, confusa. Será que estou sonhando acordada?
Encaro meu reflexo no espelho que está sobre uma cômoda antiga, acaricio o móvel para sentir se isso é real, e inspiro profundamente, consigo sentir o cheiro de madeira pura invadir minhas narinas.
Toco o espelho com as pontas dos dedos ao observar minha face exposta, como um quadro na parede. Surpreendo-me com meus cabelos ordenados por uma trança delicada, dando forma ao meu rosto. Coloco a mão sobre meu peito, apanhando o estranho medalhão preso em meu pescoço.
Levanto-me da poltrona confortável, caminho pelo quarto observando algumas pinturas espalhadas nas paredes, me aproximo da janela e sou surpreendida com uma bela vista das montanhas.
Agora tenho a certeza que estou perdida em um sonho, meus pensamentos são interrompidos por algumas batidas na porta, e antes que faça qualquer coisa, vejo uma garota com cabelos curtos e olhos castanhos escuros entrar no quarto.
- Sra. Mardell, seu marido está a sua espera na carruagem. - A garota de olhos castanhos escuros faz uma breve reverencia ao se aproximar e a encaro confusa.
- C-como? Você deve estar se confundindo, sou a Safira, não tem nenhuma "Sra. Mardell" por aqui. - Digo com um tom assustado, fazendo aspas no ar, e a jovem arregala seus olhos mais espantada que eu.
- Perdoe-me, senhora, quem é Safira? -A menina me encara com as bochechas rubras, mas antes que tenha a chance de responder, somos interrompidas por um rapaz com os cabelos castanho escuros e olhos cor de avelã.
Observo os trajes de época do homem recém-chegado e apenas nesse momento noto que também estou com roupas de uma moça do século 19. O vestido verde escuro balão se contrasta com o corselete que se alinha ao meu busto. Encaro tudo isso ainda perdida, mas quando me encontro com o olhar do desconhecido a minha frente tenho uma sensação confortável, sentindo uma súbita e inexplicável alegria.
- Brenda, deixe-me cuidar da Sra. Mardell, diga ao meu irmão que logo ela estará a caminho da carruagem. - Os olhos cor de avelã do rapaz me fita, e de repente ele segura a minha mão direita e a beija suavemente.
Seus lábios macios fazem com que ondas elétricas percorram pelo meu corpo, e enrubesço sem ao menos saber o porquê. Meu coração acelera por um segundo quando ele passa seu polegar sobre as costas da minha mão, e solta, enquanto seus olhos intensos penetram os meus.
Sua energia me puxa aos poucos para si e de repente sinto vontade de me jogar em seus braços, esse desejo proibido ganha forma e não entendo o que está acontecendo comigo. Somos atraídos como um magnetismo indescritível, e por um segundo pressinto que nossos corpos já se conhecem. Uma corrente de eletricidade atravessa cada músculo do meu corpo, e de repente sinto uma ponta de tristeza me atingir ao saber que tudo isso não passa apenas de um sonho.
- Como desejar, senhor. - Ouço a jovem dizer. Ela se reverencia e sai do quarto.
- Meu amor, estava com tanta saudade, senti-me ludibriado quando descobri que estava de partida, vós não quereis mais fugir?
Ele me envolve em seus braços e entrelaça seus dedos em meu cabelo, trazendo-me para perto de si. Minha cabeça se aconchega em seu peitoral e fecho os olhos sentindo-me completa pela primeira vez, a confusão paira em meus pensamentos, mas como isso é um sonho, quero desfrutar cada segundo dele.
Coloco minhas mãos sobre seu rosto e o acaricio. Nossos olhares se encontram e mesmo com o silêncio entre nós, permanecemos conectados. Levanto a cabeça e encosto meus lábios sobre os seus, entregamo-nos aos beijos completamente apaixonados e atraídos um pelo outro.
- Com você eu vou para qualquer lugar. - Digo sem pestanejar, dominada pelo calor do momento.
- Então precisamos ir, Edgar se zangará ao notar nossa ausência, vamos rápido antes que ele apareça. -Ele se afasta e entrelaça seus dedos aos meus, mas fico paralisada ao sentir uma dor súbita invadir meu peito.
Um medo inexplicável se instala de repente e fico paralisada ao senti-lo crescer a cada segundo. Não consigo compreender tudo o que está acontecendo aqui. É difícil com a montanha russa de emoções tomando conta do meu corpo.
- Algo está errado.... Precisamos ficar, o que está havendo? E quem é Edgar? - Falo disparada.
Meu príncipe desconhecido me puxa para o canto da sala, escondendo-nos ele faz sinal para me calar e me abraça forte.
- Ele está vindo, precisamos ficar escondidos, tudo ficará bem se ficarmos juntos. - Ele sussurra em meu ouvido.
- Vitória! Onde você está? - Uma voz familiar se aproxima, e ao ouvi-la meu corpo se comprime. A onda de medo esmaga meu peito e me solto dos braços do rapaz desconhecido em uma procura desesperada pela saída.
- Meu amor, não! - O rapaz tenta me segurar, mas fico paralisada ao ver outro homem de cabelos negros e olhos castanhos mel entrar na sala, ficando a minha frente.
- Ramonn... Você pretendia fugir com a minha esposa? - Os olhos do homem de cabelos negros enchem-se de fúria. - Meu irmão, esperava tudo de você, menos isso.
- Edgar, deixe-nos ir, ela não te ama. Por favor, lhe peço um pouco de compreensão, meu irmão, não precisamos terminar assim. - Ouço tudo em silêncio e vejo uma arma empunhada nas mãos do homem à minha frente.
- A Vitória é minha e sempre será, seja nesta ou em outra vida, jamais a deixarei ir. - Ele aponta a arma em direção ao meu peito, meu coração acelera e Ramonn me puxa para seus braços.
- Não importa como, sempre nos encontraremos, te amarei por toda a eternidade. - Sinto os lábios de Ramonn selarem os meus e no segundo seguinte, um barulho de tiro ecoa, e no mesmo minuto, perco o ar.
Suando frio e sem respirar, acordo desesperada, como um reflexo, eu tateio meu peito à procura da bala que senti atingir o meu coração. O vazio me invade e não consigo conter as lágrimas que teimam em cair, minha mente gira, e sinto meu estômago embrulhar, enquanto uma tristeza de perca me agarra.
- Calma, Sa, eu estou aqui. - Sinto Vick me abraçar, enquanto suas mãos acariciam meu cabelo, choro desesperadamente, sentindo-me perdida. – Foi só um pesadelo, já passou... Calma.... Está tudo bem.
- Não foi só um pesadelo. - Murmuro agarrando-me ao meu amigo. - Foi bem mais forte que isso. - Sussurro para mim mesma.