/0/6774/coverbig.jpg?v=feab3ca0aea2963cd6693c22a7d600dc)
Por algum motivo que desconhecia - não sabia o nome do sentimento ou das sensações que andava tendo - Luca não parecia mais a mesma criança. Havia uma seriedade no olhar, um controle nos gestos e uma timidez na fala. Vacilava para decidir algo. Ultimamente, repetia a expressão "não sei" para quase tudo.
- Luca, quer comer melancia? - perguntou uma das irmãs.
- Não sei - respondia Luca.
- Luca, onde você enfiou o meu gibi? - gritou o irmão.
- Não sei.
- Eu vou te dar um soco! - ameaçou ele.
- Não sei...
- Luca, já escovou os dentes? - quis saber a mãe; mãos na cintura.
- Não sei! - respondeu, agora já se irritando.
Espiava pela janela, para o lado do morro. Chovia de balde. Se não fosse cedo da manhã, Dona Lola deixaria os filhos correrem na chuva e depois os chamaria para dentro, esperando-os com leite quente e mel.
- Você não me responda assim, Luca! Como que não sabe se escovou ou não os dentes? Pois se não lembra, vai e escova de novo! Já! - ordenou a mãe, apontando para uma pia que servia de lavabo no canto da cozinha.
Luca deitou um beiço enorme, franzindo a testa e, batendo os pés, saiu a passos largos, obedecendo Dona Lola.
- Merda de chuva!
Os irmãos, que assistiam televisão, gargalharam da besteira que Luca disse.
- Olha a boca! Vou ter de lavar com pimenta? - ameaçou a mãe.
- Chuva de merda! - respondeu Luca, com mais determinação, afrontando a mulher.
Os irmãos arregalaram os olhos e riram aos saltos da audácia de Luca.
- Ah, é? - Dona Lola abaixou-se, tirou o chinelo havaiana do pé e o laço comeu.
Chorando, Luca correu para o quarto e escondeu-se embaixo das cobertas.
- Aprendeu, agora, que não é pra dizer palavrão? - gritou Dona Lola, desafiadora.
- Nã... uh, uh, uh... sei... - respondeu Luca, entre soluços.
Pois bem, e fora a chuva que deixara Luca com tanta irritação. Não poderia ir para a rua até que a chuva parasse. Não poderia ver Vivi... Ah, não era Vivi que queria ver. Era Mirela.
Era Mirela que Luca enxergava, abrindo ou fechando os olhos. Era o riso daquela menina que fazia sumir o som da chuva. Era a voz dela que deixava Luca sem saber como se mexer. Eram os olhos dela que faziam Luca não atinar mais nada, a não ser dizer, quase sempre, "não sei".
Como isso estava irritando todo mundo! Vivi lhe dava uns empurrões. Chamava-lhe de pateta, de múmia, de boca-aberta. E Vivi cansou, porque Luca nem sabia mais fazer bolinhos de barro direito, e não aceitava mais os chocolates com gosto de sabão que tentava lhe empurrar. Foi a gota d'água para Vivi o dia em que Luca disse que não queria mais aquelas brincadeiras de sempre, pois eram muito bobas.
A verdade é que Luca não gostava do papel de idiota que desconfiava fazer, perto de Mirela. Mirela e Vivi eram mais velhas, mas Luca pensava: "Bobo, tudo isso é bobo." Então, seu desconforto lhe irritava. Virava as costas e saía marchando; beiço pendurado.
Demorou tanto para Luca ter coragem... O dia, finalmente, chegou. Luca passou pela frente da casa de Vivi, pisando em ovos, para não chamar a atenção da bocuda. Nem olhou para os lados. Com alguns brinquedos nas mãos, atravessou o portão da casa de Mirela e subiu as escadas, até alcançar a porta da frente. Bateu. Ninguém. Bateu de novo. Alguém veio. Ouviu os passos. A porta abriu. Era a mãe de Mirela.
- Oi, a Mirela está? - de um rosto que pegava fogo, saiu uma voz esganiçada.
Era medo ou emoção? Não entendia.
A mãe da menina chamou-a e Mirela veio. Era um anjo. Luca sorriu, timidamente, pensando que o céu existia.
- Oi.
- Oi! - a voz confiante da garota contrastava com a insegurança de Luca.
- Quer brincar?
- Quero. De quê?
- Não sei.
- Podemos brincar com as minhas bonecas?
- Pode ser - Luca deu de ombros.
- Vem! - Mirela puxou Luca pela mão e parece que tudo ficou escuro. O mundo não existia mais. O único ponto iluminado eram as duas mãozinhas grudadas.
Voaram para a garagem, onde Mirela costumava brincar com as bonecas, sobre um cobertor estendido no chão. Sentaram-se e ficaram criando diálogos entre as bonecas. Luca tentava prestar atenção nas brincadeiras, mas não conseguia tirar os olhos de Mirela. "Meus Deus...", pensou, suspirando. De repente, falou com muita convicção:
- Quero brincar de casinha. As bonecas podem ser nossas filhinhas e eu sou o pai e você, a mãe.
- Ah, mas eu não sei... - disse Mirela, soltando os braços e fazendo um biquinho. - O que a gente tem que fazer?
Os olhos de Luca se iluminaram.
- Eu te ensino.
Pegou os brinquedos, começou a falar com as bonecas como se fossem seus filhos, imitando o seu pai. Orientou Mirela; explicou que era só imitar a mãe dela. Meio contrariada, a menina aceitou. Passados alguns minutos, Luca falou:
- Tá, agora já é noite. É hora de dormir.
- E o que a gente faz?
- Deita e dorme.
- Mas se você está imitando teu pai e eu estou imitando minha mãe, quer dizer que teu pai vai se deitar com a minha mãe? Isso não pode.
- Pode, sim, é só de brincadeira - Luca já tinha se esparramado sobre o cobertor. - Vem.
Meio contrariada, Mirela deitou-se devagarinho ao lado de Luca, com os olhos muito abertos. Luca sentiu o coração batucar. Encostou-se na amiguinha, e com uma coragem e um atrevimento que não entendia de onde vinha, virou-se de lado e pôs o braço por cima da barriga dela. Não se ouvia um som. Parecia que o mundo tinha acabado. Luca relaxou e começou a sentir sono. Fechou os olhos. Nossa, nem o Natal se comparava àquele momento! Mirela ergueu o corpo, num salto. Olhou para Luca e fechou a cara.
- Não quero mais brincar disso. Não gostei.
O rosto de Luca tornou a ficar vermelho. Devagar, levantou-se, juntou seus brinquedos, enquanto Mirela penteava os cabelos de uma boneca, distraidamente.
Luca não quis perguntar e nem responder nada. Olhou para Mirela, mas ela não ergueu a cabeça.
- Eu vou pra casa.
- Tchau - disse Mirela, secamente, sem olhar para Luca.
Triste porque a menina nem olhou para sua cara, Luca baixou a cabeça e saiu a passos miúdos e silenciosos, sentindo o coração quebrado. Foi o primeiro pedaço, de muitos, que se soltou e caiu em algum lugar que não dava para alcançar, lá dentro do peito, contraído e dolorido. Luca descobriu que o coração era um quebra-cabeça, de onde se soltavam pecinhas que poderiam se perder. Ficou com medo de perder uma delas, para sempre. Tinha de encontrar, um dia, a colinha usada para consertar coração.
Luca chegou em casa, o nariz quase arrastando no chão. Passou pelo meio de todos e foi direto para o quarto. Nem deu por conta de que o pai havia chegado. Ele trabalhava na capital e só conseguia vir nos fins de semana. A criança deitou-se e cobriu o corpo todo, deixando apenas o topete de fora. O pai entrou. Era um homem alto, forte, com cabelo liso e grosso. Ele sentou-se na beirada da cama, fez cócegas em Luca, que se contorceu, sem rir.
- Cadê o bebezinho do pai? - perguntou, carinhosamente.
- Tô com sono - resmungou, sem se virar.
Seu Tomé pousou a mão na perninha de Luca, pensativo. Ficou ali um pouquinho. Será que Luca queria mesmo dormir ou estava triste com alguma coisa? Estranho... Ele não lembrava se alguma vez viu Luca triste. Saiu, olhou a mulher e deu de ombros. Ela balançou a cabeça, contrariada.
- Seja lá o que for, é coisa de criança. Passa.
- Nem perguntou se eu trouxe bala...
- Deixa, homem. Vai ver só! Amanhã levanta igual um furacão e sai por aquela porta atropelando os irmãos, atrás das amiguinhas.
- Mas Luca é sempre tão alegre...
- Briga de criança, só pode. De certo se desentenderam por causa de algum brinquedo.
- E Luca é de briga? - quis saber o pai.
- E você não conhece Luca? - quis saber a mãe.
- Eu não estou aqui o tempo todo - retrucou ele.
- Pois eu estou ocupada o tempo todo - rebateu a esposa.
- Eu também trabalho, esqueceu? - o marido levantou a voz.
- Eu também!
- Mas eu não disse que não! - gritou.
- Nem eu! - gritou ela, mais alto, ainda.
E a bateção de boca prolongou-se, aí já vieram assuntos que nem diziam respeito. Tua família, minha família. Teus filhos. Os filhos são teus, também... Essas coisas.
Os filhos mais velhos assistiam Tom e Jerry na tevê, muito encolhidos. A mais velha disse para os outros:
- Nem um piu, senão vai sobrar pra nós - os outros obedeceram.
Do quarto, Luca, fingindo dormir, ouvia tudo. Entretanto, não era com a discussão que se importava. Era com aquela dor, aquela dor nova e diferente. Com o rosto mergulhado no travesseiro, escondia as lágrimas e abafava os soluços.
Foi-se o fim de semana. Luca nem quis brincar com o pai, nem com os irmãos. E não pôs o nariz para fora. Só queria assistir desenho animado. De vez em quando, ia até a janela da sala e espiava a rua. Com surpresa, enxergou as irmãs conversando com Mirela. Elas riam. Luca emburrou-se. Enxergou Vivi na janela de sua casa. Era um olhar de lá e um olhar de cá. Vivi também não tinha a cara boa. Por certo estava com ciúmes, igual Luca.
O pai de Luca foi para Navegantes no primeiro ônibus da segunda-feira. Era noite, ainda. Ele costumava acordar Luca com um beijo de despedida, mas como não recebeu nenhuma atenção durante o fim de semana, achou melhor deixar a criança dormir. Por certo, alguns dias lhe fariam bem.
Luca foi tentando acostumar-se com o buraco no coração. Num dado momento, lembrou dos filmes de faroeste que a família assistia reunida. Imaginou os tiroteios, os duelos, o mocinho ferido, o bandido morto. Pôs a mão no peito: "Levei um tiro", pensou.
- Levei um tiro - disse para uma das irmãs, a Morena.
- Quê? - perguntou a irmã, sem entender, com um pirulito pendurado no canto da boca.
- Vão brincar na rua! - gritou a mãe. - O que querem dentro de casa? Olhem o sol lá fora!
Morena tinha oito anos, e foi por ela que Luca ficou sabendo que Mirela tinha, na verdade, sete anos. Pensara que eram seis. Soube por acaso, porque as irmãs conversavam igual duas caturritas: "Mirela tem isso, Mirela tem aquilo; Mirela isso, Mirela aquilo", arremedava Luca, revirando os olhos e repuxando a boca. E depois piorava a imitação, macaqueando: "nhenhenhe, nhenhenhenhe..."
- Eu estou esperando minha mamadeira, mãe! - pediu Luca.
- Luca, você não é mais um bebê. Por que não toma numa caneca?
- Não! Eu quero na mamadeira - cruzou os braços, fazendo uma cara brava.
- Tá bom - resignada, começou a preparar a mamadeira de café com leite.
Enquanto isso, Morena foi até a frente de casa e voltou de mãos com a amiguinha nova, Mirela. Entraram na cozinha. Luca estava à mesa e, quando viu a menina, sentiu a cabeça inteira queimar. A mãe virou-se, esticou o braço e falou:
- Toma sua mamadeira, Luca.
- Mãe! Tá louca? - Luca olhava para a mãe, para a irmã e para Mirela, morrendo de vergonha e sentindo muita, muita raiva.
- Como é que é?
- Essa mamadeira não é minha - olhava só pra Mirela, agora, pois tinha que se explicar para ela. Mirela franziu a testa. Morena deu um tapa na própria testa. - Serve na minha caneca.
- Você não tem caneca, Luca.
- Tenho, sim! - fez um beiço, quase chorando. Os lábios começaram a tremer.
- Você tem é o meu chinelo pra lamber essa sua bunda! - Dona Lola puxou da sandália.
Finalmente, sentindo a maior vergonha do mundo, sofrendo tamanha humilhação, desatou no choro e pulou da cadeira.
- Eu não quero mais! Não sou bebêeeeee...
Antes que o chinelo lhe alcançasse, correu para o seu refúgio. Só a cama lhe entendia. Só a cama lhe protegia. Agora, Luca tinha duas certezas: nunca mais, nunca mais queria ver aquele rosto lindo da Mirela - porque não conseguiria; e nunca mais, nunca mais queria enxergar uma mamadeira.
Luca descobriu que um dia tudo muda. De verdade. Um dia, aquela coisa que faz a gente ser feliz do nada, vai embora: a inocência.