Capítulo 4 4

A rua era silenciosa e gostava disso nela, as casas eram afastadas e não me sentia obrigado a interagir tanto com os vizinhos, desde que me mudei havia mais de quatro anos.

Não gostava de pessoas e adorava a minha vida sem intromissão, porque eu não devia satisfação da minha vida às pessoas dessa cidade, porém por algum motivo elas achavam que eu devia.

Só porque eles levavam os seus carros para consertar na minha oficina e só porque eu transava com algumas das mulheres, essa maldita cidade achava que deveria saber mais sobre o meu passado. Não iriam saber nada sobre mim, além daquilo que eu estava disposto a mostrar - apenas uma rotina de trabalho e minhas corridas eventuais pela vizinhança, antes ou depois de começar os meus trabalhos na oficina.

Trabalhar. Trabalhar. Trabalhar.

Consertar qualquer coisa, porque as minhas energias eram consumidas e a minha mente, silenciada.

Eram poucas as pessoas com quem eu conversava. Uma delas era o vizinho mais discreto da cidade e com quem menos as pessoas faziam questão de conversar, ele morava em um trailer perto da floresta e às vezes eu ia lá dar uma olhada em sua casa e em seu aquecedor, levava alguma bebida e fazia uma fogueira.

Esse senhor era a única pessoa que não estava interessada em saber quem eu era, eu o encontrei um dia enquanto corria de madrugada pela trilha porque estava no meu caminho, caído no chão e com um corte na testa. Eu senti pena do velho, que, se fosse deixado ali, morreria de frio.

Tirei o meu moletom e o cobri, ele resmungou e estava claramente bêbado.

- Você é um alien? - Foi o que me perguntou. - Eu não estou pronto para ir ainda. Se for me levar, me leve com uma roupa melhor que essa... Eu serei estudado.

- Casa? - perguntei, segurando-o pelo braço e forçando-o a ficar de pé.

- Na floresta, tenho um trailer e não uma nave.

- Vamos.

Ele ajeitou o seu gorro e tocou na testa ensanguentada.

- Puta merda... Já começaram a mexer no meu cérebro? Aliens malditos.

Cogitei deixá-lo perdido na floresta.

- Vamos - repeti.

- Você é um homem de poucas palavras? Que bom, porque eu costumo falar muito.

Não falei mais nada e só o acompanhei até o seu trailer. Antes de entrar, deixou claro que estava desorientado, ao me convidar para passar um tempo com ele.

- Me traga bebidas - ele exigiu.

Eu sempre tinha sido uma pessoa de poucas palavras porque tinha medo de usá-las, tinha medo de falar coisas que não deveria e, com o tempo, eu só me acostumei a encurtar as frases e falar pouco.

Franzi a testa e voltei para a floresta, anos se passaram, e eu continuei indo pelo mesmo caminho para me certificar de que ele estava aquecido no trailer. Levava comida às vezes, ele costumava assar carne para nós nos festivais em que não fazíamos questão de aparecer.

Eu não sabia qual era a sua história, mas sabia que tínhamos algo em comum, além da solidão: não gostávamos tanto das pessoas dessa cidade.

E, nessa noite, eu levei uma bebida; e ele, aperitivos. Preparamos uma fogueira e ficamos em silêncio como costumávamos ficar.

- Você é muito solitário, Five - ele disse, bebendo o whisky que tinha oferecido. - Tem que encontrar uma boa companhia além da minha e não será difícil.

Oficina Five, o mecânico Five e nada mais. Era assim que me conheciam. Nenhum sobrenome e nada que indicasse a minha origem.

O senhor de cabelos grisalhos poderia ser considerado o meu melhor amigo se um dia eu tivesse.

Estávamos na frente da fogueira e encarando o céu. A parte boa de morar nessa cidade eram as trilhas de tirar o fôlego porque, a cada estação, as paisagens pareciam se renovar, mas não mudava nada dentro de mim.

Aquela conversa toda de que o ar puro de uma cidade pequena fazia bem não funcionava comigo, porque não eram os meus pulmões que estavam com defeito, eu era todo defeituoso, e ninguém conseguia me consertar. Nem o ar mais puro que eu respirei era capaz de me trazer vida, porque não restava nada em meu coração além de uma completa escuridão.

- Não preciso.

- Eu era assim, o velho Major aqui era muito solitário.

Eu não sabia qual era o nome dele, já que se apresentava como Major e era assim que eu o conhecia. Era um Major fantasma que assustava as crianças que se perdiam nas trilhas do Park e do lago Red, e também tinha aquele acampamento que enchia sempre no verão.

- E não é mais? - perguntei, achando graça, antes de beber mais um gole do whisky.

- Não agora, antes de morar nesse trailer, eu não era só, mas passou.

Ele não falava do passado, ele era como eu e por isso gostava dele.

- Hmm.

- Quantas crianças acha que vou assustar nesse verão? Eu deveria ganhar uma comissão por isso, já que os Hughes alimentam as histórias de terror de que tem um velho que enterra crianças perto das árvores.

Os Hughes eram donos do hotel da cidade, do parque e do acampamento Red. Eram insuportáveis, ricos e estavam no topo da elite da cidade, que tinha uma população muito rica e bem diferente de mim e do Major.

Eu não tinha nada, além daquela oficina que consegui usar, vendi um comércio que herdei também, era um restaurante que nem cheguei a conhecer. Era falido e boa parte dele foi comprada por um advogado em nome de um desconhecido.

O restaurante veio junto com a casa, que foi uma herança que ganhei de uma tia-avó por parte de mãe que não conhecia, mas, para todos na cidade, eu apenas comprei a casa porque ninguém sabia que a senhora tinha um parente vivo, e nem eu sabia que tinha mais alguém além da minha mãe.

- É. Deveria.

- Vão começar os fogos, Five, se prepare. - Ele apontou para o céu.

Os fogos de artifício eram para dar boas-vindas às crianças ricas e mimadas que passariam o verão em Golden Valley. Era a mesma merda todo o ano, e um deles poderia se perder nas montanhas que o Major iria assustá-los, colocando a língua para fora e gritando, e depois me contaria que fez uma criança se mijar de medo só porque tocou em uma árvore e apontou para ela.

- Eu vou enterrar você nessa árvore se pisar aqui novamente - ele sempre ameaçava.

Mas nunca adiantava porque no verão aquelas crianças aterrorizavam mais o velho Major do que ele às crianças e algumas apedrejavam o seu trailer, quando o verão acabava, eu vinha aqui para repor janelas ou limpar as ofensas pichadas em seu trailer. E com um tempo eu comecei a fazer parte da lenda, sendo o ajudante do velho demoníaco.

E não fiz nada para merecer isso porque me mantinha longe das crianças.

- Você sabe que tem que encontrar uma boa mulher - disse, agachado perto da fogueira. Ele precisava de casacos novos e iria comprar no próximo bazar da cidade porque a primeira vez que comprei roupas novas para ele, disse que não queria, gostava dos trapos. - Uma pena que terminou com aquela sua namorada.

- Ela terminou.

- Pena... Mas vai encontrar alguém, meu jovem. Alguém que não seja tão exigente quanto ela.

Como ele sabia que Isabeli estava sendo exigente com o nosso relacionamento?

Não éramos namorados, mas uma foda que durou mais de uma noite e, embora ela tivesse os seus erros, assim como eu tinha, Isabeli merecia um cara melhor do que eu.

- Bem... Eu...

Qual era o meu problema? Tinha dificuldade de falar sobre mim e os meus sentimentos e por um momento cogitei pedir conselhos a um velho que não saía do seu trailer e da floresta havia anos.

- Soube que a filha dos Queiroz voltou. Eu me lembro da mais velha, era uma boa menina, não deixava os outros garotos chegarem perto do trailer e trazia comida para mim. Não tinha medo. Uma vez ela me trouxe uma ceia completa no Natal, boa menina...

- Eu a vi.

- E como ela está agora? Feia, bonita, mediana, mais ou menos? A bondade dela deve compensar tudo.

Não iria dizer o quão horrível aquilo soou.

- Ela é normal.

Não. Aquela mulher não era normal porque nunca tinha visto uma morena tão linda na minha vida, eu a vi fechar os olhos e respirar como se os seus pulmões não fizessem isso havia tempos e, quando abriu para encarar o céu, juro que me arrepiei com aqueles olhos. Me perturbavam porque me trouxeram uma sensação de familiaridade.

- Bem, ela deve ter crescido e deve estar feliz depois que se casou com um milionário. É o que dizem.

Ela tinha cara de mulher grã-fina mesmo, não era todo dia que tinha uma BMW estacionada na rua. Um dos motivos de ter saído para espionar. Eu tinha pavor de carros de luxo e de pessoas ricas. Aquele carro com motorista e aquelas roupas... faziam parte da elite. E eu odiava isso.

- Há quanto tempo mora aqui? - perguntei.

- Não me lembro mais. Deve ser por isso que fizeram uma lenda comigo, eu me tornei parte desse lugar.

Comeu um pedaço do queijo que eu trouxe.

Eu tinha visto o carro parar mais cedo em frente à casa barulhenta, o casal nunca tinha me incomodado diretamente, mas fazia barulho quando resolviam cantar alto. O filho mais novo deles era esquisito, mas ele queria ser assim, já o tinha visto cantar algumas vezes no pub e não era ruim, gostava das músicas e da sua voz.

Uma vez ele bateu na minha porta e disse que tinha brigado com os pais e pediu para ensaiar no meu porão.

- Nem fodendo. - Bati a porta na cara dele.

Ele não levou para o pessoal porque continuou me tratando da mesma forma de sempre, não dava a mínima para a minha existência, nem para a de ninguém.

- Que tal amigos? Você precisa de amigos na sua idade. Nunca teve amigos?

- Sim. Tive uma amiga, mas eu a abandonei - confessei.

- Você foi terrível.

- Fui.

- Não perdoou você?

Eu não merecia perdão.

- Eu nunca mais a vi. - Terminei a minha bebida e me levantei, dobrei a cadeira que tinha comprado alguns meses para nós. Deixei o copo em cima da cadeira e coloquei o capuz antes de seguir a trilha.

- Não saia para a floresta essa noite, tenha cuidado com os aliens.

E os aliens eram as crianças.

Seguindo a mesma trilha com o barulho dos fogos, nesse momento sempre me dava conta de que o sossego da cidade tinha terminado por causa dos Hughes. Odiava os Hughes. Odiava.

Isabeli trabalhava para os Hughes e seguindo a tradição dos pais dela, que trabalhavam para eles, os Hughes gostavam da servidão e lealdade do povo da cidade, e não teriam a minha. Ninguém merecia a minha lealdade e muito menos que eu o servisse, tinha quase certeza de que o problema estava em mim.

Eu era defeituoso e sempre ouvia isso das outras crianças, e na vida adulta não era diferente, porque eu não conseguia ser verdadeiro com ninguém e vivia contando meias verdades por aí. Nunca a verdade absoluta.

Ficava enojado com as histórias que ouvia de Isabeli e devia ter sido por isso que nada entre nós tinha dado certo, ela idolatrava aquela família e, no fundo, me perguntava se ela não queria fazer parte dela. Devia ser. Todo mundo queria ser tão rico como os Hughes. Eu não.

Estava perto da estrada, só faltava mais um pouco, porém tinha alguém no parque e fiquei em alerta. Se fosse alguma criança, eu iria assustá-la e sem ser a minha intenção. Merda.

Mas nessa noite não me deparei com um alien perdido, mas com uma mulher agachada no chão e chorando. Eu me aproximei do corpo encolhido e resmunguei, mas ela não tinha percebido que eu estava bem ao seu lado. Descuidada.

- A estrada é logo ali - avisei.

Só para o caso de estar perdida. Não era minha obrigação ser babá dos aliens, nem dessa mulher, e nem cuidar de um velho maluco que vivia no trailer na floresta.

E se eu fazia isso era porque uma vez uma pessoa me disse que ajudar as pessoas fazia você ser mais feliz e reduzia o estresse e desde aquele dia queria comprovar que ela estava completamente errada, sempre que podia cedia ao meu pequeno lado altruísta e ajudava as pessoas, mas advinha? Continuava triste e estressado.

- Dane-se! - disse depois de ser ignorado por ela.

Os cabelos pretos e roupas caras, sabia bem quem era. A grã-fina de mais cedo.

- Por favor... Eu... não...

Eu ouvi o seu sussurro sofrível.

Foi tão sofrível que algo dentro de mim se revirou, como se o sofrimento dela tivesse ativado algo em mim que talvez estivesse adormecido, essa droga chamada de compaixão.

Voltei para perto dela e arranhei a garganta. Ela me olhou. Que olhos. Graúdos, redondos e castanhos, estavam com lágrimas e inchados. Ela cobria os ouvidos e entendi que a dona tinha medo de fogos de artifício. Eu também odiava os fogos e, se eu pudesse enfiá-los no rabo do Hughes, eu enfiaria.

Me agachei ao lado dela.

- O-obrigada - disse.

Tentou enxugar as lágrimas, ela estava com a voz falha e com dificuldade de respirar, tanto pelo ataque de pânico, quanto pelo nariz constipado. Mas ela continuava linda. Tinha feições delicadas e eu era diferente, porque só conseguia fazer poucas expressões e na maioria das vezes tinha uma cara mal-humorada, era o que o Major dizia.

Ela se encolheu novamente quando começou uma nova rodada de fogos de artifício, mais cinco minutos de barulho desnecessário. Não sabia mais o que fazer, além de ficar ao lado da estranha. Ela apertava os punhos com força e me bateu um déjà vu, fazia tempo que não via alguém fazer isso.

- Respire... - Claro que ela tem que respirar ou morrerá, seu idiota. - Com calma.

Como me sentia patético. Até o Major conseguiria se sair melhor do que eu.

- Sim. - Ela me encarou com gratidão.

Ninguém nunca mais tinha demonstrado gratidão por algo que tinha feito e o mais cômico de tudo era que eu não tinha feito absolutamente nada para ela me olhar dessa forma.

- Bom.

- Você pode falar alguma coisa? Eu me distraio, geralmente eu falo muito, ou falava muito... Ah... Faz tempo que não converso.

- Só faltam quatro minutos para terminar - garanti.

Era tudo o que eu tinha que dizer.

- Ah...

- Eu odeio fogos - mas eu continuei.

- Eu não odeio, eu amo.

Só podia ser louca porque como podia dizer que amava algo que a fazia se borrar de medo?

- E chorar de medo é para demonstrar que ama?

Eu não era um bom garoto para não destilar um pouco de ódio contra uma riquinha mimada.

- Nem sempre... Sabe... - Ela me encarou confusa e com as bochechas coradas.

Tinha encontrado alguém com dificuldade de falar pior que a minha e isso de alguma forma não me confortava.

- Não precisa falar se não quer.

- Eu... huh... Não tenha medo. Fale sobre qualquer coisa que não sejam os fogos.

- Você conhece a história dos fogos?

Aha!

Merda. Cale a merda da boca, idiota!

Ela riu.

Ninguém se importava em querer saber história de nada e tinha certeza de que estava rindo da minha cara.

- Você é engraçado.

Eu não era engraçado, e falar com ela estava me causando sensações de déjà vu.

Eu gostava muito de pesquisar sobre quem criou e como surgiram as coisas. Quando mais novo, eu era bom nisso e gravava bem, era um vício saber sobre essas coisas e prometi saber sobre o máximo de coisas possíveis apenas para ser o dicionário de uma garota.

- Eu adoraria saber. - Sorriu.

E, definitivamente, ela parecia se iluminar quando sorria. Mas ela era uma rica que partiria em algumas semanas, mas antes iria para aqueles festivais ridículos que os Hughes faziam.

- Foi criado na China, acidentalmente, colocavam nos bambus na virada do ano para afastar mal espíritos.

- Oh... Legal. - Encarou o céu, foi então que percebi que ela não tinha medo dos fogos, mas do barulho. - Preciso que espantem os maus espíritos.

- Obrigada por me ajudar.

- Eu não te ajudei.

Os quatro minutos terminaram. Me levantei, e ela também e parecia melhor, por isso me adiantei na trilha, não queria mais ter que encontrar com ela e até mesmo parar e falar com ela.

            
            

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