/0/6774/coverbig.jpg?v=feab3ca0aea2963cd6693c22a7d600dc)
Se há algum tempo Luca desejara jamais crescer, e rezava para que o Papai do céu lhe mantivesse criança para sempre, chegou um tempo em que tudo o que esperava era esquecer a infância e alcançar a vida adulta o mais rapidamente possível.
Não tinha, ainda, uma compreensão sobre as intervenções que os pais faziam ou tentavam fazer sobre as suas preferências. Davam-lhe bonecas, brincava com os carrinhos; davam-lhe vestidos, puxava pelos calções. Não se importava com o que pensavam, ou se pensavam, pois não via nada de errado. Que importância tinham seus brinquedos, ou suas roupas? Não viam que ficava mais feliz de calça do que de saia? Para que toda essa frescura? Se isso os incomodava tanto, precisava crescer logo, rápido. "Os adultos são donos do próprio nariz", acreditava. "Gente grande pode fazer o que bem entende", tinha a ilusão.
Por sorte, para lhe ajudar a construir sua caminhada de fuga da infância - "quanto tempo é preciso para deixar de ser criança?", se perguntava, sem imaginar que, às vezes, leva uma vida toda - a família mudou-se e Luca precisou ir estudar em outra escola. Aparentemente, sua vida estava entrando nos eixos. Livrou-se de Vivi, não precisou mais ver Cíntia, nem sofrer por Cíntia. Mas, apesar de ter se entrosado rapidamente com os colegas novos, não criou vínculos com nenhum deles. Não queria amigos. Não queria saber de meninas. Amigos e meninas faziam sofrer. Tinha medo das meninas e não acreditava na amizade.
Assim, quando se deu por conta, os anos foram passando, sem grandes acontecimentos, sem transtornos. Era tão bom viver sem sobressaltos! Era... mas a vida não é assim.
Luca não era invisível, mesmo que tentasse, mesmo que mal respirasse, mesmo que não falasse, mesmo que não se mexesse. Gente como Luca não passava despercebida. Gente como Luca precisava aprender a lição desde cedo; se não fosse em casa, ia ser na rua, mesmo. Ou no discurso, ou na porrada.
No último ano do ensino médio, havia um menino que assediava Luca insistentemente. Queria namoro. Davam-se bem, em sala de aula, mas Luca ignorava sua conversa fiada, seus elogios. Para Luca era muito desconfortável. Não suportava que lhe enxergassem como enxergavam: a adolescente que estava ficando com um corpo lindo, esguio, cheio de curvas; a morena de cabelos curtos que provocava curiosidade e interesse, porque parecia fria e distante, totalmente desinteressada dessa história de meninos e meninas.
Certo dia o colega, Serginho - era o nome do idiota - parado em frente da porta do banheiro das meninas, à espreita, viu Luca se aproximando.
- Dá licença- disse Luca, querendo entrar no banheiro.
Serginho tirou o braço - sorrisinho sarcástico - que estava apoiado no marco da porta fechando a passagem, e deixou Luca passar. Luca entrou sem perceber que ele entrou logo atrás. Apenas sentiu, com pavor, as mãos dele apertando a sua cintura, lhe empurrando contra a bancada onde ficavam as pias.
- Me solta! - forçou as mãos do garoto para se libertar.
- É só um beijinho, Luca. - E sem se importar com o fato de Luca não querer que lhe tocasse, tascou um beijo na boca, à força.
Luca não conseguiu lutar, o rapaz era mais forte. Além disso, ele lhe pegou de surpresa. Não conseguiu se defender. Sentiu aquele beijo rápido, mas que durou o tempo suficiente para lhe causar repulsa. O nojo provocou-lhe uma força enorme, e Luca conseguiu empurrar o colega para longe. Ele mostrou um sorriso nervoso, e conseguindo controlar a raiva pela rejeição (pois quase pulou no pescoço de Luca, para derrubá-la com um soco), frouxou as mãos e abriu a porta, dizendo antes de sair:
- Vai ver só...
Era uma ameaça? Luca respirou fundo, lavou o rosto, olhando-se no espelho por um instante.
- Filho da puta... - Segurou as lágrimas. - Não vou chorar. Não quero chorar. Não posso chorar.
Saiu e foi para o pátio, querendo aproveitar o resto do recreio. Sua turma estava na quadra de vôlei. Estava dirigindo-se para lá quando Serginho, do meio do pátio, gritou para todo mundo ouvir:
- Aonde você vai, sua puta?
Luca incendiou. "Não, eu não estou ouvindo isso." Estacou. Virou-se para o lado do prédio da escola. Começou caminhando devagar e foi apressando o passo. Precisava sair dali, tinha de se livrar daquele garoto infeliz. Só ouvia os gritos dele, alertando os outros que, à volta, ouviam tudo sem nada fazer.
- Olha lá a putinha! Pode pegar que ela deixa a gente beijar!
Luca entrou na escola e jogou-se nos braços da diretora, que vinha caminhando distraidamente em direção à sua sala.
- O que foi, Luca? - A mulher segurou-lhe pelos ombros.
- O Serginho... - soluçava. - Aquele desgraçado me chamou de puta...
A diretora balançou a cabeça, negativamente, e conduziu Luca até sua sala para tentar acalmá-la e entender melhor aquela história maluca. Luca tinha algum mérito, tinha alguma coragem. A diretoria já vinha acompanhando o comportamento inadequado e malicioso de Serginho. Não precisava muito mais, aquela fora a gota d'água: Serginho foi expulso.
Precisava continuar agindo assim? Deveria se calar ou falar? Tinha de aceitar ou denunciar? Luca estava começando a compreender que tudo dependia das circunstâncias. Por exemplo, depois desse acontecimento, Luca passou por algumas situações bizarras. Dois rapazes que faziam o mesmo caminho que o seu, para a escola, lhe seguiram de perto, gritando:
- Oh, "machorra"! Olha pra cá, "sapatão"!
Luca engolia as ofensas e fingia que não sabia para quem essas humilhações eram dirigidas. Luca sabia que não precisava levar um soco. Uma palavra já fazia um estrago bem grande, talvez irreversível, como descobriria mais adiante. Mas Luca não se entregava. Ah, não, senhor, isso Luca não fazia.
Na chegada do ensino médio, tudo ficou não só mais esquisito como mais excitante.
Quando Luca deu, literalmente, de cara, no corredor, com uma loura de olhos azuis e cabeleira estonteantes, a sensação de arrebatamento, que Luca já conhecia muito bem, voltara, de imediato.
- Desculpe - disse para a garota que não conhecia.
- Não foi nada - respondeu a menina, abrindo um sorriso que hipnotizou Luca.
"Meu Deus...", pensou Luca. "Nunca vi menina mais linda..." E Luca, que acreditara que nunca mais cairia numa cilada dessas, ficou de quatro. E de quatro, mesmo. Certo dia, viu que Dóris - descobrira o nome da garota, perguntando para um colega dela - estava com os cadarços dos tênis desamarrados e aproximou-se, falando:
- Deixa que eu amarro para você - ajoelhou-se em frente à menina, que ficou espantada com a situação. Luca tinha a sensação de ter se ajoelhado em frente a uma princesa.
Um calor agradável, uma alegria, um poder lhe dominavam, por ver que poderia servir a menina mais linda da escola, agradando-lhe com as coisas mais idiotas possíveis.
- Ei, o que está fazendo, idiota? - perguntou uma colega.
- Uma gentileza - respondeu Luca, ao levantar-se.
- Palhaçada!
- Obrigada! - disse-lhe Dóris, segurando seu braço. E isso era o que bastava.
Luca sorriu e saiu reproduzindo aquela fala na sua mente: "obrigada"..., "obrigada"..., "obrigada"... Ficou até o fim da aula naquele disco arranhado, sem ouvir uma palavra do professor de Física.
O sinal tocou e a revoada de estudantes iniciou. Luca sentia uma calma agradável. Enquanto a rapaziada passava afoita, batendo nos seus ombros, Luca pendurou a mochila nas costas e andou calmamente até o banheiro. Entrou e ficou se olhando no espelho, distraidamente. Ouviu o barulho de uma das descargas e um abrir de porta. Era... meu Deus... Dóris! Dóris! Dóris... e seus olhos azuis, e sua cabeleira loura e selvagem.
- Oi.
- Oi. - "Oi...", pensou Luca. "Diz mais alguma coisa, idiota."
Mas quem disse foi Dóris:
- Obrigada por hoje. Você é muito legal.
- Não, imagina. Capaz. - "Para de pular assim, coração imbecil!", repreendeu-se, tirando a franja curta e cheia dos olhos.
Virou-se para sair, mas Dóris parou à sua frente. Luca sentiu o coração explodindo na garganta. Tremeu e teve a impressão de que seu corpo crescia, enrijecia. O perfume da garota invadiu todos os seus poros. Dóris inclinou a cabeça, fechou os olhos, roçou seu rosto no rosto de Luca e beijou a sua boca. Uma explosão de sensações dominou Luca, seus pés e mãos incendiaram, seus pelos eriçaram. Os lábios macios e quentes, o gosto maravilhoso daquela boca, o hálito mentolado... Durou um segundo, um minuto? Não sabia, mas queria que fosse para sempre. As pernas estavam bambas. Luca soltou um "ahhh...", quando seus lábios úmidos se separaram. E antes de sair, Dóris tascou mais um beijo, dessa vez rapidinho; sorriu e foi embora.
Luca ficou ali, com a boca aberta, ofegante, sem acreditar. Riu. Com o dedo indicador e o médio, tocou seus lábios. Precisava acreditar. Precisava sentir. Precisava entender que era verdade. Era verdade! Seu primeiro beijo, de verdade! E olhando mais uma vez no espelho, falou: "Ela me ama. Ela também me ama..."; dedos a tocar mais uma vez os lábios, para ter certeza de que não era um sonho.