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Durante a noite, Luca apreciava escutar um programa só de baladas românticas. Pegava no sono, entre suspiros, deixando a imaginação solta, pensando que um dia realizaria seus sonhos. Conheceria uma garota, casaria com ela, teriam filhos... Aí lembrava que não tinha como fazer filhos numa mulher. A realidade batia como um soco no peito. Tinha aqueles malditos seios e... aquela coisa detestável entre as pernas! Rezava, pedindo para um milagre acontecer e acordar no outro dia com um pênis no lugar da vagina.
Infelizmente, no dia, seguinte, olhava e descobria, muito triste, que tudo continuava igual.
Porém, agora tinha Dóris. Ai... Dóris... Que lhe fazia adormecer sobre nuvens, que lhe fazia acordar assoviando, cantarolando. A lembrança da face de Dóris roçando a sua. O beijo... fechava os olhos para reviver a cena, abria-os. Isso que era ser feliz? O olhar de Dóris ao encontro do seu, o rosto inclinado, a boca... Sim, isso sim é que era ser feliz! Sorriu para o espelho, mostrando a língua e analisando os dentes. Pôs a mão em frente à boca e baforejou. Hum... O hálito estava perfeito, os dentes estavam bem limpos e brancos.
Na escola, antes que o sinal tocasse para avisar o início da aula, a gurizada aproveitava para pegar sol, pôr o papo em dia, jogar bola e ficar flertando.
Todo o pátio era cimentado. Não havia um jardim, nem árvores. Era tudo muito frio e cinza. Um vento cortante assoviava entre os dois prédios de dois pisos do colégio. Num ficava a administração, com a diretoria e secretaria. A biblioteca, a sala dos professores, o salão de jogos (para dias de chuva) e o laboratório também eram nesse. No outro, as salas de aula. Entre os dois, os banheiros. Um anexo menor abrigava a cantina. Do outro lado, em mais um anexo, de um piso, porém grande, ficava o ginásio coberto, onde aconteciam apresentações, feiras e jogos de vôlei, basquete e futebol de salão. Também ali aconteciam as aulas de educação física, quando chovia.
Luca avistou Dóris sentada com outra garota, em um banco perto da cancha de vôlei, na área ao ar livre. Chegou nelas e já foi se sentando ao lado da loura. Os jovens não têm a preocupação em dar bom dia, perguntar como vai etc.; essas convenções de adultos. Sorrindo, Luca fez uma pergunta:
- Que friozão, né?
As meninas pararam de conversar e Dóris, puxando a amiga pela mão, disse:
- O sinal já vai tocar. Vem - e deixaram Luca a ver navios.
Franzindo a testa e ficando meio que "o quê???", culpou-se. "Claro, idiota... 'que friozão'... não sabe falar, fica com o bico calado!". Olhou para o lado e viu que um grupo de meninas lhe encarava, soltando risinhos de canto de boca. Algumas eram suas colegas de aula. Fez uma carranca, como quem diz "qual é o problema?". Achou melhor deixar aquelas garotas estúpidas de lado. O sinal tocou e, apressando o passo, chegou na sala antes de todos.
Enquanto os outros se acomodavam em suas classes, a professora largou os livros e a bolsa sobre a mesa, pegou um giz, e começando a escrever no quadro negro, que na verdade era verde, foi explicando:
- Trabalho sobre dna e rna! Em grupo!
Não havia nada que Luca odiasse mais do que ouvir isso: trabalho em grupo. Debruçou-se sobre a classe, em desânimo. O suplício iria começar.
Rapidamente, os colegas começaram a arrastar classes e cadeiras, juntando-as. A algazarra tomava conta. Luca observava os círculos se formando e vigiava quem iria sobrar para ser da sua equipe. Nem sabia por que ainda tinha aquela preocupação de "será que vou ficar de fora?", porque logo enxergava o colega gordo, dentuço e com óculos de fundo de garrafa, sentado bem na frente, quase lhe suplicando parceria; num outro lado, à janela, sua única colega negra, tão constrangida quanto Luca e o gordinho. E essa era sempre sua equipe de trabalhos em grupo. Mesmo quando algum professor orientava a formar grupos de no mínimo quatro alunos, acabava abrindo exceção para Luca, Cristina e Samuel, pois eram a "sobra" da turma. A negra, o gordo e a esquisita.
Luca ficava tão triste... Por que eram rejeitados? Por que os faziam se sentir humilhados? E a tristeza era maior, porque tinha a pele parda e sua mãe era negra. Aquilo não fazia nenhum sentido, mas sabia que o motivo de serem escanteados era o de não serem ou brancos, ou magros, ou por terem uma aparência e comportamento inaceitáveis (a menina com jeito de menino). Apesar disso, o único vínculo dos três rejeitados era o de pertencerem à mesma série. Nunca abriam a boca para falar de si mesmos, de como se sentiam excluídos. Terminava a tarefa em grupo, acabava a afinidade. Cada um voltava ao seu lugar, timidamente. Mas Luca tinha empatia. Não aceitava que falassem mal de nenhum deles. Já ergueu a mão para desferir um soco num garoto que riu do seu colega gordo. Já deu rasteira numa menina que chamou a colega negra de "crioula fedorenta". Mas, e Luca? Sabia se defender?
Luca não sabia, mas sua paixão por Dóris não ficara despercebida. Apenas Luca não notava o quanto estava deixando na cara que passava o recreio todo olhando para Dóris, que tentava ficar perto dela o máximo possível, que parecia um cachorrinho lhe seguindo de um lado para o outro.
Pois estava Luca comprando um lanche na cantina, enquanto tomava um refrigerante, com canudinho, quando ouviu Dóris dizer para uma colega:
- Ai, que sede!
Luca imediatamente aproximou-se e ofereceu seu refrigerante:
- Quer um pouco?
Dóris, com um olhar atravessado, respondeu:
- Não, obrigada, não precisa - agradeceu, secamente, acenando a mão.
A colega de Dóris deixou escapar um risinho malicioso.
- Vamos ali tomar água? - convidou Dóris, dirigindo-se à sua colega.
Um frio repentino congelou o estômago de Luca. Sua cabeça estava confusa, e tinha vergonha do jeito que os outros ficavam olhando, com sorrisinhos idiotas, vendo como Dóris fugia da sua presença. Luca tinha uma vontade imensa de enfiar a mão na cara daquela gente, mas descobriu-se covarde. Não sabia se defender. E não queria agredir ninguém, não a socos ou pontapés, queria saber dizer a palavra certa, porém não conseguia. Pouco a pouco foi se sentindo um capacho em que todos queriam limpar os pés. Estava sempre disponível para ajudar e para ouvir, mas ninguém lhe oferecia nada. Era uma coisa esquecida num canto, um objeto. Uma vassoura. Tipo "ok, a hora que eu precisar de você pra limpar alguma sujeira, eu te pego".
Mas por que diabos aquela garota estava agindo daquele jeito? "Ei! Você beijou a minha boca, tá lembrando?", Luca teve vontade de gritar.
Luca esfriou. Isolava-se no recreio, preocupando-se apenas em comer seu lanche. Às vezes ia para a biblioteca e escolhia um livro qualquer para ler. Não se concentrava, apenas fingia não ter interesse nas pessoas; ficava esperando o sinal tocar, avisando o fim do intervalo. Cara amarrada, de poucos amigos (literalmente), não interagia, mais. Fazia o que tinha de ser feito, obedecendo as instruções dos professores, e só. Mas ninguém suspeitava do nó na garganta, da necessidade de acolhimento e aceitação que Luca tinha, da falta de amigos, da vontade de caminhar com naturalidade, falar com naturalidade, do desejo de olhar nos olhos, de igual pra igual.
Um dia, precisou ir ao banheiro. Deu de cara com Dóris. Ela lhe olhou através do espelho e desviou o olhar; puxava os cabelos para prendê-los num rabo de cavalo. Luca também agiu com frieza, embora estivesse queimando por dentro. Entrou em uma das cabines; não conseguia nem fazer xixi direito, sabendo que a menina que amava estava logo ali. De repente, ouviu uma barulheira, eram outras garotas entrando, tagarelando e dizendo bobagens.
- Pior eu, que tenho de estudar na mesma turma daquele "machinho" - falou uma delas. O ouvido de Luca aguçou. Dóris sentiu um calorão. Puxou de um batom que carregava no bolso.
Mal respiravam, tanto Dóris quanto Luca.
- Só imagino! Aquela "sapata" que venha pro meu lado, pra ver só uma coisa. Meto-lhe a mão na cara! - respondeu outra.
- Isso aí! - apoiaram as demais.
- Não sei como tem gente que aguenta - continuou a primeira, olhando de soslaio para Dóris.
- Até tenho pena da menina que aquela aberração pega no pé.
- Sei, não. Acho que esses tipinhos que dão abertura são da mesma laia.
- Verdade - disseram as outras, em uníssono. Caíram na risada.
Dóris virou-se e, com uma mão escorada no balcão da pia e a outra à cintura, encarou as meninas e fez uma cara muito séria, reprovando o comportamento delas.
- O que foi? Serviu o chapéu? - perguntou uma delas, com um sorrisinho sarcástico.
O grupinho tinha ido lavar as mãos. Feito isso, depois de soltar muito veneno por suas bocas sujas, que esqueceram de lavar, caíram fora dando umas risadas descabidas.
Luca, que havia se contraído para segurar o xixi, evitando fazer qualquer barulho, pôde ouvir um som baixinho, um tamborilar. Saiu da cabine e encontrou Dóris parada no mesmo lugar, batendo os dedos na bancada da pia. Nem olhou para ela. Foi logo lavar as mãos.
- Você contou alguma coisa para alguém? - perguntou a loura, parecendo brava.
- Quem, eu? - perguntou Luca, fechando a torneira.
- Tem mais alguém aqui?
Luca suspirou. Fazia um esforço para não chorar. Estava se sentindo um bicho, uma coisa. Precisava que justo a menina a quem adorava acima de tudo na vida, também ficasse lhe maltratando?
- Não, eu não contei nada para ninguém. - Silêncio. Tumtumtumtumtum! Era o seu coração que estava ouvindo, ou o de Dóris? As suas amígdalas latejavam. - Por que você está me evitando, hein? - perguntou, com alguma coragem. Cruzou os braços.
- Por quê? Você ainda me pergunta? Por causa desse tipo de coisa! Por causa desse tipo de comentário!
- Mas você me beijou! - Luca alterou a voz.
- Fala baixo! - ordenou Dóris. - Fala baixo - sussurrou. Espiou a porta.
- Na boca! - completou Luca, agora também sussurrando.
- Você me fez um favor...
- Eu não faço favores em troca de pagamento! Falando assim, parece que eu me prostituo! - As duas estavam cada vez mais próximas. Uma sentia a respiração da outra.
- Não! É que você foi legal comigo!
- E por certo você pensa que todo mundo com quem eu sou legal me beija na boca?
Nisso entrou uma garota. Fez de conta que as duas nem existiam. Lavou as mãos e saiu. Dóris e Luca nem piscavam.
- Você tem vergonha de mim?
- Claro que não! É que... são os outros que têm.
- Ah, tá, você sente vergonha por tabela... - debochou Luca. - Por que você me beijou? Foi meu primeiro beijo, sabia? Beijo de verdade.
Dóris gelou. Passou a mão no rosto de Luca, que se deixou acariciar.
- Porque... porque eu adoro os teus olhos. Eu acho a tua boca linda. Adoro a tua voz - foi falando Dóris, enquanto se derretia; voz aveludada. O coração de Luca subia pelo pescoço.
Luca quase cedeu, quase fez uma besteira, quase rezou. "Por favor, não para. Deus, por favor, faz isso durar para sempre!", implorou em silêncio.
- Eu te amo, sabia? Eu te amo! E isso que você está me dizendo é porque me ama, também.
- Eu? Não, não! Eu sou muito mulher! Viu? Eu sou muito mulher! Eu gosto de homem!
- O que você quer dizer com "muito mulher", Dóris? O que é ser "muito mulher"?
- Eu não sou sapatão! Não sou machorra! - respondeu Dóris, afastando-se. - Mulher de verdade gosta de homem, ouviu? Então para de me seguir, me... me perseguir! Eu não quero isso! Eu não posso isso!
Os olhos de Luca ficaram vermelhos e marejados.
- Você não quer ou não pode?
- O que importa? Meus pais me matam se souberem! Ou, ou... - gesticulava nervosamente. - No mínimo me jogam pra fora de casa!
Seguiram-se alguns segundos de silêncio, ambas de cabeça baixa. Luca perguntou:
- Você não quer namorar comigo, sem ninguém saber? Podemos nos encontrar às escondidas...
- Enlouqueceu? Eu não quero nada com você! Foi só um beijo, entendeu? Só... um... beijo - suspirou. - Chega que vim parar nesta escola porque fui expulsa da outra, pelo mesmo motivo.
- Certo. Agora eu entendi... Você tem a mania de beijar todo mundo na boca, então? - perguntou Luca, com muita raiva.
Dóris ficou vermelha. Arregalou os olhos e, com força, deu um tapa no rosto de Luca. E "paaaf"! O som foi tão forte quanto a dor e a humilhação. Agora, sim, as lágrimas de Luca desceram com tudo. Sem conseguir dar nenhuma resposta, saiu rapidamente do banheiro; passos pesados. Dóris levou as duas mãos à boca, sem acreditar que havia batido em alguém. Sentindo uma tristeza enorme, sobre a qual Luca nunca ouviria dizer nada, também chorou.
Luca não deu por conta da menina escorada na parede, à saída do banheiro. Era aquela que estivera antes, lavando as mãos. Mascava chiclete, com a boca aberta, fazendo um som irritante. Dóris secou as lágrimas e saiu do banheiro, também, mas devagar. Esbarrou sem querer, na garota.
- Ei! - resmungou ela.
- Desculpe - disse Dóris, absorta.
- Vem cá! Tá sabendo que aquilo é uma menina, né?
Dóris estaqueou. Era nela que tinha de ter desferido um tapão!
- Não, só pra lembrar - falou, num tom irônico. - Vai que você se apaixona.
Sem se virar para olhar na cara daquela garota imbecil (pois era bem isso que Dóris pensava), respondeu, furiosa:
- Vai pro inferno! - Quase correndo, sumiu corredor afora.
A garota, fazendo cada vez mais barulho com a goma de mascar, pensou, meneando a cabeça, sem descer do seu altar de moralidade: "Só o que faltava, mesmo. Não bastasse uma, agora temos duas sapatas nojentas." Cuspiu o chiclete através da janela à sua frente e saiu, contente, cantarolando, mãos nos bolsos da calça do abrigo.