Capítulo 5 5

Ele tinha se afastado de mim como se eu lhe causasse medo, e eu não estava mais com medo de um estranho encapuzado que cheirava a whisky e a fumaça. Sua barba era grande com pelos castanhos e alguns brancos também, embora estivesse encapuzado dava para ver cachos castanho-escuros e longos emoldurando o seu rosto.

A voz dele tinha me acalmado, e que voz, porque não era uma voz temperada com a suavidade de alguém que poderia falar palavras gentis e fazer você se sentir bem mesmo que as palavras fossem simples, como a voz do meu marido.

A sua voz era como uma avalanche do som de um gelo se quebrando toda vez que dizia alguma coisa e, mesmo sendo poucas palavras, causava um abalo, e os seus olhos não eram diferentes, eram o gelo da avalanche.

Eu juro que me arrepiei quando ele se agachou ao meu lado e o meu medo pelo som dos fogos de artifício queria disputar com o medo de ele me partir em duas no meio da trilha, mas quando ele disse para eu respirar foi como pedir para que eu vivesse, e o medo não teve mais espaço entre nós. Ele estava tentando me ajudar e eu não o conhecia. Eu tinha que agradecê-lo devidamente e foi uma pena que não pude acompanhar os seus passos apressados, que terminaram na casa da frente.

Ele não olhou para trás. Ele não quis saber mais de mim.

E eu entrei na minha casa enxugando as lágrimas para que os meus pais não me vissem daquela forma, mas o meu irmão estava na cozinha pegando uma pilha de pratos. Ariel apertou mais a pilha em seu corpo, as suas unhas estavam pintadas de preto.

- Oi - eu disse, abrindo um sorriso forçado.

- Você não precisa fazer isso, sabia?

- Não sei do que está falando, querido.

Fechei a porta atrás de mim e, apertando os punhos com força, fazia isso em algumas ocasiões, que quem me conhecia de verdade sabia quais eram. Quando estava nervosa, com medo, sob pressão. Eu não dei importância para revirada de olhos do meu irmão, fui até a pia lavar as mãos e as palmas delas estavam vermelhas porque passei muito tempo com os punhos apertados.

- Fingir que está com vontade de sorrir quando está com vontade de me estripar. Você sempre faz isso. Pensei que tinha parado com essa mania.

- Não estou com vontade de te estripar. - Olhei um tanto horrorizada para Ariel.

Eu amava Ariel e sempre tinha vontade de expressar isso.

- Então a pergunta é... Quem é a vítima?

Eu novamente tinha sorrido e apenas Ariel tinha capacidade de me fazer rir em situações que eu não queria sorrir, mas eu sabia que não era a intenção dele. Ele não era do tipo que fazia as pessoas sorrirem, mas chorarem.

Enxuguei as mãos no pano de prato e peguei a bandeja com quatro copos e uma jarra de suco, porque sabia que a minha mãe estava servindo o jantar.

- Você vai levar isso? - Disfarcei. Nossa. Mandei bem mudando de assunto, mesmo sabendo que talvez não tenha funcionado tanto com ele. - Vamos? Eu levo os copos.

- Ok.

Como sentia falta de um jantar com as pessoas que mais amava no mundo, e a refeição simples como o macarrão com salsicha era melhor do que qualquer banquete de que tinha participado. Seria difícil passar um tempo com eles sem me culpar por ter perdido tudo isso por mais de seis anos.

Meu pai estava elogiando o macarrão da minha mãe e agradecendo e era assim em quase todas as refeições, ela ficava tímida com elogios e cobria a boca com a mão enquanto sorria ao mastigar.

Às vezes, eu me perguntava se era porque o meu pai podia achá-la menos atraente, como o meu marido, que não suportava me ver chorando. Contudo, duvidava que o meu pai trataria a minha mãe da mesma forma. Balancei a cabeça para apagar as lembranças dolorosas dos últimos dias até porque os meus olhos tinham começado a esquentar, e eu precisava manter as lágrimas por mais tempo até estar sozinha no meu quarto.

- Eu ainda sei fazer o melhor macarrão com salsicha? - minha mãe me perguntou e todos na mesa me olharam.

- Sim... Ainda é o melhor, mãe.

Os sorrisos dela eram quase sempre verdadeiros e atualmente os meus eram falsos. A minha mãe era o tipo de pessoa que, quando as coisas não andavam bem, ela demonstrava que não estava.

Os meus pais fizeram tudo pela minha felicidade e não iria falhar em demonstrar que estava feliz, o que acontecia na minha vida eram problemas que seriam resolvidos. Afinal, todos tinham problemas.

- A sua mãe saiu para comprar salsichas assim que soube que você estava vindo - meu pai comentou.

- Obrigada.

Novamente as malditas lágrimas, e Ariel murmurou alguma coisa antes de beber um copo de suco.

- Eu não vou te dar carona porque o meu carro está quebrado e não quero lidar com o mecânico gostosão - Ariel disse.

Ariel era dono de um Fusca verde que ele chamava de senhor Sapo.

- Não pretendo sair de casa, ou sair para longe...

Realmente não pretendia, só precisava ficar no meu quarto até que a solução aparecesse. Sim. Estava sendo covarde para enfrentar a merda da minha vida. Eu queria um esconderijo e não uma reabilitação. Me sentia envergonhada e fracassada, não porque cometi um simples erro, mas porque eram os meus filhos. Eu não podia ter falhado com os meus filhos.

- Ah, não vai não... Preciso de ajuda na livraria. É verão, mas os leitores não tiram férias. Então você vai - meu pai determinou.

- Você precisa de um carro, querida - minha mãe sugeriu.

Eu sabia o que eles estavam tentando fazer, não queriam me deixar em casa sozinha e não aceitavam que a filha deles se tornasse um pedaço esquecido no mundo, sendo abraçada cada dia mais pela tristeza, diferente do meu marido, os meus pais queriam me mostrar ao mundo quebrada do jeito que eu estava porque não tinham vergonha dos meus cacos. E eu sabia que, quanto mais partida eu estivesse, mais os meus pais iriam tentar me mostrar uma estrada nova a cada dia. Eu os amava imensamente.

- Eu... Realmente preciso. - Abaixei o olhar, perdida como sempre. - Também preciso dizer que... Ah... Andrew.... - Engoli em seco, seu nome soou como uma maldição na minha boca. - Andrew e eu...

Simplesmente não conseguia falar que o meu casamento imperfeito tinha se transformado no fracasso perfeito.

Senti a mão da minha mãe dando batidinhas na minha coxa.

- Sabem o que dizem nesta cidade, o lago Red segue pelo vale, querida. - A minha mãe tentou me confortar.

Na verdade, o lago ficava parado porque era um lago.

Se a minha vida fosse como um rio, saberia para onde ir.

Mas não queria dizer isso a ela porque tinha entendido o que ela quis dizer - eu precisava seguir.

Ela sempre falava isso quando fazíamos uma merda. Nunca foi o tipo que lambia as feridas por muito tempo.

- Amanhã, Vampiro vai escolher um bom carro com você. Bom, alugar um. Passei em frente à oficina Five um dia desse e tinha um belo Cadillac vermelho - o meu pai me orientou.

- Não vou, não... - Ariel recusou.

- Sim, um belo carro. E que rapaz dedicado... Pena que não gosta de humanos - a minha mãe continuou comentando do carro e do rapaz que supostamente não conhecia.

Five?

- Não precisa ir, Ariel- disse para o meu irmão.

- Obrigado pela compreensão, irmãzinha.

- Não, ele vai. O que fará de tão importante amanhã para não...

- Ensaio da banda e depois... Mãe, posso não ter casado com um milionário, mas ganho meu pão como garçom.

Ele sempre tocava no ponto fraco das pessoas e sabia que nesse momento o meu ponto fraco era o meu casamento fracassado, mesmo não sabendo metade das coisas que aconteceram comigo. Ele sabia da primeira perda, toda família estava cheia de expectativas pelo nascimento dela. A segunda perda, não.

Eu não contei para eles sobre a minha segunda gravidez porque eu tive medo da quebra de expectativas e só queria mais um tempo.

A minha mãe fez um som de desgosto acompanhado de uma fuzilada amarga para o meu irmão.

- Não seja assim, querido. A sua irmã precisa de companhia.

- Sim, vou dar uns trocados para passar no Fontenelles - a minha mãe ofertou.

Ariel sustentou a cabeça nos punhos, com os cotovelos na mesa, enquanto remexia o macarrão no prato, com a cara de poucos amigos.

- Eu não quero tortas - disse por fim.

- Posso ir sozinha, está tudo bem.

A minha mãe fez um gesto para que eu me calasse porque ela não iria desistir de fazer Ariel fazer a sua vontade.

- Mas sei que gosta de entrar lá para provocar os donos, que não gostam de você - a minha mãe cantarolou com um biquinho.

O meu pai sorriu, concordando.

- Eu ainda me lembro de quando você era um garotinho rebelde e escreveu na vidraçaria deles com o batom da sua mãe - relembrou o meu pai.

- Sim, eu tirei uma foto do nosso pequeno rebelde. - A minha mãe limpou os dedos do meu pai, sujos de molho de tomate. - Qual era mesmo o nome...

- Paul Valéry - eu lembrei. - "Todo homem tem em si um ditador ou um anarquista."

- Autoritarismo ou liberdade descontrolada - o meu pai explanou. - Nesse caso, os pobres coitados dos Fontenelles eram autoritários, segundo o meu filho.

- E Ariel sempre teve uma liberdade descontrolada - eu disse, rindo.

- Eu vou... - resmungou baixo. - Só parem com isso.

- Se fosse os Hughes, eu entenderia, mas os Fontenelles? Os pobrezinhos deixam essa cidade mais doce com suas tortas... O que eles têm de ditadores?

- Essa treta é velha, querida.

A melhor parte era o meu pai usando gírias.

Os meus pais se divertiam com a história, mas Ariel, que tinha o pavio curto, já estava surtando com as únicas pessoas no mundo que conseguiam tirá-lo do sério.

Ele não gostava do casal de velhinhos e isso era fato.

- Já disse que vou! Eu disse que vou levar sua filha querida para um passeio no parque e agora me deixem em paz!

Saiu da mesa, suspirei pesado, sabendo que eu não comeria mais nada.

- Vampiro, volte aqui... Só estávamos brincando com você, filho... - o meu pai disse.

Mas ouviu apenas o barulho dos seus passos subindo os degraus.

- Nosso filho sempre foi muito temperamental - comentou a minha mãe.

- Eu vou dar uma passada no quarto dele antes de dormir.

Eu não estava mais com fome, mas continuei à mesa e depois ajudei lavando e enxugando os pratos. Ambos me deram boa noite antes de subir para o meu quarto, tinha deixado o meu pai na sua poltrona e a minha mãe terminando de guardar as panelas na cozinha. Essa noite a porta do quarto dele estava escancarada, o que deixava claro que queria falar comigo também, mesmo assim dei dois toques na porta e ele, que estava tirando o seu violão da caixa, me deu atenção.

- Olhe, Ariel, eu não quero dificultar as coisas para você.

- São seis anos, e não seis dias. Não sou como Cristina e Victor, que ignoraram esse fato. Então muita coisa mudou e não seremos bons amigos.

Achei que as coisas tinham progredido entre nós porque, quando parti, eu tinha deixado um Ariel que dizia que sentiria a minha falta, e agora Ariel detestava a minha presença.

- Eu entendi.

- Ótimo, agora se me der licença...

- Mas amanhã você vai comigo porque você prometeu para os nossos pais.

- Eu só disse que ia. Agora saia, por favor.

Mais uma coisa que foi arruinada na minha vida, o meu relacionamento com o meu irmão, e não tinha sido nada fácil conquistá-lo.

                         

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