Capítulo 4 Por baixo da pele de gata, eu escondo uma loba

Acordei com um vento forte no rosto. Minha cabeça estava erguida e haviam várias pessoas perto de mim. Marcela me chamava e sempre que ouvia ela pronunciar meu nome, meu corpo arrepiava. Ela chegou perto do meu rosto, percebi então seus olhos verdes. Era incrível como ela não tinha aparência alguma até esse momento. Era como se não houvesse rosto algum no corpo. Então percebi que ela era simplesmente linda. A boca era rosa e perfeitamente harmoniosa com o rosto todo. O cabelo era longo e loiro, com alguns fios mais claro. Me ajeitei lentamente na cadeira e respirei fundo.7

- Obrigada pessoal - ela disse.

- Vou trazer uma água - falou a garçonete.

As pessoas começaram a sair de perto e o ar começou a voltar. ainda sentia meu corpo tremer por inteiro - eu não acredito - falei com a voz embargada - ele não faria isso comigo.

- Olha de verdade - a garçonete me entregou a água e saiu, então Marcela voltou a falar - eu realmente lamento por você. Quando ele me contou eu não achei legal, depois me apaixonei por ele e não me importei mais em ser amante. Eu tenho que voltar para a loja, realmente lamento por você.

Ela levantou e saiu da cafeteria. A observei ir para a sua loja. Continuei sentada pensando em que ponto deixei minha vida. Foi quando eu conheci ele? Foi quando nós nos juntamos? Já não sabia mais dizer. Senti o olhar das pessoas em volta, comecei a envergar de vergonha e então levantei e então sai daquele lugar. Entrei no carro e só poderia ir para um lugar. Dirigindo como se fosse meu último dia de vida. Não levei muito tempo para chegar e então estacionei de qualquer eito. Desci apressada e entrei na casa com a minha chave. A casa estava exatamente do jeito que vi na última vez em que estive ali. Parecia que Wallace nem morava lá. Passei pela cozinha e não havia um prato sequer na pia ou na secadora. No lugar do lixo, haviam vários potes de marmita e isso era engraçado, porque ele sempre dissera que odiava. No quarto, apensa a cama estava bagunçada, as roupas estavam guardadas como sempre. Isso realmente não podia reclamar, Wallace era completamente organizado. Abri o armário e na parte de cima, puxei a maleta que tinha. Abri rapidamente e procurei a certidão de casamento. Junto de várias fotos, lá estava ela. Peguei e guardei a mala no lugar. Antes de sair, peguei meu porta temperos da cozinha. Voltei para o meu carro e então segui para um cartório que havia perto de casa. Ao entrar, percebi que não havia trancado a porta da casa, mas azar também.

- Boa tarde - falou a mulher na recepção.

- Olá, eu queria verificar esse documento - entreguei a ela.

- Verificar o que?

- Onde ele foi registrado - menti. Será que eu seria presa?

- Documento? - perguntou desconfiada. Entreguei a ela minha identidade, ela me encarou e verificou o nome - só passar no guichê três.

- Obrigada - falei pegando o papel e seguindo para o guichê indicado - olá - entreguei o documento novamente - pode verificar onde foi registrado essa certidão?

- Claro - o rapaz diante de mim, olhou no seu computador e franziu a testa - não estou achando aqui esse cartório - ele entregou novamente o papel - vou precisar da sua identidade - ele disse levantando - vou só verificar com o encarregado como buscar esse lugar.

Ele saiu de perto. Chegou perto de outro homem e começou a conversar algo. Os dois me olharam de canto e então viraram de costas. Senti que aquele era o momento certo para eu sair dali e prontamente o fiz. Corri para o meu carro e liguei, vi os dois correndo até a porta e então sai rapidamente de lá. É óbvio que alguma coisa iria dar errado. Será que ele anotou meu nome ou meu CPF? Será que eles vão me prender? Por culpa daquele desgraçado do Wallace, eu vou ser presa. Estacionei o carro na frente do restaurante de Vicente e entrei correndo. Me certifiquei por alguns minutos que a policia não estava atrás de mim. Então senti uma mão quente na minha e me virei.

- Tá tudo bem? - Vicente perguntou preocupado.

Em um pulo, o abracei forte. Me sentindo protegida novamente. Não conseguia falar nada e ele apenas me abraçou de volta. Senti seu corpo esquentar o meu e me fazer parar de tremer. Eu não conseguia falar, me mover e nem mesmo chorar. Queria apenas ficar ali petrificada nos braços dele. No entanto, ele se afastou um pouco e colocou as duas mãos no meu rosto e me encarou com seus incríveis olhos redondos e castanhos. Não precisou falar nada, nem ele ou eu. Por uma fração de segundos ele leu meus pensamentos e então se afastou e puxou uma cadeira. Sentei lentamente e então sem perceber ele me servira um copo de whisky. Tomei em um gole apenas, deixando o amargor descer pela garganta rapidamente.

- Obrigada - eu disse com a voz embargada.

- Quer conversar? - ele sentou diante de mim.

- Eu - larguei o copo na mesa - acabei de descobrir que o Wallace falsificou nossa certidão de casamento. Simplesmente nunca foi oficial.

- Como assim? Isso é crime, Amélia.

- Bom - eu ri levemente - ser presa vai ser o menor dos meus problemas.

Vicente me encarou - o que vai fazer? Denunciar ele? Você também foi enganada.

- Eu não sei ainda - falei - não sei até onde isso vai me prejudicar, ele tem bons advogados e vai se safar mais fácil do que eu.

- Eu posso te ajudar.

- Imagina - levantei - você tem seu restaurante pra cuidar e sua vida. Eu vou pensar um jeito - parei olhando para a rua. Imaginei se a mãe dele sabia. Aquela velha me odiava. Lembrei da nossa cerimônia. Havia um padre. Isso eu sei. Mas ele não levou o papel até o cartório e ainda por cima falsificou - eu vou até lá.

- Até onde?

- O escritório dele - olhei para Vicente - ele vai ter que me explicar.

- Deixa que eu te levo - ele levantou.

- Não, você tem suas coisas aqui, eu estou de carro. Vou bem rápido. Te vejo depois, pode ser?

- Me dê noticias. Por favor, Amélia - ele chegou perto e deu um beijo em minha testa - eu estou aqui se precisar de reforço.

- Eu fiz crossfit - falei rindo. Ele sorriu e então com muita dificuldade sai de perto.

Sai do restaurante e segui para meu carro. O escritório de Wallace era no centro e não era longe dali. Em menos de trinta minutos cheguei ao local do prédio grande e espelhado. Ele trabalhava no décimo quinto andar. Eu já era conhecida da recepção, assim que entrei a mulher não teve tempo de falar nada. Apenas assei por ela e segui para o elevador. Dentro daquela caixa minúscula de metal, senti como se sufocasse. Então a porta abriu. Virei a esquerda e no fim do corredor a sala com seu nome em branco e letras de forma, Wallace Cézar Mello. Senti crescendo a minha raiva e a vontade de pular no pescoço dele. Respirei fundo antes de entrar. Quando me viu ele arregalou os olhos e sorriu, levantou da cadeira e caminhou até mim

- Pensou no que eu disse? - ele perguntou feliz e me abraçou. Senti repulsa pelo seu toque. Ele se afastou lentamente e sorriu. Instantaneamente e com força bruta dei um soco em seu rosto. Ele cambaleou um pouco e então se encostou na mesa com a mão sobre a bochecha - o que é isso? Amélia? Está louca?

- Eu estou sim - peguei a certidão e joguei nele, mesmo coma mão ardendo e latejando fingi que estava bem - achou que poderia me enganar por quanto tempo mais?! - gritei - que eu sou tão estúpida ao ponto de nunca descobrir?

Ele pegou o papel do chão - eu posso explicar.

- Ah, pode? - eu comecei a rir - igual explicou sobre a sua amante?! - minha voz ficava cada vez mais alta. Caminhei para perto da janela para tentar respirar e então continuei - ela contou uma versão bem interessante de como vocês se conheceram. E adivinha? NÃO TEM NADA HAVER COM O QUE VOCÊ FALOU.

- Amélia - ele disse virando para mim - eu ia te contar. Estava esperando a hora certa.

- Nossa, realmente. Você é tão doente que mente e nem percebe. Como eu pude ser tão idiota? Tão imbecil de simplesmente largar a minha vida, a minha carreira por você - sentia a raiva me consumir novamente - alguém que nunca foi meu. Nunca foi nada além de um verme mentiroso.

- Você está no meu trabalho - ele falou chegando perto - pare de agir feito louca.

- EU ESTOU POUCO ME FERRANDO PARA SEU TRABALHO - gritei o mais alto que pude. Joguei o porta lápis de cima da mesa no chão. Ele tentou me segurar, no entanto escapei para o outro lado - eu quero mais é que todos saibam quem você é - o encarei.

- Vou chamar a segurança - ele falou indo para a porta.

- Pode chamar, mas pelo menos me explica alguma coisa - pedi chorando. Nesse ponto a raiva se transformou em lágrimas que só notei quando escorreram pelo rosto. Ele parou e então colocou as mãos na cintura e respirou fundo - por que você fez isso?

- Eu não posso me casar - ele falou virando - eu tenho planos pro futuro e se fizesse não poderia de jeito nenhum concretizar. Não tem nada a ver com você, Amélia. Eu te amei de verdade.

- E eu não fazia parte desse futuro?

- Claro que sim, meu amor - ele se aproximou e eu fui para o lado ficando atrás da mesa - mas se nós fizéssemos isso eu não poderia mais nos dar uma vida melhor. Nós nunca precisamos desse papel para sermos felizes.

- Eu não estou entendendo nada - falei tentando pensar no que ele dizia, mas cada vez menos fazia sentido - absolutamente tudo na nossa vida conjugal era mentira.

- Nem tudo, acredita em mim - ele implorou - eu juro que não fiz por motivos fúteis.

- Fúteis - comecei a rir - a Marcela acha que vai casar com você. Não me parece que fez isso pensando na gente, no futuro.

- Ela não sabe o que diz. É uma garota apaixonada. Você sabe como é.

- Não coloque a culpa nela. Não ouse tentar me deixar louca. Você quer me manipular, mas agora é tarde demais pra você.

- Você não vai ser burra de não me perdoar ou pelo menos me ouvir.

- Bom, olhe eu sendo burra então - rapidamente peguei o monitor do computado dele e com muita força arranquei da mesa e joguei no vidro atrás de mim. Infelizmente não quebrou, mas a janela ficara totalmente trincada. Minha respiração ofegante aumentou quando ele chegou perto de mim e me puxou pelos braços.

- Chega! - ele gritou - vai embora daqui, agora - dois homens entraram na sala correndo e então se assustaram com o que viram - levem ela daqui.

- Levamos para a delegacia? - um deles perguntou.

- Não precisa - ele me soltou e me empurrou em direção a eles - só tira ela do prédio.

Um deles segurou meu braço - eu sei ir sozinha - falei, mas não adiantou. Sai da sala de Wallace e olhei para trás, ele ficou parado com a mão na cabeça olhando o estrago no vidro. Eu realmente havia perdido minha sanidade naquele momento. Os seguranças me levaram pelo elevador direto para a saída do prédio e me empurraram.

- Não volte mais, se não vamos chamar a polícia - um deles falou. Um cara alto e grande.

- Pode deixar, mas avisa pra aquele merda que isso não acabou.

- Isso é uma ameaça, moça?

- Entenda como quiser - disse dando as costas. Olhei para cima e pude ver o vidro trincado completamente. Mesmo de longe. E observando logo abaixo de onde cairia o vidro, havia uma mulher com duas crianças sentadas na calçada. Naquele momento senti o arrependimento bater e imaginei o que seria deles se aquilo acontecesse. Tentei me segurar mas chorei diante deles. Como fui idiota. Poderia ter machucado alguém que nem mesmo conhecia um de nós.

- Amélia - gritou uma voz conhecida. Olhei para trás e era Vicente. Parado na frente do prédio, ele correu até mim e me abraçou me surpreendendo totalmente - eu sabia que algo ia acontecer. Aquela janela eram vocês, não é?

- Era - falei chorosa - fui eu. Eu joguei o computador dele na janela. Ela não quebrou, imagina se tivesse acontecido - o abracei - eu teria machucado alguém.

- Tudo bem. Não aconteceu - ele me olhou - vamos sair daqui logo. Onde está seu carro?

- Logo ali na frente - seguimos a direção. Chegamos no carro e ele pegou a chave. Abriu a porta e me colocou sentada. Então entrou no lado do motorista e fechou a porta - como sabia onde era o escritório?

- Eu olhei na página dele o nome da empresa e pesquisei na internet e então eu chamei um carro e vim - ele passou a mão na minha e a pegou. Observou a vermelhidão.

- Dei um soco no rosto dele - o olhei e comecei a rir - nem parecia eu lá.

- Que dia - ele falou largando minha mão com delicadeza. Durante alguns minutos ficamos em completo silêncio. Apenas olhando para o outro.

A imagem daquela mulher e das crianças não saia da minha cabeça. Imaginando o que aconteceria. O que minha raiva iria fazer com aquelas pessoas.

- Vamos comer? - ele perguntou.

- Não estou muito afim de ir pro restaurante - eu disse.

- Vamos para outro, um bem mais chique.

Franzi a testa querendo negar. Mas já estava sem força alguma. Depois de uma hora quase, entre o caminho e o pedido, finalmente nossa comida chegou. Dentro de um saco e com um aroma delicioso - os refrigerantes - falou a mulher na janela entregando - tenham um bom dia - então Vicente estacionou ali perto.

- Um Duplo Cheddar MecMelt e batatas para você - me entregou - e um Duplo Burguer Bacon com batata para mim.

- Não era isso que eu imaginava quando falou em um lugar chique - falei rindo. Dei um mordida no meu hambúrguer.

- Bem, que eu me lembre você vinha almoçar aqui quase todos os dias quando estávamos na faculdade - Vicente disse mordendo o dele.

- Verdade. Incrivelmente meu estágio garantiu meu almoço diário. Está quase tudo igual, tirando o carro que eu não tinha na época e o cigarro que eu nunca mais fumei.

- Lembra que a gente vinha de noite, fumávamos e bebíamos vinho no frio?

- Vivemos loucamente nossa adolescência tardia.

- É - ele riu - pode ter certeza. Não levei muito tempo pra largar.

- Nem eu. Acho que naquele ano mesmo. Foi passageiro.

- Tempo bom. Senti saudade disso.

- Mesmo nas suas viagens?

- Ah - ele suspirou - foi quando mais senti saudade. É muito ruim estar em um país que ninguém te entende. Bem, no começo. Tem lugares que é melhor nem dizer que é brasileiro. Por exemplo existe uma lista por aí com mais de cinquenta motivos para não se gostar de nós.

- Caramba. Vou ter que pesquisar depois. Pra ver se é verdade o que eles dizem.

- Algumas coisas são - falou rindo - outras são exageradas.

- Como?

- Eles dizem que brasileiros não tem consideração por quem não conhecem.

- E nem por quem conhecem.

Começamos a rir juntos. A minha desgraça era a prova de que os gringos estavam certos. Nos olhamos e então pude sentir a ternura de estar perto dele. Eu queria me aproximar, mas sabia que não era o momento certo.

- Obrigado - falei - você me salvou hoje.

- Pode sempre contar comigo - ele pegou minha mão e beijou em um movimento delicado e lento.

Vicente me levou para casa. Depois do dia longo e infernal que eu tivera, só queria deitar na cama e dormir até o dia seguinte. Dessa vez não precisei de pílula alguma para dormir, simplesmente caí na cama e foi como desmaiar. Acordei depois de quase seis horas e então apenas me cobri com a coberta e voltei a dormir.

Ouvi algumas conversas vindo da sala, mas não foi o suficiente para eu abrir os olhos e ir ver o que era. Apenas continuei deitada. Era impossível eu levantar. Meu corpo parecia estar sob diversas pedras. Então, apaguei, novamente. Com o tilintar de xícaras, eu acordei. Olhei para frente e já era dia. Quase dez da manhã, de acordo com o pequeno relógio de parede. Sentei na cama devagar. Tentei achar meu celular, mas não obtive sucesso. Sai da cama e fui para um banho. A água quente estava reconfortando minha alma ferida. Minha cabeça, ainda focada no ocorrera no dia anterior, me torturou um pouco. Sai do banho e coloquei uma roupa quente. Fui em direção a porta e ouvi a televisão da sala ligada. Caminhei e vi Doriana sentada tomando café, ela aparentava estar em paz naquele momento e não queria cortar seu momento, então tentei não fazer barulho, mas ao pegar a xícara na mesa, bati levemente na cafeteira. Doriana se assustou e me olhou - bom dia? - perguntei franzindo a testa. Ela riu.

- Achei que teria que chamar o necrotério - ela disse - não tinha nem barulho no seu quarto.

- Bem, digamos eu simplesmente desliguei - sentei ao seu lado com meu café - senti que precisava.

- Acho que estava sim. Você não ouviu nada de ontem? Meu cliente barulhento?

- Graças a Deus que não.

- Sorte sua. Quando ele vem eu sempre uso abafadores de som.

- Me poupe dos detalhes.

- Bem, alguém tem trabalhar nessa casa e em falar nisso, ligaram de um restaurante chamado Orfeu para confirmar o teste de hoje a tarde.

- Orfeu? Que lugar é esse? - perguntei e então lembrei - Meu deus é o restaurante do Vicente - quase me afoguei - esqueci completamente.

- Acho que a mulher falou para você estar lá as quatorze horas.

- Eu nem preparei nada. Não estudei e nem mesmo cortei uma cebola.

- Você tem um tempinho para se aprontar. A gente tem algumas coisas aqui se quiser cortar.

- Eu nem mesmo escolhi os pratos para fazer - levantei e corri para o quarto. Peguei meu livro antigo e voltei para a sala, me sentando novamente - tenho que escolher três pratos para fazer, uma entrada, principal e sobremesa.

- Nossa, mais fácil ser garota de programa.

- Se você diz - falei rindo.

- Espera, você nem falou como foi com a amante lá.

- Bem - levantei - vou te dar um resumo, descobri que Wallace falsificou a certidão de casamento e eu joguei o computador dele na janela da sala de trabalho dele. Mas te conto mais tarde - sai em direção do quarto e Doriana veio atrás. Parei na porta e a olhei.

- Agora estou curiosa - ela disse parando perto - não pode jogar essa bomba e sair.

- Eu te conto depois, agora preciso estudar um pouco - fui fechando a porta lentamente - tchauzinho - fechei completamente e sentei na cama. Folhei o livro tentando achar a receita perfeita para cativar Vicente e quem mais fosse provar. Anotei algumas ideias que poderia fazer, não teria tempo suficiente para testar em casa. Lembrei do carreteiro que minha mãe fazia para mim. Ela usava poucos temperos e ainda poderia dizer que era o melhor do mundo.

Olhei para o lado da cama e uma pequena pilha de roupas estava se formando. Pensei em levantar e lavar, mas se fizesse, Doriana iria querer saber do que aconteceu e eu não poderia mais me concentrar. Então levantei e as peguei, coloquei em cima de uma cadeira que tinha dentro do quarto, arrumei a cama e as roupas limpas que estavam por cima. Pensando sobre os ingredientes que poderia usar e melhorar os pratos que imaginei. Peguei os fones de ouvido e engatei no celular. Coloquei uma playlist com músicas um pouco mais antigas e continuei a me imaginar na cozinha preparando os pratos para Vicente. Como ele estava bonito. Antes de reencontra-lo, eu sequer pesquisei sobre ele. Antes de me estranhar com Wallace, não havia notado sua aparência. Esse traço era engraçado sobre mim. Muitas vezes as pessoas não tinham rostos, eram apenas pessoas. Suas fisionomias se tornavam importantes em dado momento entre nós, mas não sei dizer como desencadear isso. Assim como o nome do restaurante, não havia me dado conta que o nome era Orfeu e se não fosse Doriana falar hoje, eu nem sei se saberia. Me sentia a pessoa mais distraída do mundo por esses detalhes. Haviam dias que eu nem lembrava da minha própria aparência, tentando me encaixar no que os outros queriam. Para muitos eu nem mesmo tinha cabelo da cor que tenho. Isso era engraçado, cada um me via de um jeito.

Fugi dos pensamentos perdidos e voltei para a realidade e mesmo sem perceber eu já estava chegando no restaurante. O dia estava menos frio, o que me proporcionou não usar um casaco tão quente e me sentindo mais livre para me movimentar. Entrei e logo vi Vicente sentado conversando com dois garçons. Eles me olharam fazendo eu ficar encabulada e então Vicente veio em minha direção - bem vinda novamente - disse sorridente. Acolhedor como sempre, ele me encarou e então colocou as mãos nos bolsos, parecia querer me abraçar, mas não o fez - se estiver pronta, podemos começar.

- Podemos sim - eu disse sorrindo de volta - posso usar o banheiro antes?

- Claro - ele apontou o caminho.

Eu segui para o banheiro e sentia os olhares me acompanhando. Quando entrei, parei na frente do espelho e passei uma água no rosto. Dei graças por não usar maquiagem naquele momento. Sequei com o papel toalha e então respirei fundo - eu consigo - disse me encorajando. Eu sabia que conseguiria, tinha essa autoconfiança, mas faziam tantos anos que eu não cozinhava para alguém além do Wallace, que sentia que ninguém mais iria gostar além dele. Sai do banheiro e então segui para a cozinha, onde já estava Vicente e os dois rapazes.

- Você vai preparar dois pratos - ele disse - uma entrada e o prato principal.

- Achei que teria de fazer a sobremesa - falei largando minha bolsa no canto e me posicionando onde deveria.

- Não há necessidade. Nós temos especialistas apenas para isso. Se concentre nesses dois, que são os que mais vai fazer.

- Certo.

- Aqui - ele me entregou duas folhas - são as receitas do carpaccio que comeu outro dia e três filé mignon ao molho de mostarda - senti tremer ao ouvir aquilo. Estava crente que prepararia meus pratos que demorei para escolher - pronta? Vou dar cinquenta minutos para tudo estar pronto.

- Sim - falei sem nem mesmo saber para o que. Ao lavar as mãos, observei os rapazes saírem da cozinha sorridentes.

- Vamos comer bem - falou um deles com a voz abafada.

- Eu vou aguardar você ali fora, quando estiver pronta, aperte o cronometro - Vicente sorriu - boa sorte - ele saiu me deixando completamente sozinha com as folhas de receitas e os produtos.

Respirei fundo. Contei até dez. Apertei o cronometro e então comecei a cortar as vieiras em fatias bem finas e a colocar em um recipiente com gelo embaixo para manter refrigerado. Fatiei o rabanete no mandolim em fatias e coloquei na água com gelo também. Não misturando os dois. Segui para o vinagre, peguei o saque e a cebolinha, pondo em um mixer e bati bem até virar um molho verde escuro, adicionando um pouco de azeite. Na hora da montagem, intercalei uma viera com os rabanetes de cada cor. Adicionei os ovas em cima da vieira e na sequencia coloquei a flor de sal e os brotos. Pinguei uma única gota de limão sobre cada fatia de Vieira. E por fim, coloquei as gotas do vinagrete de cebolinha pelo prato. Repeti o processo inteiro em mais dois pratos e isso me tomou vinte minutos. Pus os três pratos em cima da bancada e apertei o sino. Em seguida voltei para os meus afazeres.

Comecei temperando os filés mignon com sal e pimenta do reino. Aqueci uma grelha pelo fato de ter que ser três, com o azeite e comecei a dourar os medalhões. Deixando três minutos de cada lado para ficarem perfeitos. Em uma frigideira, acrescentei o creme de leite, a mostarda que eles já tinham pronta e deixei reduzir até obter a consistência certa. Apesar de parecer uma receita fácil, deixar a carne no ponto perfeito, é muito mais complicado. Cada um pediu em um, então não dá para deixar simplesmente cozinhando. Além de que a carne tem que ser servida quente. Posicionei a carne os medalhões já cortados (ele não havia especificado esse empratamento, então fiz como eu gostaria) e então coloquei o molho de mostarda. Posicionei no balcão e então toquei o sino novamente. Olhei o tempo finalizar. Havia conseguido entregar com três minutos sobrando.

Lavei as mãos e tomei um copo de água. Estava tão nervosa que o copo tremia. Sai da cozinha e segui para a mesa. Parei diante dos três - sente - Vicente falou. Eu obedeci. Observei eles comerem e me perguntava se estava tão bom quanto eu esperava. Ele sorriu então e os trÊs começaram a rir. Me deixando ainda mais confusa.

- O que houve? - perguntei rindo também.

- Tá muito bom - falou Vicente - caramba, Amélia, eu sabia. Meu faro não erra quando diz que alguém é bom na cozinha - ele me abraçou sentado. Continuei estática, ao mesmo tempo que não acreditava, sabia que me sairia bem - pode começar hoje mesmo. Já fica e eu vou te mostrando os pratos principais - ele me soltou e voltou a comer.

- Realmente - disse um dos rapazes - a senhorita cozinha muito bem.

- Sério Então, o emprego é meu? - perguntei me assegurando.

- Sim, cem por cento - respondeu Vicente.

Aquele era o momento de felicidade que eu tanto esperei acontecer. Depois da faculdade, depois do casamento, depois do Wallace, aquele momento era a felicidade que eu queria ter. E em um piscar de olhos eu já era outra pessoa. Dentro de mim começou a se espalhar a esperança de tudo ficaria bem novamente. Que sol brilharia para mim. Que eu poderia ser uma grande chefe de cozinha, ah, como eu queria que minha mãe me visse agora. Para ela poder dizer que se orgulhava de mim. Queria poder esfregar na cara de Wallace, que eu era muito mais além da esposa dele e que o medo de eu cozinhar para fora era completamente idiota.

- Hoje você fica observando como são feitos os procedimentos e os pratos - Vicente disse me trazendo para a realidade - amanhã você cuida de algumas entradas e assim vamos indo, pode ser?

- Claro - falei mais feliz impossível - você quem manda - era difícil acreditar que eu havia passado no testes com aqueles pratos, seria alguma pegadinha? Pra dizer depois "então, na verdade, você reprovou, só queria ver sua cara de pateta" e mesmo não sendo o perfil de Vicente fazer algo assim, eu ainda desconfiava.

O dia continuou e eu fiquei no restaurante. Auxiliando a cortar e preparar o mise em place para os pratos principais. Vicente mal parava na cozinha. Resolvendo os problemas de verdade, enquanto uma equipe grande de chefes faziam o resto. Me perguntava se ele cozinhava mais ali ou em sua casa. Quando ele aparecia era notável a energia que a cozinha ficava e aquilo me deixava apreensiva. Eu já não era mais acostumada com tantas pessoas e nem mesmo a tanta alegria. Ele vinha, colocava música, cantava, dançava e me tirava boas risadas. Era como se nunca tivéssemos nos afastado. Eu mal lembrava de Wallace, estava tão contente e realizada, que não parei um minuto para pensar e quando aconteceu foi por instantes apenas. Uma das garçonetes estava gestante, ela chegava perto e pedia para que tocassem em sua barriga. Quando chegou minha vez, toquei levemente e muito rápido. Eu não era próxima de crianças ou mulheres grávidas. Tinha poucas conhecidas com filhos e que quando nos visitavam, deixavam com uma baba que mais parecia irmã. Vicente a tocava com carinho, que dava para imaginar que ele era o pai. Mas era o garçom Pablo. Os dois faziam um belo casal.

Quando o restaurante abriu, me senti mais nervosa ainda. Ajudei a montar alguns pratos e a preparar alguns molhos. A postura de Vicente era completamente diferente da anterior, antes sorridente e agora mais séria. Vinha na cozinha somente para gritar algum prato ou alguma nota errada. Era realmente o chefe do lugar. Eu parecia não existir ali. Quase invisível por todos, no meu canto fazendo apenas o que mandavam. E convenhamos, não estava ansiosa para cozinhar sozinha um prato. Era uma loucura completa. A gritaria, o barulho das panelas e pratos, o tilintar dos talheres, os cortes que estavam sendo feitos e o cheiro perfeitamente ávido. As horas foram passando em lentidão. Quando por fim entregamos o ultimo prato. Então a fase de limpeza começou e apesar de sim, ter pessoas contratadas para isso, devemos fazer umas partes. Ajudei a limpar e segui para a pia. Pedi para a moça encarregada deixar comigo e mesmo depois de relutar ela aceitou. Percebia-se que ela estava cansada e apesar de eu também estar, ainda havia muita energia acumulada. Quando terminei de arrumar o que devia, vi que já quase não havia ninguém lá. Vicente finalizava o caixa. Segurei minha bolsa e meu casaco esperando ele se distrair para sair, mas ele me notou - ei, espere aí - ele falou. Chegou perto de mim e me entregou um envelope - pelo dia de hoje - abri e havia o valor do salário do mês - não diga nada, sei que está precisando.

- Não é muito justo - devolvi - é melhor deixar assim e me pagar no fim do mês.

- Deixa de ser boba - falou rindo e colocando na minha mão de volta - aceite logo e vamos tomar um vinho - ele saiu de perto pegando uma garrafa e duas taças. Ele sentou em uma das mesas e fez sinal para eu sentar.

No inicio relutei. O cansaço me fez pensar em ir embora, mas aceitei o convite - vou aceitar o dinheiro porque estou morando de favor - falei guardando na bolsa e pegando uma taça com vinho. Nós brindamos e nos encaramos por alguns minutos.

- Senti saudade disso - ele falou.

- Disso o que?

- De nós dois comemorando - ele ficou com as bochechas ruborizadas - como fazíamos antigamente.

- Bem, antigamente éramos mais ativos - comecei a rir - pelo menos é o que eu lembro.

- Realmente - ele riu e me encarou. Se apoiou na mesa - você alguma vez, pensou em mim? Digo, nos últimos anos.

- Não - respondi - minha vida era o Wallace. Lembrava de você como uma memória afetiva. Algo bom que havia passado.

- Eu lembrava de você quase todo dia - ele voltou a sentar encostado na cadeira e tomou sua taça inteira em um gole - em como eu devia ter me declarado para você antes do Wallace aparecer naquela festa.

- Eu sabia que você gostava de mim - falei sorrindo - mas naquele dia você estava com a Renata, então achei melhor seguir em frente.

- Eu não estava com a Renata - franziu a testa - mais ou menos. Mas foi porque você não queria nada comigo.

- Não era assim. Eu gostava de você - o encarei, não acreditando confessar o que sentia há anos atrás - eu só, não sabia como dizer.

Vicente ficou me olhando durante algum tempo. Era incrível o que seus olhos me faziam sentir. Trazendo de volta todo sentimento que um dia eu tivera por ele. Antes de Wallace aparecer. Vicente era o sonho que eu tinha. Agora mais ainda, mas era um sonho distante e difícil de alcançar. Nós havíamos nos beijado apenas uma vez e nunca passamos disso. Mas foi o suficiente para criar sentimento. Infelizmente o destino se atravessou naquela festa e me apresentou a quem viria ser minha grande decepção.

- Eu nunca tive nada com a Renata - ele falou servindo mais em sua taça - quando ela quis me beijar eu apenas lembrei daquela nossa noite. Lembrei só do seu beijo. Então - ele me olhou e voltou para o vinho - eu subi para o terraço e você estava com o Wallace. Eu não quis interromper e fui embora da festa. No dia seguinte você falava dele com tanta paixão, que decidi reprimir o que sentia.

- Vicente - falei com pesar. Eu jamais imaginaria que isso havia acontecido. Wallace tinha me fisgado desde aquela noite - eu, não, não podia imaginar.

Ele riu - tudo bem, Amélia. Já fazem seis anos.

- Quer dizer então que me superou? - perguntei rindo.

- Nuca - falou com firmeza - podem passar mais dez anos e ainda vou sentir as mesmas coisas. Mas nós temos o livre arbítrio para amar quem quiser, só acho uma pena desperdiçar com quem não quer.

Eu não tive resposta. Apenas fiquei em silêncio. Meu celular tocou me dando um susto - desculpa - falei pegando o aparelho. Era Doriana - eu vou ter que atender - Vicente acenou com a cabeça - Dori, posso te ligar depois?

- Preciso - ela falou com uma voz chorosa - que você venha para cá.

- Aconteceu algo?

- Só vem, por favor, Amélia - ela começou a chorar.

- Estou indo, me espera ai - falei e desliguei. Olhei para Vicente - desculpa, tenho que ir, é a minha colega de casa.

- Tudo bem, você quer que eu vá junto?

- Não precisa - levantei - até amanhã.

Peguei minha bolsa e meu casaco e deixei Vicente sozinho no restaurante. Apesar de querer ficar ali e continuar a me declarar para ele. Entrei no meu carro sentindo uma vontade enorme de abraça-lo. A imagem dele sentado com seu vinho sozinho me fez sentir arrependimento, apesar de saber que precisava ajudar Doriana. Respirei fundo e segui para casa.

                         

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