Capítulo 2 Capitulo 2 - Deusa da primaveira

- Flora - disse em tom afável. - A deusa da Primavera.

Ela sorriu e desviou o olhar.

- Na realidade, é algo mais prosaico. Era o nome da minha avó.

- Diga-me, Flora, vai continuar a trabalhar depois de se casar?

- Naturalmente.

-Tem a certeza de que o seu marido não será mais ciumento quando for sua esposa?

-Isso é uma tolice - disse Flora, indignada. - O Chris não me controla.

-Melhor, porque já chegámos ao hotel e, portanto, não há nada que a impeça de

entrar comigo.

Flora esteve tentada a agradecer-lhe mais uma vez com muita dignidade e sair da sua

vida para sempre, mas o porteiro já estava a ajudá-la a sair do táxi e

tinha-lhe aberto a porta para que entrasse.

Ao entrarem na recepção, Marco Valante começou a dar ordens em voz baixa que os

empregados se apressaram a cumprir.

Flora já não tinha possibilidade de sair daquela situação e teve que reconhecer que a

única coisa que desejava era encontrar um lugar tranquilo e começar a chorar.

Nem sequer reclamou quando a acompanharam ao elevador que a levou ao primeiro piso.

Caminhou junto de Marco Valante até ao final do corredor e esperou que abrisse

a porta. Entrou a sua frente sem dizer uma palavra.

Não se tratava de um simples quarto, mas de uma suite ampla e luxuosamente

mobilada. Ele abriu as cortinas do salão para que entrasse a luz do sol.

- Sente-se - apontou-lhe um dos sofás e ela deixou-se cair sem resistir, porque

as suas pernas já não a sustinham.

- Pedi que viesse a enfermeira para que lhe cure as feridas - disse ele. - Também pedi chá e na casa de banho há um roupão para se cobrir enquanto lhe limpam o fato. Flora reclamou, nervosa:

- Você é muito autoritário para ser contabilista. Ele encolheu os ombros.

- Tento compensá-la pelo que passou antes.

- Não vejo necessidade disso - argumentou Flora.

- Não foi culpa sua.

- Mas quem sabe podia tê-lo evitado se tivesse sido mais rápido. Se tivesse obedecido

ao meu instinto e a tivesse seguido quando saiu do restaurante.

- E porque iria fazê-lo? - Flora começou a reagir. Sentia muito frio e rodeou-se

com os braços, cerrando os dentes para que não se ouvissem a tremer.

- Pensava - disse ele com doçura, - que não me era permitido fazer-lhe elogios.

Mas se quer saber, tinha muita vontade de conhecer uma rapariga linda com uns

cabelos ruivos naturais...

Afinal Hes tinha razão, pensou Flora. Ele tinha estado a observá-la durante o almoço.

-Ao que parece, você gosta de mulheres ruivas.

-Não, mas hoje, quando a vi com o sol reflectido no cabelo, não resisti, Flora mia.

Flora sentiu um arrepio na espinha e perguntou-se com quantas mulheres teria

funcionado esse truque.

"Não devia estar aqui", disse para si, e só se deu conta de que tinha falado em

voz alta quando ele lhe respondeu:

- Não tenha receio. Está completamente segura, porque de um momento para o outro começará a chegar gente e nunca mais estarei a sós consigo.

"Nunca",

lamentou-se uma vozinha na sua cabeça, "é um período muito grande e uma palavra muito triste".

- Talvez pudesse indicar-me onde fica a casa de banho-disse ela.

Ele fez-lhe um gesto para que o seguisse. Ao atravessar o quarto, ela tentou não

olhar para a enorme cama.

- Aqui é a casa de banho.

Flora olhou-se ao espelho e ficou assustada. Parecia um fantasma. O seu rosto, de tez

clara, estava muito pálido e os seus olhos cinzentos, estavam muito abertos e

esbugalhados. Tinha a cara suja e a blusa manchada e desalinhada, deixando ver

vários centímetros do soutien. "Certamente que Marco Valante reparou", pensou enquanto se despia e limpava os joelhos. Lavou a cara e

as mãos, e pôs um pouco de maquilhagem e lápis de lábios para dissimular a sua

palidez. Tinha saído com o cabelo apanhado num laço preto, mas estava despenteada e tinha o cabelo solto sobre os ombros.

Enquanto punha um enorme roupão, pensou que nada era normal nesse dia. Ainda que o

roupão a cobrisse por completo, sentiu-se aconchegada quando voltou ao salão.

Ali estava a enfermeira, disposta a curá-la.

- Ninguém espera que aconteçam estas coisas comentou a enfermeira enquanto lhe

punha creme anticéptico e lhe cobria as feridas maiores. - Claro que não,

principalmente numa rua com muito trânsito e em pleno dia, e por quê precisamente

você? Não usava um Rolex, nem jóias de ouro...

Flora tinha-se perguntado o mesmo. Supunha que tinha

sido uma casualidade; estava no sítio e na hora errados.

E continuava no sítio errado, e sem escapatória. Marco Valante tinha tido o bom

senso de se retirar enquanto a curavam, mas tinha chegado o empregado do

serviço de quartos com o chá e, sem dúvida, voltaria a qualquer momento.

E ela teria que lhe agradecer mais uma vez, visto que, juntamente com o chá,

tinha chegado um saco com o nome de uma loja famosa; no seu interior havia umas

meias novas e uma camisa de seda branca, também nova. O que mais a intrigava

era que o tamanho era exactamente o seu, o que confirmava que se tratava de um

homem que sabia muito sobre as mulheres.

Quando ele regressou ao salão, ela sorriu-lhe com cortesia.

- Sente-se melhor? - Os seus olhos verdes envolveram-na com um olhar como se o

grosso roupão não existisse. "Como se conhecesse cada centímetro do meu

corpo", pensou Flora enquanto o seu coração começava a acelerar-se numa

mistura de excitação e pânico.

- Com certeza que sim. Como nova! - exclamou.

- O serviço do hotel assegurou-me que a sua roupa vai ficar igual - sentou-se em

frente a ela. Estão a limpá-la com urgência - fez uma pausa, mas pareceu-me que

a sua blusa não tinha solução.

- Sim... - respondeu Flora, perplexa, consciente de ter sido convincente. -

Passe-me a minha carteira. Permita-me que o reembolse.

-Com muito gosto - disse, deixando cair o casaco e acomodando o seu esbelto

corpo no sofá. - Jante comigo esta noite.

Flora

ficou atordoada.

-Não posso.

-Porque não?

-Já lhe disse. Estou noiva e vou casar-me. Ele encolheu os ombros.

-Sim, já me disse, e que mais?

-Você não se importa?

-Porque haveria de me importar? Talvez eu também esteja comprometido...

-E está?

-Não. Estou solteiro, bella. Mas não me importaria

-olhou-a com ironia. - Para além disso, não estou a sugerir que jantemos na

cama... - depois de uma pausa, acrescentou: - Sente-se suficientemente segura

para servir o chá?

-Claro - Flora procurou mostrar dignidade. Leite e açúcar?

-Só limão, obrigado.

Foi um milagre que tivesse conseguido servir o chá nas chávenas de porcelana e não

sobre a bandeja e a toalha. E o pior era que Marco Valante se tinha dado conta

do embaraço que estava a sentir e sorriu divertido.

-Obrigado - disse ele quando ela lhe entregou a chávena. - Já ligou aos seus

clientes?

-Sim. Aceitaram as minhas desculpas e marcaram um novo encontro.

-Pensa que o seu noivo não se importará de cedê-la para um jantar?

-Sei que não o faria.

-É estranho - disse ele, pensativo. - Não pode ser tão possessivo.

- Porque diz isso?

- Porque nunca... a possuiu, bella.

- Como se atreve a dizer isso? - protestou Flora, abismada.

- Sempre que me é possível, prefiro dizer a verdade. E digo que você está...

intacta.

- Você... você não pode saber isso - disse Flora, indignada. - E, além disso, não

é assunto que lhe diga respeito.

- O destino fez com que os nossos caminhos se cruzassem, Flora mia - disse ele

com doçura. Penso que tenho direito a sentir-me um pouco intrigado quando olho

nos seus olhos e não detecto experiência de mulher, nem lembrança de desejo.

Ela pousou a sua chávena com tal força que a bandeja caiu.

- Você não tem nada com isso - disse, indignada,

- e gostaria de me ir embora agora, por favor.

-Assim? - disse ele, arqueando as sobrancelhas. Causará sensação, cara.

- Preferiria sair à rua nua - disse Flora com voz irritada, - a ter que suportar

as suas suposições humilhantes e erradas sobre a minha vida privada.

Marco Valante sorriu.

- Sinto-me tentado a deixá-la demonstrar isso, mas hoje não me apetece. Pedirei

que a coloquem noutro quarto enquanto espera que lhe tragam a sua roupa - pegou

no telefone, marcou um número e falou brevemente. - Uma empregada do hotel virá

buscá-la e acompanhá-la-á ao seu novo refúgio -

disse-lhe em tom amável. Rabiscou algo sobre uma folha de papel e entregou-lha. - Se

mudar de opinião acerca do jantar, pode encontrar-se comigo neste restaurante a

partir das oito.

Flora amarrotou o papel e atirou-o ao chão, dizendo-lhe clara e friamente:

- Só quando o inferno congelar, signore.

Ele

respondeu-lhe num tom doce e pensativo:

- Bem! As chamas não estão só no seu cabelo. Bravo.

- Enviar-lhe-ei um cheque para pagar isto - disse ela, agarrando na blusa e nas

meias e colocando-as na sua mala.

            
            

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