Por enquanto, a missão de procurar a Agente Scofield e expulsar Caríbion de seu corpo teria que esperar. Mesmo sendo metade anjo e metade demônio, o mascarado estava certo sobre eu ainda estar vulnerável. Independente da ajuda que Luriel havia mencionado, ela pode ser essencial para derrotarmos aqueles dois.
***
Após ter tomado um banho ás pressas, ouvi a voz da minha mãe me chamando para o café da manhã. Meu cabelo e corpo ainda estavam um pouco molhados, mas consegui vestir um blusão preto e uma calça cargo bege, e claro, não podia esquecer do meu Jordan preto e branco.
Ao descer as escadas e seguir em direção á cozinha, vi meus pais e meu irmãozinho já sentados há mesa. O cheiro do café e dos pães frescos exalava por todo o ambiente, e naquele momento, meu estômago roncou implorando por comida.
_Ah, aí está você_ disse minha mãe.
_Bom dia mãe. Bom dia pai... Bom dia pirralho_ fiz um cafuné em Nicolas.
_Ei! Eu vou te mostrar quem é o pirralho aqui!_ gritou Nicolas irritado.
_Pare de provocar seu irmão, Uriel_ pediu meu pai._ Já está se sentindo melhor? Sua mãe me contou que teve uma hipotermia no shopping.
_Eh... Já estou melhor.
_Sabia que não devia ter deixado você sair ontem_ disse minha mãe decepcionada._ Estava sentindo que alguma coisa assim iria acontecer.
Me aproximei da mesa e me sentei ao lado de Nicolas.
_Tá tudo bem agora, mãe_ tentei tranquilizá-la._ Aliás, eu queria saber se eu posso encontrar meus amigos na-
_Não_ responderam os dois de maneira curta e grossa.
_Você está proibido de sair dessa casa, mocinho.
_Mas, mãe...
_Já está decidido, Uriel_ disse meu pai._ Estamos fazendo isso pelo seu próprio bem.
Já esperava por isso. Meus pais não eram nada fáceis de voltar atrás nas suas ordens. E pelas expressões, eles não estavam nem um pouco contentes.
A tatuagem de cruz em meu ombro esquerdo começou a esquentar. E sussurrando nos meus pensamentos, ouvi a voz de Luriel novamente:
_Acalme sua mente, jovem Uriel... Deixe que as suas palavras transmitam paz e confiança.
Outro enigma... Por sorte, esse eu já estava acostumado a fazer.
Respirei fundo, e delicadamente, fui soltando o ar a medida que os batimentos do meu coração se acalmavam. Relaxei meu corpo como se estivesse prestes a dormir de novo, e um sentimento de paz imenso me envolveu. Conseguia sentir o calor da minha tatuagem aumentar gradativamente, enquanto minha voz ficava serena como a de Luriel.
_Mãe. Pai... Por favor.
O olhar de preocupação e decepção dos meus pais desapareceu, e logo um sorriso brotou de seus rostos.
_Tudo bem, você pode ir_ disse meu pai.
_Mas vê se toma cuidado, ok?_ disse a minha mãe.
Nicolas quase se engasgou com um pedaço de sanduíche que estava comendo. Ele me encarou espantado.
_O que você fez com eles?
Não podia julgá-lo. Estava tão surpreso quanto ele.
_N-Nada... Apenas pedi com educação.
_Esse é meu garoto_ disse meu pai orgulhoso.
_Vou preparar alguns sanduíches para os seus amigos também_ avisou minha mãe.
Minha mãe levantou e começou a guardar sanduíches em uma Tupperware.
_Ok... Ah, e mais uma coisa.
Tentei continuar com a mesma voz serena e confiante. Os dois se viraram para mim, como se fossem robôs esperando para que eu desse uma ordem.
_Vou passar a noite na casa do meu primo Jean... Meus amigos e eu decidimos ir lá ver o Cristo e aproveitar para visitá-lo.
_Claro, sem problemas_ disse minha mãe de forma simpática._ Aproveita e manda um abraço para a sua tia Débora e o seu tio Jaime. Faz um bom tempo que nós não visitamos eles.
_Pode deixar.
_Quer que eu leve vocês até lá?_ ofereceu meu pai._ Hoje é meu dia de folga, então estou livre.
_Não, não precisa_ respondi._ Vou encontrar meus amigos na praça e de lá nós vamos á pé.
_Uuh, adorei o ânimo_ disse minha mãe empolgada._ De qualquer forma, leve uma sombrinha e algumas garrafinhas de água. O clima está muito quente hoje.
_Tá bom mãe...
Liguei a tela do meu celular, e nele já marcavam nove e quarenta e cinco da manhã. Se não saísse agora, teria que aguentar ainda mais reclamações de Alyssa.
_Preciso ir_ tomei meu café o mais rápido que conseguia e me levantei, me despedindo deles com um abraço e um beijo.
_Mas já?_ perguntou minha mãe._ Você nem tomou seu café direito.
_Tomei sim mãe, não se preocupa... Até amanhã!
Peguei minha bolsa transversal e os itens que minha mãe me pediu para levar, saindo de casa como um raio.
Nicolas olhou para nossos pais confiante.
_Posso sair do castigo também?
_Não_ responderam os dois.
_Ah, fala sério...
***
A distância da minha casa até a Praça dos Três Poderes não era tão grande, mas ainda assim, parecia que nunca chegaria naquele lugar. Segui em frente na rua que ligava ao Poliesportivo da cidade, passando por prédios e mais prédios, lojas e mais lojas, até que finalmente cheguei ao meu destino.
Uma área ampla com calçamento e espaços de jardim se estendia à minha frente, bem ao lado de um policlínica. Nos espaços de jardim preenchidos com grama, estavam as mais diversas espécies de coqueiros, arbustos, árvores e outras plantas decorativas. No centro, um lindo coreto de telhado colonial redondo exibia sua beleza com algumas palmeiras ao seu redor. De um dos lados do coreto, um enorme banco de concreto encurvado ficava ao lado de um pequeno parquinho. E do outro, a Prefeitura Municipal de Juatuba refletia o céu azul em seus vidros espelhados, além do fato de sempre estar com o seu estacionamento lotado de carros. Havia também algumas mesinhas e bancos espalhados por vários lugares da praça, e em um deles, Luiz e Alyssa estavam sentados esperando que eu aparecesse.
Alyssa estava com seu cabelo castanho cacheado preso em um coque com duas mexas soltas na frente. Seus olhos da cor de uma folha seca eram cobertos por seus óculos arredondados. Além do cropped branco e short jeans com um Air Force, ela amava usar acessórios como brincos, anéis e pulseiras. Seus brincos, por exemplo, eram de pirulitos vermelhos extremamente fofos, mas eu não iria dizer isso a ela.
Já Luiz, era um garoto bem estiloso, mas daqueles que não se importava muito com esse fato. Seu cabelo preto ondulado e médio estava um pouco bagunçado assim como o meu. Nas roupas, usava um conjunto simples de camisa branca por baixo de uma camiseta bege, e na parte de baixo, uma bermuda preta era acompanhada por um Air Force de meias até a canela.
Pelo comportamento descontrolado dos dedos e pernas, os dois pareciam ansiosos em saber o porque dessa minha "emergência". Quando eu surgi na frente deles, os mesmos se levantaram com uma cara de preocupação e desespero.
_E ai pessoal.
_E ai_ respondeu Luiz.
_Já estava começando a duvidar de que você fosse aparecer_ disse Alyssa._ Aliás, a sua mãe não tinha te colocado de castigo?
_Eu estou bem melhor agora. Que bom que perguntou... E sim, eu ESTAVA de castigo.
Por alguns instantes, senti a presença de Luriel entre Alyssa e Luiz. Provavelmente estava assistindo a minha incrível forma de convencer meus amigos de algo quase impossível de se crer.
_Isso realmente foi bem rápido_ disse Luiz impressionado._ Normalmente ela te deixa de castigo assim por uma semana ou até um mês.
_Tá bom, tá bom. Não viemos até aqui para falar dos castigos da minha querida mãe.
_E do que viemos falar então?_ perguntou Alyssa._ Espero que tenha um bom motivo.
Eu respirei fundo e suspirei. Provavelmente, aquela habilidade que tinha usado nos meus pais não funcionaria naqueles dois. Depois de ter visto meus pais agirem como marionetes de um teatro maluco, me recusei a usar algo assim em qualquer outra pessoa inocente de novo.
_Isso pode parecer difícil de acreditar, mas vocês são as únicas pessoas em que eu confio para contar esse tipo de coisa.
_Da pra você parar de enrolação e contar logo de uma vez?!_ perguntou Alyssa impaciente.
Eu apertei meus próprios punhos e contei á eles toda a experiência que tive, desde que me encontrei com Caríbion no banheiro do shopping ao sonho maluco com Kálidos e Luriel. A expressão no rosto de Alyssa demonstrava nitidamente a sua frustração.
_Você tá me dizendo...que me acordou ás TRÊS DA MANHÃ, para falar esse monte de bobagens de novo?!
_Isso não é bobagem, Alyssa. É a mais pura verdade... Só preciso que confiem em mim.
_Confiar em você?_ debochou Alyssa._ Uriel. Anjos e demônios não existem!
_Bom, eu acredito que existam.
Aquilo me deu uma fagulha de esperança.
_Mas, do jeito que você nos contou... Acho realmente impossível.
E eu estava errado, de novo...
Naquele momento, eu não tinha como convencê-los com palavras. Como o velho ditado sempre diz: "É preciso ver para crer". Então essa seria minha última chance de fazê-los acreditar em mim.
_Se isso não fosse real_ eu levantei as mangas da minha blusa._ Como vocês explicariam isso daqui?
Revelei à eles minhas tatuagens de pentagrama e cruz. Suas expressões pareciam ainda mais confusas do que quando contei a eles sobre minha experiência sobrenatural.
_Desde quando você fez essas tatuagens?_ perguntou Luiz.
_Aí é que está o problema... Eu não fiz. Elas simplesmente apareceram nos meus ombros.
_Uriel, já chega dessas suas gracinhas_ disse Alyssa._ Fala logo de uma vez que isso são tatuagens falsas.
_Meu Deus, Alyssa... Por que eu brincaria com uma coisa dessas?!
_Não sei... Acho que é você que deve nos dizer isso.
Eu bufei revirando os olhos. Peguei a mão de Alyssa e coloquei sobre minha tatuagem de cruz, na intenção de que ela esfregasse para ver que não saía. Mas na verdade, uma coisa ainda mais convincente aconteceu.
Quando seus dedos tocaram a tatuagem quente em meu ombro esquerdo, os olhos da garota se reviraram por um breve instante. Seu suspiro foi tão desesperador que até eu comecei a querer respirar mais ofegante.
Eu coloquei minha mão em seu ombro.
_Você tá bem?
Ela olhou para mim com uma expressão que nunca consegui decifrar. Parecia que todas as suas emoções se embolaram umas nas outras e não sabiam qual delas iria se manifestar.
_Ca#!te. Uriel... C-Como?
Só então eu percebi. Talvez Luriel tivesse revelado a verdade para Alyssa através de uma visão.
_Eu também não sei...
_Espera, do que é que vocês estão falando?
Alyssa bufou impaciente e me virou de costas no banco, fazendo a mão de Luiz também tocar minha tatuagem de cruz. O mesmo aconteceu com o garoto, como se agora ele fosse um cachorrinho assustado em uma tempestade.
_Mais que merda foi essa?!
_Vocês tiveram um vislumbre das coisas medonhas que eu vi de ontem para hoje.
Os dois se olharam assustados e confusos.
_Agora vocês acreditam em mim?
_Queria continuar negando pelo resto da minha vida_ murmurou Alyssa.
_Concordo plenamente_ disse Luiz.
_Mas você nos deu provas o suficiente para confiar em você_ continuou Alyssa.
_Obrigado.
Luiz estralou os dedos.
_E o que você vai fazer?
_Corrigindo, é o que NÓS vamos fazer... Não poderia ir nessa aventura maluca sem a ajuda de vocês.
_Nós? Isso é realmente necessário?_ perguntou Alyssa desapontada.
_Claro que sim_ respondi._ Lembram do nosso juramento?
_"Sempre juntos, não importa o tamanho do problema"._ disse Luiz.
Alyssa suspirou.
_A sua sorte é que eu não gosto de quebrar promessas.
_Luiz?_ olhei para o garoto.
_Se for para ajudar um amigo...eu tô dentro.
Um sorriso de esperança surgiu em meu rosto.
_Qual é o plano, Senhor Mestiço?
_Primeiro...vamos precisar encontrar nossa ajuda.