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Capítulo 2 – Tigers
Soldado Mary Abigail Robinson
- Temos que ver quanto de suprimentos conseguiremos nessa merda de quarteirão, cara!
Eu praticamente gritei, de forma um tanto estressada, em meu radiocomunicador antes de recolocá-lo em minha mochila e observei a noite lá fora para me acalmar, através da janela da residência na qual me encontrava. O clima quente, porém sem ventos e o céu estrelado davam a entender que nós enfrentaríamos algum tipo de tempestade nas próximas horas.
Felizes eram as pessoas de antes do surto, que tinham toda tecnologia à disposição com a finalidade de anteverem eventos climáticos de elevado risco como estes que se avizinhava. Nós, por outro lado, estávamos à mercê da sorte em todos os sentidos, sem sequer sabermos se viveríamos para contar o dia seguinte ou se morreríamos de forma estúpida.
Não esperei por uma resposta em meu rádio, porque sabia que as pessoas leais a mim estavam a fazer exatamente o que ordenei. Eu não precisava me preocupar em fiscalizar ninguém, porque para controlar os ânimos de todos além do ir e vir, eu desfrutava de algo bastante eficaz quando me aproximava: respeito. Eu não tinha necessidade nem mesmo de erguer a mão para ameaçar quaisquer de meus integrantes, porque apenas a certeza de que eu tomaria alguma medida drástica caso alguma ordem minha não fosse cumprida já era o bastante para que ninguém se atrevesse a me enfrentar.
Jamais imaginava, antes que a epidemia perdesse o controle, que eu ocuparia um posto relevante em um grupo que, se não era numeroso demais, costumava ser violento e eu sabia perfeitamente disso. No entanto, nem sempre foi assim. Antes do surto meus ideais eram nobres.
Eu tinha o sonho de me alistar no Exército Americano e, dentre os recrutas da turma que eu fazia parte, como única mulher eu era bastante subestimada por pertencer a um gênero tido como frágil. Eu podia até mesmo dizer que eu era superprotegida por um dos tenentes que nos orientava, fato que me enojava demais, porque meu desejo de demonstrar que eu era alguém plenamente capaz só aumentava.
Afinal de contas, eu não queria nenhum tipo de proteção. Pretendia ser mais forte do que todos os meus colegas quando da preparação, com a finalidade de que eu fosse designada para qualquer missão, assim que conseguisse me tornar soldado, o que não demorou muito a ocorrer.
Entretanto, três meses após eu estar em uma missão de patrulhamento de fronteira na Califórnia, o surto teve início. Lembro-me de ter sido uma corrida desenfreada para casa, todos queriam voltar e ter certeza de que seus familiares estavam seguros, já que não tínhamos acesso à internet nem ao telefone para que falássemos com nossos entes queridos.
Recordo-me de ter pedido ao tenente comandante da missão, de nome Roger Ortega, que me deixasse ir também. Havia duas pessoas de minha cidade que faziam parte do destacamento, então não teria por que eles me manterem ali. Porém, o comandante da missão não aceitou minha solicitação, mesmo que eu implorasse e que argumentasse, inclusive citando meu irmãozinho de cinco anos, que precisava de mim por perto.
O tenente Ortega foi a primeira pessoa que muitos chamariam inocente, que vim a matar. No entanto, somente eu presenciei, de modo atônito, um infectado atacá-lo, mordê-lo e contaminá-lo. A principal forma de contágio do vírus até então desconhecido que desafiava as autoridades era a mordida, mas logicamente havia outras. Por exemplo, se você estivesse em um combate, se acabasse por se ferir e, logo depois, entrasse em contato com sangue contaminado, sua passagem para um lugar melhor estaria garantida, isso se você realmente acreditasse nisso.
Pessoalmente eu nunca acreditei em vida após a morte, porque se existisse um Deus, ele não deixaria seus filhos perecerem em uma terra maldita repleta de perigos, a não ser que Ele fosse um maldito sem escrúpulos.
Mas independentemente de minhas crenças, com o passar das horas, após eu ter enfiado uma faca na garganta do tenente Roger Ortega – já que o cadáver dele foi encontrado na sala de comando –, o primeiro sargento Martin Butler me denunciou aos poucos generais que restavam.
Então, sem ser comunicada do fato para que pudesse me defender, fui expulsa do Exército Americano e considerada criminosa de alta periculosidade, além de ser tida como desertora em poucas horas. Era o que Anthony Diaz, um dos poucos amigos que eu havia feito naquela merda – somando-se à relação estreita que eu tinha com a sargento Meg Butler –, dissera-me.
"Fodam-se os que me baniram", ao menos era o que eu pensava, principalmente pelo fato de o comandante estar infectado e de isso ter sido solenemente ignorado. Eu tinha poupado o homem de se transformar naquelas coisas horríveis que assustavam a todos nós –, então minha consciência se mantinha tranquila.
A raiva sentida por mim podia ser notada à época, principalmente porque, depois de me denunciar, Martin também tinha regressado para Galveston juntamente com sua irmã, a recém-promovida a sargento Meg Butler. Claro, os pais deles eram renomados médicos do exército, os filhos deles tinham certos privilégios em relação a mim. Mas eu não queria sequer parar para ouvir a razão.
Como Anthony sabia pilotar aviões, decidimos pegar um e fugir. Eu era considerada desertora de qualquer maneira; ele, um traidor por ter se aliado a mim. Então ele prometeu me deixar em casa e depois seguir para New York. Porém, meu leal amigo jamais chegou ao seu destino.
Ele tinha sido mordido horas antes de viajarmos e, quando chegamos a Galveston, pediu que eu o matasse. Eu não queria fazer aquilo, mas sabia que a vida dele tinha sido condenada no instante em que se contaminou, então não havia escolha.
Suspirei enquanto recordava fatos passados e avancei pelo restante da residência em que me encontrava, principalmente quando escutei a voz de Sophia Bennett no radiocomunicador. Ela sempre me passava uma diretriz sobre onde meus Tigers estavam, assim eu poderia ter uma estimativa de quanto tempo permaneceríamos do lado de fora.
Nós não tínhamos medo da noite, embora houvesse infectados a perambular pelas ruas. Eu treinava todos os homens e mulheres que se aliavam a mim para que fossem ferozes combatentes. A maioria deles se saía bem com armas de fogo, ainda que alguns poucos gostassem da luta corpo-a-corpo e de manejar armas brancas.
Subi as escadas para o andar superior da casa e, ao ouvir o som agonizante que por mim se tornou tão conhecedor nos últimos dois anos, agachei-me à espera. Como eram desprovidos de inteligência e estavam famintos, o infectado veio diretamente para me atacar e, quando tomei impulso, coloquei um de meus braços em volta do pescoço dele, apertei com toda força e o matei.
Eu sabia se tratar de uma morte rápida e até certo ponto necessária. Aqueles seres que se assemelhavam fisicamente a nós, ainda que fossem mais maltrapilhos e sujos estavam perdidos. constituíam-se em ameaças e, se não os assassinássemos, eles se alimentariam de nós.
Eram nossos inimigos, assim como muitos dos indivíduos que haviam sobrevivido. O principal lema era não confiar em ninguém, até que se provasse o contrário. Eu só não conseguia levar essa regra à risca quando havia crianças em situação de perigo, por motivos óbvios.
- Mary Abigail Robinson... Está na escuta?
Novamente ouvi a voz de Sophia. Bufei sonoramente enquanto o corpo já sem vida do infectado tombava aos meus pés, abri a mochila às minhas costas e de lá retirei o radiocomunicador para que pudesse responder a ela, ao mesmo tempo em que eu deixava o cômodo.
- O que é? - Perguntei, visivelmente de mau-humor.
- Terminamos de coletar suprimentos desse quarteirão. Você quer que passemos pro próximo?
- Todos os cinco grupos de quatro pessoas estão aí com você?
- Eu ainda não verifiquei isso...
- Devia tê-lo feito antes de me chamar pelo nome inteiro então, porra. - Eu respondi exasperada.
Ela deu uma risadinha. - Relaxe... Por enquanto, ninguém mais tem rádio além de nós duas. O pessoal não achou mais equipamentos ainda.
Voltei a bufar e dei de ombros, enquanto aguardava sua resposta quanto à contabilização. Sophia Bennett era a única integrante de meu grupo que sabia meu nome completo, o que não significava que ela podia dizê-lo quando quisesse, porque eu simplesmente o odiava.
Não demorou muito tempo para que ela me garantisse que sim, todos os meus comandados estavam a postos à espera de novas ordens. Então como sempre ocorria nos últimos dois anos, deixei a casa em que estava para encontrar o pequeno grupo de indivíduos que eu tinha escalado no intuito de que fizessem as rondas noturnas.
Assim que cheguei em frente à praia de East Beach, postei-me junto às 21 pessoas, além de Sophia, as quais esperavam minhas orientações. Olhei uma vez mais para o céu estrelado, depois me voltei para a praia e, como estávamos praticamente no Golfo, conseguia ver que o indício de um mar agitado definitivamente não era um bom sinal. Se nós não nos apressássemos, poderíamos ter de lidar com uma tempestade, também.
- Agora vocês vão formar três equipes de seis pessoas cada e irão até o resort San Luis. Eu soube que há viajantes por lá que pretendem chegar ao grupo militarizado de Meg Butler. E nós não vamos permitir que eles consigam alcançar esse objetivo, não é mesmo?
A maioria dos meus comandados acenou positivamente, no entanto Gustav, um rapaz de origem norueguesa, mas de pai americano não concordou. Ele costumava questionar acerca do objetivo das missões com frequência, já que não via motivos para que impedíssemos as pessoas de escolher outro grupo como porto seguro.
Eu prontamente o fuzilei com um olhar mortal, no entanto não precisei dizer nada. Bastou ele se sentir observado para recuar alguns passos e obedientemente assentir, sem a coragem necessária para proferir uma palavra sequer.
- Muito bem. - Eu retomei minha fala. - Ellen... - Apontei para uma garota de 19 anos que caminhou em minha direção. - Você está responsável por organizar os três grupos que vão vasculhar o resort. Vocês sabem perfeitamente o que tem de ser feito. Limpem a área, peguem tudo. Se houver alguém que queira vir conosco ótimo, mas caso contrário... Atirem pra matar. Sophia, Miguel e Adam, chamem o Ethan e comecem, vocês quatro, a vasculhar as casas do próximo quarteirão. Eu quero isso tudo limpo, seja de pessoas não leais a nós ou de infectados até metade da manhã!
- Sim, senhora!
Dispensei meus comandados e caminhei até a praia, mesmo que fosse madrugada e que eu estivesse com minha jaqueta de cor preta, calça cargo da mesma cor e botas também escuras, não me importava. Galveston era uma cidade livre de leis, assim como todo os Estados Unidos da América e, ao menos aquela cidade poderia vir a ser minha, em parte. Eu não precisava de muita coisa para me sentir plena. Se aquela região da praia de East Beach me pertencesse, já ficaria feliz. Tudo que me bastava era ter embarcações, um vasto arsenal e uma bela mulher ao meu lado. Eu já havia conseguido munição o suficiente, porque as cidades vizinhas tinham poucos habitantes e, assim que formei meu grupo há dois anos, quando éramos inicialmente cerca de 30 indivíduos, pegamos um carro e deixamos Galveston para que procurássemos por armas e por munições. Matávamos quem víamos pelo caminho e roubávamos o que podíamos, exceto crianças e, como a população inteira não confiava em mais ninguém de qualquer maneira, comecei a não sentir mais o peso de assassinar o próximo para obter bens de que precisávamos.
Respirei o ar fresco da área costeira, abri a mochila, estendi uma toalha na areia, retirei a jaqueta e as botas e, logo depois, dirigi-me à beira-mar. Para evitar surpresas tinha o rifle pendurado em meu ombro, embora eu soubesse que somente com minhas mãos poderia aniquilar qualquer infectado que se atrevesse a me morder. Mas eu tinha receio de ser surpreendida por algum andarilho solitário, então ter ao menos uma arma carregada era algo sábio a ser feito.
Depois de correr alguns poucos quilômetros em alta velocidade para manter a forma física eu retornei para perto de meus pertences, recoloquei as botas e a jaqueta, guardei tudo de volta na mochila e parti para a próxima casa a ser vasculhada. Eu tinha a intenção de voltar àquela casa que havia deixado quando Sophia me chamou, porém optei por refazer meu trajeto.
Adentrei outra moradia que ficava perto da praia e, assim que lá cheguei, escutei passos na cozinha. Retirei a pistola do coldre preso à minha cintura, mas quando ouvi alguém dizer "ei, calma" e reconheci Bennett, imediatamente abaixei a arma.
- Puta merda, garota... O que você tá fazendo aqui? Por que não tá com os rapazes?
- Porque Ethan trouxe o irmão mais novo dele, Elijah, pra participar da ronda.
- Certo... Isso é bom. Já tava na hora daquele garoto começar a fazer algo de produtivo.
- Sim. O Ethan sabe que você detesta vagabundagem, por isso foi buscá-lo.
- Eu detesto sim, acho que é... Herança maldita do exército. - Respondi de modo descontraído. - E na verdade, convenhamos, sejamos francas, o que o Ethan quer é me agradar, infelizmente. - Eu ri, antes de vasculhar uma gaveta de um armário na sala de estar.
Ela também riu, enquanto se ocupava em procurar itens em outro armário. - Você já falou pro cara que ele não faz o seu tipo?
- Não. Eu não acho que eu tenha que me justificar pra ele. - Comentei em resposta, assim que encontrei uma caixa contendo munições. - Ei, venha pegar um pouco de projéteis aqui. - Orientei-a.
Sophia fez o que pedi e caminhou em minha direção. Como eu tinha uma caixa vazia de munições na mochila, dividi os itens igualitariamente e entreguei a outra para ela, antes de selar seus lábios rapidamente, o que a fez rir de leve, surpresa com meu gesto.
- Eu sei que o que temos é pura diversão. Se você quiser ficar com um homem... Eu não sou ciumenta.
- Não costumo escolher pessoas de índole duvidosa pra ter qualquer tipo de relacionamento, seja casual ou não.
- Você tá falando do Ethan ou...?
Balancei a cabeça em negação. - Dos homens em geral. Muitos deles são ótimos pra negociar suprimentos, mas são péssimos no artifício do amor, além de não fazerem o meu tipo, realmente. - Eu respondi, antes de ir para a cozinha.
Ela riu de novo. - Você tá de bom-humor agora.
- Silêncio... - Eu sussurrei de repente, ao escutar um grunhido que vinha do quintal. - Há infectados aqui. - Tornei a falar em baixo tom.
Ela voltou a se aproximar de mim para perguntar em meu ouvido: - Tem ideia de quantos?
- Não. Mas não vou deixá-los entrar aqui. Continue a vasculhar em busca de itens. Vou garantir que você fique segura.
- Está bem.
Caminhei tão vagarosamente à parte externa da residência, que nenhum dos sujeitos contaminados – os quais o grupo de Survivalists chamava de errantes –, percebeu minha aproximação. Eu não segurava arma alguma, porque sabia perfeitamente o que faria. Agarrei o primeiro deles pelo pescoço enquanto o segundo tentava me puxar pelos cabelos já que eu os tinha amarrado em um rabo de cavalo.
Assim que o inimigo que estrangulava foi morto por mim, virei-me para socar o segundo com tanta força repetidas vezes, que o nocauteei sem cerimônias com um golpe no queixo. Quanto ao terceiro e último, teve morte semelhante a do primeiro, seu corpo mole e inerte caiu ao chão tão logo ele parou de respirar e grunhir.
Em seguida, para terminar minha missão naquela parte da casa, espanquei o segundo infectado com tamanha violência até matá-lo em definitivo, já que eu somente o tinha nocauteado. Sangue fresco havia se espalhado pelo chão e por minha camiseta, o que me fez chutá-lo novamente, dessa vez de raiva antes que eu retornasse para dentro da casa.
- Abby... Porra... Você parece que tava em uma zona de guerra! - Exclamou Sophia ao me olhar com algum assombro.
- Isso não é nada poético nem condiz com as estrelas no céu do lado de fora, eu sei. Mas infelizmente faz parte do mundo em que vivemos.
- Tem razão. - Ela suspirou com pesar. - Ei, eu fui ao andar de cima. - Voltou a falar, ao ocupar uma poltrona na sala de estar. - Encontrei pessoas que querem entrar pro nosso grupo.
- Quem são?
- Três homens altos e fortes. Acho que serão boas adições pra linha de frente, mas isso somente você vai decidir, claro.
- Se eles têm algum histórico de violência contra crianças... Você sabe bem o que eu faço.
- Eu sei... Mas infelizmente não é como se nós tivéssemos tecnologia o suficiente pra puxar as fichas criminais deles...
- Não, nós não temos, você tem toda razão. Mas esse tipo de coisa sempre vem à tona, cedo ou tarde. Basta que as pessoas sejam observadoras. E isso, convenhamos, eu costumo ser.
- Você é muitas coisas, Abby, inclusive observadora.
- Você quer fazer uma lista agora? Ou prefere deixar pra depois? - Indaguei descontraidamente ao limpar o sangue de minhas mãos na calça cargo que vestia, antes de me aproximar para começar a beijá-la nos lábios devagar.
Eu não estava preocupada que algum dos homens desconhecidos descesse até a sala de estar e nos flagrasse. A bem da verdade eu poderia ficar irritada caso fosse interrompida, porém, como nenhum dos sujeitos até então desconhecidos me importava, eu simplesmente não pensava no assunto. No entanto, Sophia claramente pensava.
Dona de um temperamento mais acanhado ela me afastou com um leve empurrão, embora não protestasse com palavras. E nem precisaria fazê-lo. Eu era esperta o bastante para entender que a loira, que era mais baixa do que eu, tinha olhos azuis e um corpo franzino não considerava aquele um bom momento, não seria eu a desagradar uma jovem mulher tão bonita como ela.
Afastei-me e subi ao andar superior para conversar com os referidos homens. Tratava-se de três irmãos que vinham de Nashville em busca de algum grupo para se aliar. Eu concordei prontamente a que eles fizessem testes físicos para saber se estavam prontos e capacitados a cooperar conosco, após eles negarem que tivessem feito mal a alguma criança.
Quando recebíamos alguém disposto a fazer parte dos Tigers, tanto eu quanto Sophia e o irmão dela, Henry Bennett, avaliávamos os recém-chegados com rigor. Se reuniam condições de se juntar a nós, os indivíduos eram imediatamente aceitos. Caso não fossem considerados aptos, eu pessoalmente os matava, mesmo que houvesse crianças com esses viajantes.
Quanto aos pequeninos, eu os abrigava e os treinava para se tornarem lutadores como eu. Jamais os deixava desamparados sem um teto, sem comida, sem um referencial. Eu apenas considerava que pessoas não habilitadas para enfrentar adversidades não tinham capacidade para instruir, porque educar alguém já se tratava de uma adversidade por si só.
Eu os deixei no andar de cima e desci as escadas de maneira despreocupada. Estava prestes a recomendar alguns exercícios com a finalidade de que Sophia aplicasse para eles tão logo nós chegássemos ao acampamento, porém, assim que alcancei o último degrau, ela me segurou com alguma urgência pelo braço e me olhou ainda em silêncio.
- A escada não é um bom lugar pra esse tipo de contato, Soph... Por mais inusitado que seja eu não acho que...
- Não é nada disso, Abby! Que droga! - Ela sussurrou, seu rosto corando furiosamente.
- Então o que é? - Eu indaguei em um sussurro, assim que desci o degrau que faltava.
- Essa casa tem porão.
- Deve ter, claro, praticamente todas as residências têm, não somente aqui em Galveston...
- Eu não tô perguntando isso, tô afirmando, porque juro que escutei alguém pedir por ajuda.
- Tem certeza?
- Sim. Eu não sei exatamente de onde esse pedido veio, mas juro que escutei alguma coisa do lado de fora e... Parecia voz de criança.
- Tudo bem então, vamos procurar.
Larguei a mochila no chão, tornei a retirar minha jaqueta, devido ao intenso calor sentido por mim e a joguei em cima de uma das poltronas que havia na sala. Fiz um sinal com a mão para solicitar que Sophia aguardasse que eu a acompanhasse, exatamente porque nós não sabíamos o que esperar.
Voltei a recolocar a mochila em meus ombros e, a passos largos fui até o quintal, onde estavam os cadáveres dos infectados. Sem um pingo de paciência eu os chutei violentamente ao caminhar. A parte externa era bastante grande e, ao final dela, havia uma escada que, ao descermos, desembocaria em outro cômodo.
Sophia fez um movimento no intuito de tentar ir na minha frente, entretanto eu a detive quando me interpus em seu caminho. - O que foi? - Ela ergueu uma sobrancelha.
- Mantenha-se atrás de mim. - Eu sussurrei. - Pode ser perigoso. E eu não quero que você se machuque.
A jovem de 20 anos e de cabelos loiros na altura dos ombros assentiu em um movimento leve da cabeça, enquanto que, de maneira furtiva eu me aproximava da escada de pedra que havia no local, talvez porque a casa era muito mais antiga a construção não tinha sido refeita. Mesmo assim, apesar de tudo, se descobrissem uma cura para o maldito vírus que nos atormentava, eu poderia escolher reformar e viver naquela moradia.
Começamos a descer pé por pé, enquanto vez ou outra trocávamos olhares tensos. Não sabíamos o que nós encontraríamos no subsolo da residência, porém eu já estava preparada para defender minha parceira de grupo, custe o que custasse.
- Ajudem, por favor.
A voz apavorada que chegou aos meus ouvidos com certeza era infantil. Poderia ser alguém que imitava uma criança para nos atrair para uma armadilha? Sim, poderia. Mas o pedido de auxílio parecia ser genuíno e me fez apressar o passo, amaldiçoando minhas botas pelo barulho que faziam nos degraus, ao mesmo tempo em que Bennett demonstrava evidente desconfiança.
Ao testar o trinco constatei que o local recém-descoberto tinha a porta trancada, o que me fez rolar os olhos com alguma impaciência. Fiz um gesto com a mão para que a loira de olhos azul-turquesa que me acompanhava se afastasse ao máximo para que eu pudesse arrombar a porta, e foi o que ocorreu.
Mesmo com a escuridão no cômodo que tínhamos acabado de encontrar, como o sol começava a despontar por conta do amanhecer, a claridade invadiu o porão e, tudo que nós duas conseguimos visualizar, foram duas crianças indefesas. A mais velha era um menino de talvez dez anos, enquanto a mais nova devia ter no máximo quatro.
- Por favor... Não machuque a minha irmã...
- Nós não vamos, não se preocupe. - Eu garanti, o mais calmamente que pude. - Como você se chama?
- Michael. Você... Não seria Meg Butler, não é?
Respirei fundo ao ouvi-lo me indagar aquilo. O menino claramente não tinha culpa de me fazer essa pergunta, porque não sabia o quanto eu a odiava. - Não, eu não sou. - Respondi, o mais tranquilamente que pude. - Mas posso ajudar vocês, se estiverem dispostos.
- Em troca de quê?
- De absolutamente nada. Vocês são crianças, precisam de proteção e de orientação.
- Os homens maus nos prenderam aqui...
- Fique quieta, Ruby... - O menino pediu de forma um tanto exasperada. - Nós não as conhecemos, não sabemos se são confiáveis. - Ele sussurrou um tanto ingenuamente, já que eu e minha parceira podíamos ouvi-lo.
- Ei, acalme-se. - Voltei a falar, enquanto balançava a cabeça em direção à porta arrombada, solicitando de modo silencioso que Sophia ficasse de guarda. - Quero ouvir o que sua irmã tem a dizer.
- Os três homens maus iam nos levar com eles... - A menina de nome Ruby comentou com medo.
- Sim, eles... Iam dizer que somos da família deles, quando nós não somos. Eles iam nos levar pros Tigers e fazer com que a gente trabalhasse pra eles. - Respondeu o menino.
Apertei o maxilar com raiva. Os sujeitos tinham nos mentido. Eles fariam crianças inocentes de escravas, fato que jamais eu admitiria que acontecesse em meu grupo. Troquei um olhar significativo com Bennett e em seguida me aproximei dos pequenos com cautela. Retirei a mochila de meus ombros, abri-a e, após vasculhá-la, de lá de dentro retirei dois sanduíches de ovo e salada que eu tinha em minha posse.
- Imagino que vocês estejam com fome.
- Sim... Estamos morrendo de fome. - Esclareceu-me ele depois de salivar. - Mas acho que minha irmã Ruby tá com mais fome do que eu, então você pode dar os sanduíches pra ela.
- Há quanto tempo vocês não se alimentam?
- Os homens mataram nossos pais há dois dias e queimaram os corpos deles. - Ele explicou, enquanto sua irmã chorava baixinho. - Minha família tava procurando por essa moça de nome Meg Butler e... Foi quando aqueles homens ruins nos trancafiaram aqui dentro.
"Covardes de merda..." Pensei. Então, estiquei meu braço e entreguei os sanduíches para as crianças, que os desenrolaram dos guardanapos e começaram a devorá-los sem cerimônia.
Eu estava prestes a fazer outro questionamento, quando um barulho nas escadas me colocou alerta e, no minuto em que o olhar preocupado de Sophia se voltou para mim, arrependi-me de ter arrombado a porta do porão. Tudo que eu não pretendia era colocar aqueles irmãos inocentes em perigo, porque eles já haviam perdido muito. Tudo que eles conheciam, todo referencial que tinham havia se perdido frente a homens vis que queriam escravizá-los. Não. Não estava certo.
- Ouçam-me com atenção. Não importa o que vocês escutem, não saiam daqui. Certo? Eu voltarei pra buscar vocês. - Falei, antes de alcançar um pacote com quatro barras proteicas para o garoto, a fim de que dividisse com Ruby.
Ele me assentiu de maneira agradecida e, sem dizer mais nada, Bennett e eu começamos a subir as escadas do porão. Ela me olhou interrogativamente assim que Ellen me avisou via rádio que nossos rapazes estavam sendo atacados pelos Survivalists.
- Vá encontrar nossos combatentes.
- Mas e você?
- Vou dar a esses cretinos a punição que merecem.
- Abby...
- Confie em mim, Soph. Quando foi que eu faltei com vocês?
- Nunca.
- Então esteja certa de que vou encontrar todos vocês depois. Esperem-me em frente à East Beach. - Eu sussurrei. - Se algo não sair conforme o planejado, vou avisar via rádio.
- Onde diabos vocês estavam?! - Um dos homens, o mais alto deles gritou conosco com visível impaciência, perto do final da escadaria que nos levava de volta à residência.
Sophia não esperou que eu respondesse a ele e se afastou em direção à porta da moradia com alguma rapidez, no intuito de fazer o que eu tinha solicitado. Foram poucas as ocasiões em que a jovem me presenciou matar.
E geralmente, a bem da verdade, eu não gostava que ela nem que ninguém de meu grupo ficasse por perto nesses momentos. Costumava ter muito sangue espalhado e, de modo geral, eu não poupava nem mesmo quem costumava me implorar.
- Não é da sua conta. - Retruquei com frieza.
- Se você descobriu aqueles pestinhas desgraçados... Nós somos tios deles e...
- Cale essa maldita boca, seu monte de bosta. - Eu rosnei, ao segurar o sujeito pelo pescoço com apenas uma mão.
Não me importava que fossem parentes ou não das duas crianças. Elas tinham sido trancafiadas no porão e pude ver com meus próprios olhos que estavam famintas. Isso por si só já era o bastante para fazer com que eles pagassem pela péssima escolha de cruzar o meu caminho.
Arrastei-o para dentro da casa com brusquidão, levei-o de volta ao andar superior e, quando os outros homens me viram, não consegui adentrar o quarto em que eles estavam, porque os dois fecharam a porta e a trancaram.
- Acho que seus amiguinhos não vão ajudar você. - Eu sorri sombriamente.
O homem abriu a boca para gritar, provavelmente para pedir pelo auxílio de seus comparsas, no entanto eu o soquei com tanta força, que ele caiu e bateu com a cabeça no chão com violência por duas vezes. Foi então que vi a oportunidade perfeita para montar em seu peito a fim de socá-lo no rosto repetidamente, sem me importar com a quantidade de sangue que corria dos ferimentos.
Quando julguei ter feito justiça, pelo menos em parte, ouvi a porta do quarto ser aberta e um dos homens, o mais baixo deles, desceu ao andar térreo da casa com uma garrafa com gasolina e um fósforo em mãos. Afastei-me o suficiente para vê-lo derramar um pouco do líquido no chão e atear fogo, o que me levou a adentrar o cômodo, já que a porta tinha ficado aberta.
O outro sujeito, por sua vez, tinha uma barra de ferro nas mãos e, quando me viu entrar, encolheu-se prontamente. - Não se aproxime!
- Vocês são uma piada. - Eu ri de lado e o desarmei sem nenhum tipo de problema, sem que precisasse chegar muito perto dele por conta de minha envergadura avantajada.
Assim que eu tive a barra em minhas mãos, no exato instante em que o sujeito mais baixo regressou para buscar seu amigo e ajudá-lo caso precisasse, foi fácil utilizá-la para bater nos dois homens restantes até matá-los. Eu tinha predileção por acertá-los na cabeça até que parasse de ouvi-los gritar devido aos golpes, o que não podia demorar muito, por conta do fogo no andar de baixo, que se espalhava com rapidez.
Tão logo os assassinei, vasculhei os corpos em busca de itens. Peguei um revólver com um e, com o outro, uma faca de cabo longo com a qual me armei ao me levantar, especialmente ao escutar passos no corredor que me levaria ao primeiro andar.
Quando cheguei aos degraus que me conduziriam à saída para o andar inferior, um forte golpe me atingiu na nuca. Mesmo que eu tivesse uma rápida vertigem, não caí ao chão e pude visualizar uma garota pertencente aos Survivalists. O uniforme azul e cinza, as roupas militares, as armas... Tudo nessa jovem indicava que se tratava de uma soldado.
Então, agi por puro instinto. Atingi-a com duas facadas e levei vantagem na curta luta que se seguiu, sendo o ferimento na barriga aquele que a impossibilitou de tentar me matar. De qualquer maneira, por mais corajosa e valorosa que fosse em combate, a jovem jamais levaria vantagem sobre mim, mesmo se caso eu estivesse desarmada.
Apesar do fato de eu ter sido considerada desertora procurada pelo Exército Americano logo no início da epidemia, continuei com meus treinamentos de maneira solitária, o que me rendeu ótimo preparo físico e um corpo bastante forte, geralmente mais do que normalmente as mulheres costumavam ter.
Tinha como hábito o levantamento de peso, a corrida na praia e o remo, sendo a última atividade nem um pouco difícil de eu praticar, devido às inúmeras embarcações existentes na cidade litorânea.
Quando cheguei ao primeiro andar vesti minha jaqueta e pensei em ir buscar as crianças no porão. Mas as chamas já tomavam boa parte da sala de estar e da sala de jantar, o que, infelizmente, impossibilitava que eu os resgatasse.
Eu não tinha a menor ideia de quantos Survivalists estavam por perto e, por mais que me doesse deixá-los à mercê do fogo, eu não podia permitir que os integrantes do meu grupo enfrentassem dificuldades do lado de fora, enquanto eu me esforçava para salvar duas crianças, por mais inocentes que elas fossem.
- Abby, tá na escuta? Câmbio.
Ouvi a voz habitualmente calma de Sophia. Ela parecia alarmada. Retirei o rádio da mochila e falei: - Sim. Diga, o que foi?
- Nós escutamos uma forte explosão... Ainda bem que você tá viva.
- Eu tô. Mas... Precisei deixar a casa. Aqueles filhos da puta tinham gasolina. - Contei com rapidez enquanto procurava me abrigar perto de uma árvore.
- Nós perdemos homens, Abby. Ethan e Elijah estavam entre eles. Câmbio.
- Merda. Onde vocês todos estão? - Indaguei em um sussurro.
- Esperando você em frente à praia, como nos ordenou.
- Certo. Faça o seguinte: vá pro acampamento em que cultivamos hortifruti junto aos demais.
- Mas Abby...
- Não discuta, Soph. Faça o que estou mandando.
- Tá bem. Mas se cuide, por favor. Câmbio e desligo.
- Não se preocupe comigo. Câmbio e desligo.
Assim que eu guardei o rádio, observei alguém se aproximar da residência e adentrá-la. Não fiz menção de me mover, como estava deitada a grama me encobria e, ao sacar meu rifle e olhar pela mira com alguma agilidade, pude perceber que era ela. Senti todo ódio que guardei pelas últimas semanas, quando ocorreu nosso último encontro, retornar com força total. Ela não podia viver, não quando pessoas inocentes tinham morrido no início do surto.
Foi então que me lembrei que o radiocomunicador de Bennett tinha ficado lá dentro. A jovem loira provavelmente tinha utilizado o aparelho de algum outro Tiger para me contatar e, como as frequências dos nossos grupos eram próximas – além de eu saber de cor a sequência dos números de chamada exatamente por ter pertencido ao exército –, voltei a pegar meu rádio. Segurei-o com força excessiva como se estivesse prestes a quebrá-lo, porém tudo que fiz foi falar:
- Ei Soph, tá na escuta?
Depois de alguns instantes ela me respondeu: - Sim. Tudo bem, Abby?
- Sim. Mas os Survivalists estão rondando nosso território de novo. Fiquem atentos. Eu acabei de ver a líder deles adentrar a casa onde as crianças estão.
- Porra... O que você vai fazer?
- Ainda não sei. Mas tenho certeza de que os rapazes foram mortos por algum integrante deles.
- E o que quer que a gente faça, caso encontremos mais desses cretinos?
- Minha ordem é clara. Se encontrar outros desses filhos da puta é pra atirar pra matar. - Comentei, porque eu sabia que ela tinha amplificado o som do rádio. - Eu não vou falar de novo. E quem não fizer o que eu mandei, vai ter tratamento especial quando voltar pra casa.
- Todo mundo ouviu perfeitamente, Abby. Só não demore pra nos alcançar... Uma tempestade fodida tá pra cair a qualquer momento. Câmbio.
- Certo, Soph. Câmbio e desligo.
- Câmbio e desligo.
Permaneci em completo silêncio por vários minutos enquanto o inconfundível odor do fogo se alastrava pela moradia alguns metros à frente.
Eu calculava que a sargento Butler tinha adentrado a residência junto a outros comandados dela com a finalidade de resgatar sua soldado, então peguei o rifle novamente para olhar através da mira. Enxerguei outros militares do grupo dela e resolvi me deitar no chão de novo, à espera de que ela e de que seus comandados saíssem, no intuito de tentar atacá-los.
Foi então que visualizei com clareza os dois integrantes do grupo dela deixarem a casa em chamas junto às crianças. Um desejo intenso de investir contra aquelas pessoas pertencentes ao grupo rival se apoderou de mim; eu, todavia, não podia fazer isso em frente aos pequenos. Não podia nem queria tomar essa atitude radical, porque não tinha como costume lutar contra quem quer que fosse em frente a crianças.
Porém, quando a vi também sair da residência, não pude deixar de soar sarcástica, tão logo fiquei de pé. - Ei, sargento Butler... Por acaso não estava quente demais aí dentro?
Percebi que meu tom debochado a deixou desconfortável, eu só não sabia o quanto. Mas se eu pudesse fazer com que ela ficasse completamente irritada a ponto de que nós lutássemos de modo impulsivo, eu imaginava que não seria conhecida como vilã, ao menos não dessa vez.
- Você matou aquelas pessoas a sangue frio. E pretendia o que... Matar as crianças também ao atear fogo no local!?
O tom acusador dela me fez sentir mais ódio. - Errado. É incrível como você não me conhece. Nem fui eu que incendiei essa casa, pra começo de conversa.
- Eu não preciso me dar ao trabalho de conhecer você. Os dois anos em que está na liderança de seu grupo já foram o suficiente pra me mostrar do que você é capaz, pelo tanto de pessoas que você vitimou.
"Não", eu pensei. Ela não me conhecia apesar dos vários dias que passamos juntas na Califórnia", eu refleti enquanto ela me apontava sua pistola desafiadoramente. Por mais que nós já tivéssemos nos encontrado em algumas circunstâncias bastante tensas após o surto, tinha absoluta certeza de que ela não somente não me conhecia, como sequer se esforçaria para saber algo a meu respeito, o que me impelia a odiá-la ainda mais e revidar, ao apontar o revólver que pertencera a um dos homens que eu havia matado lá dentro.
Observei que dois de seus soldados estavam prestes a levar as duas crianças, que pareciam assustadas, os dois pares de olhos inocentes estavam totalmente arregalados em minha direção.
Não. Apesar de meus olhos emanarem todo ressentimento que me dominava, eu não me via capaz de atirar contra esses indivíduos, exatamente pelo fato de que eles estariam a resgatar crianças que sequer tinham a ver com meus ressentimentos. Qualquer ideia que eu tivesse de me vingar de Butler pelo que tinha feito, teria de ficar para depois.
No entanto, uma integrante do grupo dela resolveu me desafiar. E eu não era do tipo que via com bons olhos atitudes como essas. A garota cujo nome eu não sabia me apontou seu rifle e levou o dedo ao gatilho. Estava prestes a atirar, mas fui mais ágil. Disparei e acertei o braço direito dela, o que a fez gemer de dor, agachar-se e largar a arma de imediato.
- Merda! – Ouvi a sargento exclamar.
Em seguida notei que Butler foi até ela. Ambas trocaram rápidas palavras as quais não tive a menor vontade de prestar atenção. Meus olhos estavam voltados para as duas crianças, em especial para o menino de nome Michael. Ele esboçava um sorriso, muito provavelmente por tê-la encontrado. Isso porque, quando Sophia e eu os localizamos no porão, ele perguntou se meu nome era Meg Butler. Sim. Inegavelmente ele preferia ir com ela. Talvez imaginasse que sua irmã estaria mais segura, o que me deixava ainda mais irritada.
- Essa conversa é entre nós, Butler. Agradeça aos céus, porque eu podia ter matado sua soldado. Então... Vamos falar sobre negócios. Mande seus bichinhos saírem daqui agora mesmo.
- Eles são pessoas, garota! - Ela me respondeu irritada.
- Tanto faz. - Eu me limitei a dar de ombros, completamente indiferente ao que quer que ela me dissesse. - Que chatice. Você leva tudo muito a sério. - Retruquei ao encará-la, enquanto meu sangue fervia por fazer justiça.
Ela novamente dialogou com seus soldados, antes que eles obedientemente saíssem. Mais uma vez, pessoas tinham preferido ir com os integrantes do grupo dela e, por mais que aquilo me irritasse somente por ser ela, eu não podia deixar de admitir que aquelas crianças estariam seguras.
A sargento Butler possuía diversos defeitos, eu tinha a missão de dificultar ao máximo sua vida até vê-la o mais distante possível de Galveston ou então morta, o que seria ainda melhor, mas eu não podia negar os fatos: se havia uma coisa que essa cretina sabia fazer e muito bem, era proteger os que estavam sob sua guarda.
Agora nós estávamos na mesma posição de instantes atrás: armas apontadas uma para a outra em uma postura de constante desafio. Estávamos sozinhas, exceto pelo som do radiocomunicador que ela tinha na mochila que levava às costas. Alguém de seu grupo dizia o nome dela com alguma insistência, mas eu sabia que ela não responderia ao chamado.
Nós nos mostrávamos imersas demais no que sentíamos, no ressentimento violento que guardávamos uma pela outra ao longo dos últimos dois anos, o qual era uma correnteza a nos arrastar até o profundo ódio que emanávamos.
Levei meu dedo ao gatilho do revólver e a observei fazer o mesmo com sua pistola, sem que desviasse os olhos castanhos de mim. No entanto a escuridão à minha volta fez com que eu olhasse para o céu por alguns poucos segundos, que antes dominado pelo intenso azul e pelo sol, agora exibia nuvens enegrecidas.
A forte tempestade que eu havia previsto, por conta do mar agitado, estava prestes a chegar. Ou seria uma de nós duas que ousaria atirar primeiro?