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A irmã mais velha, Clara, arrastava Luca pela mão. Os pezinhos da criança iam travando rua afora, deixando marcas no chão batido e levantando poeira. Carregava uma pastinha atravessada no tronco, sobre um jaleco branco com as iniciais da escola; usava uma bermuda bege de poliéster. Sentia calafrios, e era de medo. Clara já estava perdendo a paciência, mas não brigou. Lembrou-se do seu primeiro dia na escola, quando também queria fugir, e compreendeu a angústia de Luca.
Chegaram à velha escola de madeira, pintada de verde. O pátio estava cheio. Mães, crianças, professoras, irmãos mais velhos. Luca arregalou os olhos e apertou a mão da irmã. Com o olhar, suplicou que não a deixasse. Clara sorriu com tristeza. A criançada fazia uma algazarra, correndo, pulando e gritando. Só os calouros se mantinham quietos, observando tudo, mas apenas Luca segurava o braço da irmã com as duas mãos, com muita força.
Uma sirene alta tocou e os maiores se alvoroçaram. Mães se despedindo; professoras mandando fazer fila, indicando lugares em frente à bandeira do Brasil. O coraçãozinho de Luca pulava.
- Tá, agora eu preciso ir - disse Clara.
- Não! - Luca puxou o braço da irmã com força.
- Sim, Luca, fica aqui na fila. Não fica com medo. Tá tudo bem. A mana vem te buscar.
- Não! - desatando num choro, Luca batia os pezinhos. Os coleguinhas começaram a olhar.
- Tchau. - Com força, Clara desvencilhou-se das mãos de Luca e sumiu rapidamente da escola, sem olhar para trás, porque também quis chorar, mas Luca não poderia ver.
Luca não conseguiu enxergar o rosto da professora que se abaixou tentando lhe acalmar. Estava com os olhos carregados de lágrimas e tudo o que via eram vultos.
- Por que você está chorando? Está tudo bem - disse a jovem professora, secando o rostinho de Luca com as próprias mãos.
- Eu quero ir embora.
- Não precisa ter medo. Nós vamos cuidar de você, e aqui está cheio de amiguinhos novos. Você vai aprender um monte de coisas legais.
Luca foi acalmando-se, acreditando na professora, a sua professora. Uma mulher alta e magra. Tinha uma boca carnuda e era um pouco dentuça. Usava um coque alto. Ela pegou a mão de Luca e ficou segurando-a. Estavam no último lugar da fila.
- Vamos cantar o hino e depois iremos para a sala de aula - falou a mulher, apontando para uma sala bem à sua frente.
Luca assentiu, com a cabeça, e até deu um sorrisinho. A professora pegou um lenço do bolso da saia azul e fez Luca assoar o nariz. Sorriram. Luca frouxou a mão; sentiu-se em segurança.
Aquilo parecia bom. Sim, Luca pensou: "Acho que isso é bom. É, acho que é legal." Aprovou com um sorriso, enquanto comia um pão com patê, tirado de um saquinho plástico escrito "cristalçúcar". A gurizada corria feito louca. Era recreio. Luca mal terminara o lanche e alguém lhe pegou pelo cangote. Desequilibrou-se e quase caiu do banco.
- Vem! Vem brincar de pega-pega, Luca!
Luca riu e enfiou o saquinho do lanche no bolso do jaleco branco - sua mãe havia alertado: "não jogue lixo no chão! Se a mãe souber que você fez isso... já sabe" - e saiu em disparada atrás de um bando de coleguinhas suados e barulhentos.
A escola surpreendeu Luca. Gostava tanto que nunca faltava, a não ser que estivesse doente. Ou com piolhos. Só não valia dor de dente. Se fosse dor de dente a mãe de Luca forçava a ir pra aula com um pano enrolado em volta da cabeça. Naquela época ninguém ria disso. Nem dos cadernos encapados com embalagem de arroz ou papel de presente, nem das cabeças enfaixadas, nem dos cabelos cortados por causa dos piolhos, nem dos chinelos de dedo. Todo mundo era pobre. Todo mundo comia pão com chimia, ou uma banana, ou bolacha maria. Eram pobres, mas ninguém passava frio, nem fome, nem vergonha. E ninguém conhecia alguém que vivesse na miséria, que tivesse morrido de frio ou de fome, que tivesse sido maltratado porque não tinha dinheiro. Nada disso existia na infância de Luca. Mas outras coisas já existiam. Ah, sim, essas outras coisas existiam.
Nem todas as crianças tinham a alma doce e sem malícia como Luca. Havia uma ou outra criança que já vinha com o espírito manchado pela maldade, pela crueldade. Descobrir, ainda na infância, que o adulto malvado também já foi criança e que, talvez, tenha sido assim desde que começou a falar, é quase inacreditável. Ora, mas por que alguém se preocuparia? A vida era tão divertida! Brincar no recreio, aprender coisas novas, festinhas de aniversário, piqueniques... Como é bom ser criança! Era o que Luca pensava: "Meu Deus... como é bom ser criança... não deixa eu crescer, Paizinho do céu." Luca tinha um certo medo de crescer. "Adulto é complicado", "adulto briga muito", "adulto não se diverte", era o que acreditava, observando seus pais e os pais dos seus amigos.
Os ventos fizeram andar o tempo. Carregaram os dias e as noites. Trouxeram e levaram as estações. A lua dançava no céu, trocando de cara; as estrelas giravam. O pai de Luca lhe empoleirava nos ombros e apontava para o céu noturno:
- Olha lá, Luca! Tá vendo aquelas três estrelinhas? São as Três Marias. - Luca abria a boca, com espanto, depois sorria. - Lá, mais no alto, tá vendo? É o Cruzeiro do Sul. Quer ficar de pé nos meus ombros pra ver se alcança a lua?
- Para, pai... A gente não alcança.
- Amanhã, se tiver nuvem, o pai vai pegar uma vassoura bem comprida e varrer o céu.
- Que bobagem, pai... Eu já sou grande. Eu sei que o senhor não pode varrer o céu - disse, sorrindo.
- Porque sua mãe quebrou o cabo da vassoura - cochichou ele. - Voando - falou um pouquinho mais alto.
- Eu ouvi isso! - resmungou dona Lola, fingindo estar brava.
Luca e seu Tomé caíram na risada.
Não se dava conta, Luca, de que o tempo passava tão depressa. Nem percebera a diferença que fazia já estar se aproximando dos 9 anos. Parecia que tudo era e poderia ser sempre igual: dormir, acordar, comer, estudar, brincar, dormir... Não imaginava que, para alguns, poderia não ser fácil existir.
O terceiro ano na escola estava sendo muito bom. Matérias novas e uma professora muito boazinha. A maioria dos colegas vinham juntos desde a primeira série. O recreio se tornara mais divertido, ainda, porque como estava maior, Luca já recebia convites para brincar com os estudantes da quarta série. Era a série da sua melhor amiga, Vivi. Continuaram a amizade, que voltara a se fortalecer depois que Mirela e sua família se mudaram.
Foi Vivi que gritou por Luca e disse: "Vem cá!", ao que Luca atendeu prontamente. Vivi, que era grande e gorda, deu uns passinhos para o lado e de trás dela surgiu uma menina morena, de cabelos cacheados e olhos verdes, pele branca como a neve. Luca parou de supetão, trancando a respiração.
- Essa aqui é a minha colega nova, a Cíntia.
Luca sentiu aquela coisa estranha, de novo. Aquela sensação que teve quando viu Mirela pela primeira vez, só que mais forte, muito mais forte. O rosto ficou quase roxo, depois branqueou, o sangue fugiu. Já não gostava mais daquela sensação. Era horrível não conseguir fazer nada; nem falar, nem se mexer; nada. A menina deu o sorriso mais lindo que Luca já havia visto na vida. Ã? Mirela? Quem é Mirela?
- Luca! Ei! Ou! - Vivi estalou os dedos. - Vamos brincar de pega-pega?
- Ã... Não, não. Eu vou... comer minha merenda. - Com vergonha, por não conseguir agir com naturalidade, voltou para o seu banco embaixo de um enorme cinamomo.
Vivi fez uma cara de surpresa e olhou para a colega. Deu com as mãos e com os ombros. A menina apenas sorriu. Foram atrás dos outros colegas que fugiam de um menino maior, enfurecido. Vivi percebeu que ele pretendia bater nos seus amigos e, grandalhona do jeito que era, de meter medo, mesmo, pelo tamanho, puxou o garoto pelo jaleco e deu uma gravata nele, jogando-o no chão. Luca observava de longe. Só balançou a cabeça, em reprovação. O sinal tocou e todos voltaram para a sala, menos o garoto que apanhou, pois precisou do socorro de uma merendeira. Estava com os cotovelos esfolados e o jaleco rasgado.
Os dias se passaram e Luca sentia um aborrecimento que se tornara aflição. No entanto, aos poucos foi se soltando e a presença de Cíntia já não lhe deixava mais sem reação. E isso era bom, porque quando brincavam de pega-pega e era a vez de Luca correr atrás, a primeira pessoa que pegava era Cíntia. Era tããão bom segurá-la pelo braço, ou pela mão, ou pelo jaleco, mesmo. Poderia tocar só no jaleco. Isso tornava o dia de Luca o mais feliz que poderia existir.
Entretanto, ter de guardar isso para si lhe deixava com umas coisas esquisitas se agitando no estômago e na garganta, o que Luca só entenderia bem depois que eram borboletas voando dentro de si. Sim, lindas e coloridas borboletas. Como não contar para alguém sobre aquele sentimento tão bom, que lhe roubava o chão, que fazia seus olhos brilharem, que provocava risadas soltas e sonhos coloridos? Foi por isso que Luca procurou Vivi numa tarde, na casa dela.
Vivi estava sentada na escadaria que dava acesso à casa. Estava meio frio e as sombras do entardecer, junto com os musgos nas pedras, davam um ar triste para o cenário daquela hora que seria inesquecível.
A cara fofa de Vivi, com seus olhinhos miúdos, observavam Luca, com curiosidade. Luca estava tão feliz!
- Sabe a Cíntia? - começou Luca.
- Sim, sei, pois é a minha colega - respondeu Vivi, num tom seco e debochado.
- Pois, é - enrolava Luca.
- Pois é o quê?
- Eu gosto dela.
- Tá, eu também gosto dela.
- Não, mas eu quero namorar com ela - disse Luca, finalmente.
Vivi franziu a testa, apertou os lábios e fitou Luca por alguns segundos. Depois, jogou a cabeça para trás e soltou uma enorme gargalhada, que assustou até os passarinhos no pomar.
- Não pode - disse Vivi.
- Por quê?
- Porque ela é menina, ora essa!
- E daí?
- E daí que você também é menina! - Vivi deu uma palmada na própria coxa, achando Luca muito idiota.
Luca sentiu o sangue sumir do rosto, mas continuava sem entender.
- E o que é que tem? - perguntou, sem alterar-se.
- Como assim o que é que tem? Menina não pode namorar menina - respondeu Vivi, cada vez mais brava.
- Por quê?
- Porque é errado! - gritou Vivi, enfurecida.
Agora, sim. Agora Luca ficou com o rosto pegando fogo. E percebeu que não entendia nada, que a conversa de Vivi era totalmente irracional, ou que era Luca, mesmo, que não sabia coisa alguma da vida. Olhou por quase um minuto nos olhos de Vivi, que não desviou o olhar. De repente, achando a situação completamente ridícula, talvez hilária, ou patética, até, Vivi soltou nova gargalhada, retumbante. Luca virou-se e, sentindo uma repentina e profunda tristeza, correu.
Luca correu, correu, correu. Entrou em casa, quase jogando a mãe, que estava no caminho, para o alto. Enfiou-se no quarto. Não podia bater a porta, pois o quarto só tinha cortina. Luca chorou. Chorou, chorou, chorou. Chorava baixinho, engolindo as lágrimas e os soluços. E o mundo todo parecia ter acabado num dilúvio amargo.
Como, Luca se perguntava, no outro dia pela manhã, enquanto tomava uma batida de banana, antes de ir para a escola, como ir pra aula daquele jeito? Não queria mais ver a cara de palhaço de Vivi. Tinha medo de Vivi, não do seu tamanho, mas do tamanho da sua risada, do tamanho da sua boca e das palavras horríveis que saíam dela.
A mãe olhava Luca de soslaio, afinal, era quem mais fazia barulho de manhã. Já acordava fazendo arte e só parava depois de pegar no sono. Os irmãos também acharam esquisito seu silêncio. As irmãs mais velhas estudavam à tarde, mas Luca e o irmão iam pela manhã. O irmão, Tota, enfiou a pasta embaixo do braço e saiu rápido. Toda vida achava que estava atrasado, sempre afoito. Não esperava Luca, que sempre precisava correr para alcançá-lo. E naquele dia não foi diferente, pelo contrário, correu mais, ainda, porque não queria encontrar Vivi pelo caminho, não queria ficar só com aquela menina malvada. Isso era algo que Luca entendera: Vivi era má. Era uma bruxa.
Tudo correu bem. Nem enxergou Vivi. Talvez ela não tivesse ido à escola. Luca estava a salvo e, durante a aula, até esqueceu do ocorrido e relaxou.
Durante o recreio, a criançada reuniu-se para o famoso e predileto pega-pega. Nem sinal de Vivi. Luca poderia brincar em paz. Enxergou Cíntia no meio do pátio, ela também estava brincando. Era muito delicada, não tinha gestos bruscos, não corria feito um moleque, o cabelo estava sempre bem penteado, o jaleco muito limpo e perfumado. Não gritava, não ria alto e muito menos gargalhava. E estava sempre sorrindo. Sempre.
Quando chegou a vez de Luca pegar, a primeira coisa que fez, inconscientemente, foi correr para segurar Cíntia. Quando aconteceu, só ouviu uma voz alta e forte:
- A Luca gosta de ti, Cíntia!
O peito de Luca inchou. Era a voz de Vivi. Luca soltou o braço de Cíntia e as pernas tremeram; coração disparado. Cíntia arregalou os olhos e não disse nada. Não estava entendendo. Seu rosto assustado buscou o de Luca.
As outras crianças se aproximaram, curiosas e risonhas. Fizeram uma muralha humana na volta de Luca e Cíntia, com o cabeção de Vivi, mais alta que todos, por trás.
- Eu também gosto dela - respondeu Cíntia, com uma voz delicada e educada.
- Não, ela gosta de ti como namorada.
Luca havia baixado a cabeça, só conseguia olhar para os pés encardidos no chinelo preto. Cíntia juntou as mãozinhas, preocupada.
As crianças desataram num riso frouxo e começaram a gritar:
- Namoradas! Namoradas! Namoradas!
Luca fugiu da roda e começou a correr pelo pátio, sem saber aonde ir. Queria se esconder, sumir, morrer. Pela primeira vez.
- Deixem a Luca! - ouviram um grito.
Era a primeira vez que escutavam Cíntia gritar. Ela continuava parada lá onde Luca a havia alcançado. As crianças pararam. Olharam na sua direção. Vivi fechou a cara e sumiu. Cíntia caminhou até os outros, afastou-os com as mãos, pegou no braço de Luca, que chorava copiosamente, de raiva e vergonha. Era só uma criança. Apaixonada, mas criança. Como podiam ser tão cruéis? Cíntia voltou a ordenar:
- Deixem-na em paz!
E ninguém ousou desobedecer, pois Cíntia era filha de uma professora e, naquele tempo, os professores eram muito respeitados, eram celebridades na sociedade.
O sinal tocou e cada um dirigiu-se para suas respectivas salas. Luca livrou-se da mão de Cíntia e foi para a sua classe. Não conseguia olhar para ninguém. Com o rosto empoeirado, as lágrimas fizeram um caminho claro através das suas faces.
O mundo era um lugar ruim. Luca perdeu a felicidade naquele dia, naquele pátio.
Perdeu a melhor amiga naquele dia, naquele pátio.
Embora Cíntia a tivesse protegido, sabia que a menina tinha sentido pena, que era educada demais para lhe ofender de algum modo, como Vivi fizera. Por isso, jamais voltou a olhar em seus olhos, apesar de tê-la amado por todo um ano, ainda.
Quando da hora da saída, em que a criançada disparava de dentro das salas de aula como uma revoada de pássaros saindo de uma gaiola gigantesca, Luca agarrou firmemente sua pasta e deixou a escola. Atrás dela, tentando alcançá-la, vinha Vivi, acompanhada de outras meninas.
- Vou agora mesmo na tua casa contar tudo pra tua mãe! - ameaçou Vivi.
Luca, ao ouvir isso, tremeu. Correu tanto que as pernas pareciam não dar conta da sua ansiedade de chegar logo em casa, porque, não, Vivi não podia fazer isso, não tinha o direito. Luca nunca falava sobre si, em casa. Luca era só uma criança, ela não tinha nada para falar a um adulto, ou aos seus irmãos mais velhos.
A porta da cozinha estava aberta, e a mãe estava sentada, tomando uma xícara de café. O salto que Luca deu fez o chão de madeira tremer. Fechou a porta num estrondo, segurando-a contra o batente, por um instante, com todo o peso do seu corpo miúdo. O coração queria sair pela boca, a garganta ardia, por causa da falta de ar. Largou a porta e, entrando no quarto, atirou-se na cama.
Dona Lola levantou-se e parou à porta, boquiaberta.
- O que foi isso, Luca?
Luca, de bruços, escondendo o rosto entre as mãos, só disse:
- Nada! Não foi nada!
Embora Vivi tenha ameaçado contar para dona Lola sobre seu amor por outra menina, Luca nunca ficou sabendo se isso chegou a acontecer. Depois de muitos anos, desconfiou que a vizinha perversa pode ter feito a fofoca, porque isso explicava a forma como, lentamente, dia a dia, os pais foram deixando de lhe amar.